O pequeno município de Palmeiras de Goiás, a cerca de uma hora da capital do estado, assistiu à inauguração da Farmácia Básica Municipal Joaquim Cândido de Moura no dia 1º de outubro, dois dias após o início da campanha para as eleições municipais. Fotos da inauguração da farmácia 24 horas, que teve direito a placa com o nome do prefeito e candidato a reeleição Vando Vitor (PSDB-GO), foram divulgadas em suas redes sociais . Entre elas, estavam imagens de caixas do medicamento Reuquinol, uma das marcas mais conhecidas da hidroxicloroquina.
Os comprimidos de 400mg do remédio, que ficou conhecido mundialmente após a politização em torno de sua eficácia para o combate da Covid-19, aparecem nas fotos ao lado do vermífugo ivermectina. O medicamento, popularmente usado contra piolhos, não chegou nem mesmo a ser objeto de pesquisa em humanos no contexto do novo coronavírus, e até mesmo sua principal fabricante contraindica seu uso para combater a Covid.
A inauguração da Farmácia Básica Municipal — na verdade, mais um espetáculo que uma inauguração em si, pois ela foi apenas realocada, deixando de ser ao lado do Pronto Socorro Municipal Marconi Perillo – não foi a primeira vez em que o prefeito Vando Vitor divulgou a hidroxicloroquina.
No Brasil, tanto este medicamento quanto a ivermectina se tornaram protagonistas da polarização política em torno das estratégias de combate à pandemia. Com a defesa intransigente do presidente Jair Bolsonaro da eficácia das drogas, mesmo sem comprovação científica de seus efeitos na prevenção e tratamento do SARS-CoV-2, diversos municípios passaram a adotar sua distribuição, por meio dos afamados “kits Covid”.
Não foi diferente em municípios do interior do estado goiano, entre eles, Palmeiras de Goiás.
No dia 11 de junho, com o aumento da polêmica em torno do remédio, Vitor se posicionou favorável ao uso da droga. “Eu pedi ao nosso secretário de saúde para comprar. Toda luta é válida para salvar vidas”, postou no Facebook. O post teve 200 likes e, entre comentários com emojis de palmas e agradecimentos, a cidadã Luzia Adeny afirmou que não concorda com a posição do prefeito. “Já foi testado e não deu certo… Eu tenho problema de arritmia cardíaca e não posso tomar esse remédio”, escreveu. Já a palmeirense Luciana Oliveira escreveu: “Uso ele porque tenho lúpus, mas está muito difícil conseguir comprar. Não encontra em nenhuma farmácia”.
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“Kit Covid” de Palmeiras de Goiás (GO). -
“Kit Covid” de São Luís de Montes Belos (GO).
No mês seguinte, o Prefeito publicou em suas redes sociais fotos de dois tipos de “kits Covid”, em pacotinhos de plástico fechados com um adesivo da Secretaria de Saúde. O primeiro contém dipirona, ivermectina e o antibiótico azitromicina. O segundo, além dos três medicamentos anteriores, contém 150mg de cloroquina e 20mg do corticoide prednisona. De acordo com a legenda escrita pelo prefeito, os “kits” são entregues apenas mediante receita médica.
Não se sabe se há um protocolo municipal para a administração dos medicamentos, já que a Secretaria Municipal de Saúde de Palmeiras de Goiás não respondeu às ligações e e-mails da Agência Pública. No âmbito federal, a utilização de hidroxicloroquina para tratamento precoce da Covid-19 foi objeto de um polêmico protocolo publicado em maio. A diretriz federal incentivou municípios como Palmeiras de Goiás a adotarem o medicamento.
Porém, Alencar Lopes Machado, que trabalha na Câmara Municipal de Palmeiras de Goiás como assessor parlamentar do vereador Zezin JJ (Cidadania-GO), disse à reportagem que não existe um protocolo municipal para uso das drogas. “Fizeram uma compra grande desses medicamentos por pressão popular. As pessoas ouviram falar dele em algum lugar e o prefeito, em ano de eleição, acabou pressionado”, diz.
Segundo Machado, as demais medidas de combate ao vírus foram abandonadas pela Prefeitura. Em abril, o município entrou em um rígido lockdown durante duas semanas e, posteriormente, emitiu atualizações liberando aos poucos a atividade comercial na cidade. Em 6 de julho, Palmeiras de Goiás adotou um sistema de revezamento, segundo o qual as atividades não essenciais funcionariam por 14 dias seguidos e ficariam suspensas por outros 14. Mas, desde o dia 21 de julho, todas as atividades do município voltaram a funcionar com alguns horários limitados.
De acordo com Alencar Machado, a maioria dos habitantes do município não tem seguido as principais medidas preventivas. “Abriram o comércio todo já, bares, parques sempre cheios. Quase ninguém usa máscara e não tem nenhuma fiscalização”, afirmou o assessor parlamentar.
De fato, no dia 30 de setembro, o próprio prefeito foi multado pelo Ministério Público Eleitoral (MPE) em R$15 mil por promover aglomeração durante um “adesivaço” de campanha em uma avenida da cidade.
Saúde é o que interessa
A preocupação da prefeitura com a saúde dos palmeirenses é frequentemente lembrada na campanha do prefeito. Em uma série de imagens publicadas em suas redes sociais, ele enumera, periodicamente, a quantidade de pessoas que já se recuperaram da Covid-19 no município, que atualmente já passa de 2.400.
Por outro lado, os boletins diários da pandemia atualizados no site da prefeitura não são publicados nas redes do prefeito. Já são 29 óbitos na cidade, onde vivem 29 mil pessoas, de acordo com dados do IBGE de 2019. O número representa uma taxa de mil mortes a cada milhão de habitantes – maior que a média nacional. A atual taxa de óbitos do Brasil, que ocupa a sexta posição mundial nesse quesito, está em 693 a cada milhão de habitantes.
Entre as principais demonstrações da preocupação com a saúde exibidas na campanha de Vando Vitor está a escolha para seu vice: Constantino Pires Abadia Jayme, conhecido como “Tanti”. Vereador desde 1993, Jayme posa nas fotos de campanha vestindo estetoscópio e jaleco, onde seu nome aparece acima do título “enfermeiro”. Apesar de Jayme de fato atuar como profissional de saúde no município desde 1989, ele se formou, na realidade, como auxiliar de enfermagem. Além disso, sua atuação é irregular pelo menos desde 2004, quando sua inscrição no Conselho Regional de Enfermagem de Goiás foi aberta mas nunca completada, segundo apurou a reportagem.
De acordo com o Art. 84 do Código de Ética do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), é proibido anunciar formação profissional, qualificação e título que não possam ser comprovados.
Em discurso gravado na 5ª Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Palmeiras de Goiás em junho deste ano, Jayme diz que “jamais deixou de atender nenhuma família”. “Vou atender, vou fazer receita a todos que me procurarem. (…) Resolvendo problema dessas mortes que estão tendo por aí”, diz ele – embora o Código de Ética do Cofen proíba expressamente a prescrição de medicamentos por auxiliares e técnicos em enfermagem.
Atualmente, Jayme encontra-se em recuperação após ser diagnosticado com a Covid-19. Há duas semanas, o vereador postou, em suas redes sociais, que está em isolamento e seguindo “todos os cuidados necessários”. Ele não revelou se está fazendo uso do “kit Covid”.
Em Goiás, “as prefeituras todas compraram ‘kit Covid’”
Palmeiras de Goiás não está sozinha. Imagens de kits semelhantes foram divulgadas pelas prefeituras de diversas cidades do estado do Centro-Oeste. A 55 km dali, o município de São Luís de Montes Belos, com cerca de 30 mil habitantes, também não poupou. É o que conta a moradora Vera*, de 57 anos, que preferiu não se identificar por temer represálias.
O município de Chapadão do Céu, por exemplo, adotou um protocolo municipal segundo o qual a hidroxicloroquina é administrada na primeira fase do tratamento da Covid-19, em tratamento ambulatorial. De acordo com o documento, 400mg do medicamento são administrados a cada 12 horas durante sete dias, em conjunto com a ivermectina, a azitromicina, o zinco quelato e a dipirona. Além disso, a hidroxicloroquina também foi tomada de forma preventiva por profissionais de saúde no município goiano, segundo o protocolo.
“As prefeituras todas compraram. Até porque, e temos que ser justos com isso, a própria população começou a pressionar os prefeitos e secretários de saúde por isso”, diz Vera.
“Aqui a população inteira pegou ‘kit Covid’. Você vai no posto, leva cartão do SUS e pega. Ou alguém da família vai para você, leva seu nome e eles já deixavam até a receita pronta. Acredito que grande parte da cidade tomou ivermectina, zinco quelato e azitromicina. Uma enfermeira da Unidade Básica de Saúde, Dona Luzia, chegou a me mandar áudio no WhatsApp me chamando para pegar”, conta.
Vera explica, entretanto, que a hidroxicloroquina não fazia parte do kit. Em foto publicada pelo prefeito de São Luís de Montes Belos, Major Eldericio Silva, a droga não é listada como parte do coquetel separado em saquinhos adesivados com a bandeira do município. Em outra publicação do dia 28 de julho na sua conta no Facebook, o prefeito afirma que o kit encontra-se disponível na Farmácia Básica e nos Postos de Saúde, porém “apenas com prescrição médica, segundo normas da Anvisa”.
Já no Instagram da prefeitura, há a imagem de dois kits, um deles para a prevenção da doença, contendo ivermectina, zinco quelato e vitamina D – a legenda da imagem também indica a necessidade da prescrição médica.
A Secretaria de Saúde de São Luís de Montes Belos não respondeu às perguntas da reportagem. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nenhum desses medicamentos comprovadamente previne contra a Covid-19.
Goiás foi um dos estados em que o próprio Ministério Público Federal chegou a impetrar ações para obrigar prefeituras a distribuir hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19, como revelou a Agência Pública.
A professora conta que grande parte de sua família, moradora de Firminópolis, município de 10 mil habitantes que fica a 10km de São Luís de Montes Belos, tomou a ivermectina após ganhar o kit, no mês de julho. O vermífugo, porém, não impediu que sua prima contraísse a doença, em agosto. Ao visitar a UBS local, a prima de Vera recebeu uma receita de hidroxicloroquina.
“Eu falei para ela parar de tomar porque estava ficando muito mal, e ela dizia que não, que ia melhorar. Eu sei que esse remédio causa muita arritmia, sei porque um tio meu tomou para curar malária e os batimentos dele ficavam muito altos”, conta. Segundo Vera, a prima sofreu com os efeitos colaterais do remédio, que é contraindicado para portadores de problemas cardíacos. “A gente ia visitá-la na porta da casa dela, e ela estava ofegante. Depois que ela começou a tomar o remédio a voz dela ficou muito fraca. Mas mesmo assim ela não quis parar de tomar”, conta.
A prima de Vera sobreviveu, mas ela perdeu um cunhado e um outro primo para a Covid-19.
O próprio governo do estado de Goiás prevê desde março a administração de hidroxicloroquina apenas para casos graves da doença. Ex-aliado rompido com Bolsonaro – e responsável pela indicação do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta –, o médico Ronaldo Caiado (DEM-GO), governador do estado, defendeu seu uso em entrevista ao programa Roda Viva realizada no dia 6 de abril, e afirmou que o estado prevê diferentes tipos de tratamentos para o combate da pandemia. “O protocolo que utilizamos aqui já inclui a azitromicina e a cloroquina, mas dentro de critérios e de acordo com a necessidade dos pacientes em situações em que achamos necessário aplicar”.
Na mesma entrevista ao programa da TV Cultura, Caiado anunciou a possibilidade da demissão de Mandetta uma semana antes da efetivação da exoneração. Na ocasião, o ministro passava o final de semana em Goiânia, ajudando na elaboração do protocolo estadual de combate à pandemia.
Embora tenha sido palco da entrevista ao Fantástico na qual Mandetta afirmou que “o brasileiro não sabe se escuta o ministro ou o presidente”, considerada a gota d’água para sua demissão, parece que o Palácio das Esmeraldas não conseguiu seguir as recomendações do ex-ministro da Saúde nos municípios goianos – Mandetta era contra a adoção da cloroquina no tratamento a Covid-19.
Os dados mais atualizados apontam 4.945 mortes e 221.351 casos de Covid-19 no estado.
source https://apublica.org/2020/10/em-palmeiras-de-goias-hidroxicloroquina-da-o-tom-na-corrida-eleitoral/
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