Em 1990, os países-membros da OCI (Organização de Cooperação Islâmica) assinaram sua própria versão da Declaração dos Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), usando princípios da sharia, lei religiosa muçulmana.
Após 30 anos, uma nova versão, mais branda, deve ser aprovada nos próximos meses. A previsão inicial era a de confirmar a adesão dos países-membros em abril deste ano, reunião cancelada pela pandemia do novo coronavírus.
Agora chamado de Declaração dos Direitos Humanos da OCI, o material passa a sofrer revisões sobretudo a partir de 2011, com a criação de uma força-tarefa para readaptá-lo.
A Declaração do Cairo de Direitos Humanos no Islã, como fora batizada nos anos 1990, coloca a sharia como ponto focal de justiça. Tornou-se alvo de objeções por ignorar os não-muçulmanos e a segurança das mulheres.
Aos primeiros cabia o papel de cidadãos de segunda classe e cuja conversão ao Islã era vedada, dizia o artigo 10º. A elas, segundo o artigo 12º, não havia liberdade de movimento. Também não poderiam ser chefes de família, papel exclusivo do homem, segundo o artigo 6º.
A ONU também via problemas graves nos artigos que tratavam da liberdade de expressão, permitida apenas se não contrariasse os princípios da sharia”, de acordo com o 22º artigo do documento.
Removia-se a universalidade dos direitos humanos, atribuindo a eles um caráter de soberania nacional. Ou seja: não haveria condenação de eventuais abusos cometidos pelos membros.
Sobravam pontos que contrariavam, portanto, a própria declaração universal de 1948. Os pontos de contato com os ocidentais estavam eram o repúdio à tortura e o direito à educação.
Para o pesquisador Turan Kayaoglu, do think tank Brookings, a declaração de 1990 era um “produto de seu tempo”. Foi forjada nas cinzas da União Soviética, de incentivo a valores liberais de conciliação entre os povos e demandas do Sul global por mais voz no cenário internacional.
No mundo islâmico, ainda se sentiam os impactos da revolução no Irã, então a potência regional de maior monta, e a saída soviética do Afeganistão – após dez anos de guerra e com Moscou encurralada.
Nos círculos intelectuais dos países muçulmanos, uma filosofia política com fortes tintas islamistas ganhava espaço cada vez maior.
O que mudou
Entre as revisões no novo documento estão artigos sobre o acesso feminino à educação, à saúde e ao trabalho digno.
Era previsto às mulheres o direito a “completa e efetiva participação em todas as esferas da vida” e à proteção contra discriminação e violência mesmo em práticas culturais tradicionais.
Os avanços da última década surgem em um contexto em que o Irã, antes principal potência regional, deu espaço à Arábia Saudita. Na política, o pragmatismo à moda de Riad tornou-se moeda corrente.
As menções diretas à sharia foram desaparecendo de forma gradual. No lugar, entra a expressão “valores islâmicos”.
Nem tudo foi progresso, porém: os direitos da população LGBT são inexistentes. Essas pessoas estariam sujeitas à discriminação porque “minam valores familiares e perpetuam o ataque liberal ocidental aos princípios islâmicos”, diz o documento.
Para Kayaoglu, as mudanças evidenciam o “interesse da OCI de aproximar seus padrões básicos de direitos aos contidos na declaração universal da ONU“. Essa tentativa já seria animadora, avalia.
Nenhuma das declarações têm valor de lei, e sua adesão é apenas simbólica. Mesmo assim, argumenta Kayaoglu, cooperação é a palavra de ordem para garantir o respeito a direitos humanos básicos nas nações de fé islâmica.
É comum que declarações do tipo evoluam e tornem-se tratados com força de lei dentro dos países. Também servem como razoável termômetro para indicar as principais correntes na discussão global de direitos humanos.
Próximos passos
Será fundamental ao Ocidente secular encontrar pontos de contato com a cultura islâmica, trabalhando com a sociedade civil para que os direitos humanos sejam conhecidos e legitimados por essas populações.
Neste sentido, a declaração seria útil para sedimentar os conceitos de direitos humanos junto aos povos islâmicos e colocar parâmetros do que é aceitável. Também incentivaria o surgimento de organizações não governamentais para fiscalização das condutas dos governos.
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