Este artigo foi publicado originalmente no Jornal da USP.
por Charles Mady, professor associado da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo)
Desde o início dos tempos, o ser humano é movido por crenças místicas, impossíveis de serem comprovadas pela razão, apesar dos intensos esforços realizados pelos estudiosos. As formas de manifestar espiritualidade variavam de sociedade para sociedade, conforme a cultura e as necessidades do meio onde se instalavam.
Do paganismo aos dias de hoje, a palavra crença sempre esteve presente como denominador comum. Havia, e há, por parte dos variados grupos sociais, uma necessidade intrínseca em se acreditar em algo maior. As muitas linhas de pensamento levaram, e levam, grupos sociais a praticar atos gerados por um imenso humanismo construtivo, assim como malefícios indescritíveis, comprovando-se que o ser humano tem, dentro de si, tanto bondade e compaixão, quanto instintos que o levam à destruição.
Locais e templos de sacrifícios humanos, e de animais, foram criados, assim como outros para preces e meditações em respeito a deuses e seres humanos.
É o que se pode chamar de arquitetura e geografia religiosas, onde os cultos se fariam mais próximos de Deus, ou deuses. Os mitos e crenças geram, e geraram, devoções a lugares tidos como santos. Locais de presença divina, relíquias, pedras, passaram a ser cultuados e venerados como se lá estivessem em contato com o sagrado.
Não bastou a Torá, o Novo Testamento, o Alcorão e outras escrituras terem afirmado que qualquer local poderia se transformar em um templo, que a própria natureza era criação divina, sendo toda ela um “templo”, ou “templos”, devendo tudo, e todos, receber o respeito devido.
Mas começaram a ser erguidas construções, algumas humildes, outras monumentais, pelas inúmeras crenças. A necessidade de grandiosidade, em determinado momento, consequente à vaidade do ser humano, passou a superar a fé, que deveria ser o motivo de qualquer crença, como se a adoração ao local fosse fundamental para mostrar a si, e aos outros, fidelidade a determinada linha de pensamento.
A arquitetura e técnicas de construção ganharam muito com isso, assim como nós, que nos embriagamos com tanta beleza. E a fé, aumentou nessas sociedades?
O Império Árabe conquistou a Península Ibérica, fazendo de Córdoba sua capital, realizando construções de beleza única, entre elas uma mesquita monumental, uma obra de arte. Quando os cristãos a conquistaram, iniciaram a demolição de seus arcos para transformá-la em catedral, interrompida por Carlos V, por ter entendido o seu valor artístico. Esse episódio demonstra que o ser humano tem grande capacidade de construção, e destruição.
A mesquita omíada de Damasco era antes uma igreja, que tinha, e tem como relíquia a cabeça de São João. E quantas mesquitas e sinagogas foram transformadas em igrejas, ou destruídas, na Península Ibérica?
O Império Romano Oriental, ou bizantino, aperfeiçoou técnicas e desenhos do Império Ocidental. Exemplo disso é Santa Sofia, que significa santa sabedoria, uma construção de beleza ímpar, um marco monumental à criatividade do ser humano. Era uma catedral admirada por todos. Com a queda de Constantinópola, a segunda Roma, que os otomanos chamaram de Istambul, foi transformada em mesquita, com minaretes e decoração islâmicos, mas sendo preservada a arquitetura original.
Era o marco do cristianismo ortodoxo, com estilo e fé adotados posteriormente pela Grande Rússia. A seguir, foi transformada em museu, se tornando um dos grandes marcos do turismo internacional. Recentemente, voltou a ser uma mesquita. Foi uma atitude correta?
Será que essas obras de arte devem pertencer a uma religião, ou serem transformadas em patrimônio da humanidade, mantendo suas características religiosas? Será que temos o direito de transformá-las, conforme nossas crenças? Uma obra de arte, com sua beleza inconsciente, deve ser admirada por todos, mesmo que tenha um caráter de determinada linha religiosa.
Recentemente, fanáticos destruíram parte de Palmira, na Síria, e obras budistas gigantes no extremo oriente, desastres de difícil recuperação. Por terem outras crenças, julgaram-se no direito de destruir.
Eram patrimônios culturais da humanidade. Isso evidencia o lado destrutivo das religiões. Elas mostram, abertamente, o que há de melhor e de pior no ser humano, contrariando, na prática, qualquer filosofia religiosa.
O problema se agrava quando o mesmo sítio é venerado por mais de uma religião, com consequências desastrosas. Os romanos destruíram o segundo templo judaico. Construções de notável beleza foram lá realizadas após, pelos muçulmanos, assim como outras no longo tempo que marcou, em pedra, sua presença em Jerusalém.
Há sérias intenções de se destruir as mesquitas do local, por sinal marcos turísticos da cidade, para lá levantar o terceiro templo. Configurar-se ia um crime contra um bem, que deveria ser da humanidade.
Jerusalém, cidade santa para as três religiões monoteístas, abrâmicas, foi e é motivo de guerras de violência incalculável, movidas por fanáticos religiosos e não religiosos. Podemos aceitar a descaracterização da cidade em nome de uma crença? De quem é Jerusalém? De uma religião? De todos? Ou de ninguém? Sua arte arquitetônica foi realizada por quem? Deveria ser patrimônio da humanidade, aberta a todos, como as Escrituras nos ensinam.
Ninguém, ou filosofia religiosa seja ela qual for, tem o direito de possuí-la. À semelhança de Córdoba, isso deve ser impedido. Infelizmente, está havendo um triunfo dos mitos sobre a razão. Estão cultuando mais as religiões do que Deus. É pouco provável que Ele tenha assim nos ensinado. Trata-se de idolatria?
Hagia Sophia, ou santa sabedoria. Será que esta, como tantas outras atitudes, foram sábias, ou santas?
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