Renato Freitas (PT) é um dos apenas três vereadores negros entre os 38 parlamentares da Câmara de Vereadores de Curitiba (PR). Ameaças racistas não são novidade na trajetória do advogado de 38 anos, que cresceu em uma periferia da cidade sulista e já enfrentou vários episódios de violência policial. Contudo, desde fevereiro deste ano, os ataques se acirraram. “Volta para a senzala”, estava escrito em um e-mail direcionado a ele, que teria sido enviado pelo vereador Sidnei Toaldo (Patriota), relator do processo que pode levar à cassação do mandato de Renato nesta quinta-feira (19). A Corregedoria da Câmara abriu sindicância para apurar a autoria do e-mail.
O vereador petista sofre processo ético-disciplinar por sua participação em uma manifestação antirracista pela morte do imigrante congolês Moïse Kagambe, espancado até a morte no Rio de Janeiro em 24 de janeiro deste ano, em um quiosque na praia da Barra da Tijuca. Durante o protesto, em 5 de fevereiro, manifestantes entraram e ocuparam a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, no centro de Curitiba, erguida por escravos no centro da cidade e historicamente destinada a eles. O ato foi classificado como “profanação injuriosa” pela arquidiocese da cidade, mesmo tendo sido realizado após a missa, como ficou comprovado em vídeos e foi confirmado posteriormente pela própria cúpula local da Igreja Católica, em carta aos vereadores, com pedido pela não cassação do vereador.
Mesmo após o pedido da Igreja, os ataques contra o vereador continuaram. Em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) chamou os participantes do ato de “marginais” que “não respeitam a casa de Deus” e cobrou apuração dos fatos em sua conta no Twitter. Na Câmara de Vereadores, Renato foi acusado de “cristofobia” pelo vereador Marciano Ramos (Republicanos), integrante da bancada evangélica da Câmara de Curitiba e aliado do prefeito Rafael Greca (DEM), a quem o petista faz oposição declarada. Vereadores da bancada religiosa assinaram representações onde acusam o parlamentar de quebra de decoro, infração punida com perda de mandato. Um dos autores é Osias Morais (Republicanos), ligado à Igreja Universal do Reino de Deus e vice-líder do prefeito na Casa Legislativa.
“O que é decoro, ou a quebra dele, senão a interpretação sobre minha forma de agir e falar? E que é um poder subjetivo que o Estado tem para condenar alguém.”, questiona Renato sobre seu processo de cassação. “É isso que a polícia faz, que a Câmara faz, que sofro ao longo de décadas. Então, de algum modo já estou acostumado.” À Agência Pública, o vereador disse que pretende recorrer na Justiça, caso a maioria dos parlamentares vote pela perda do seu mandato. Também adiantou que está articulando um movimento nacional com novas lideranças políticas negras do país, como Galo de Luta, representante dos entregadores de aplicativos de entrega, uma das figuras públicas que se posicionou contra a cassação do vereador. “Queremos negros e pobres como protagonistas”.
Você acredita que pode perder o mandato? Se acontecer, pretende recorrer?
O processo já se encontra em estado de exaurimento. Já passou pela Comissão de Ética e falta apenas a chancela do Plenário na Câmara. É claro que se fosse uma circunstância favorável isso representaria uma possibilidade de segunda discussão, mas não é o que ocorre. Inclusive, vazou que 13 vereadores, ligados ao prefeito, já assinaram o decreto de cassação. Precisa de 20 para formar maioria (entre 38 vereadores). Para mim o que resta é o recurso judicial.
O prefeito é o maestro dessa conspiração. Sou oposição declarada a ele. Nossos princípios são absolutamente opostos. Ele é conhecido por declarações aporofóbicas (medo ou rejeição aos pobres). Chegou a dizer que não gostava dos pobres e que, quando botou um pobre dentro do carro dele, vomitou por não suportar o cheiro. Quando tomou posse, a primeira medida dele foi fechar os guarda-volumes da população em situação de rua daqui do centro. Depois ele autorizou a guarda municipal a retirar à força esses pertences.
Outro grande embate que tive com ele foi um projeto que tentou proibir as pessoas de fazerem doações. As pessoas que queriam doar uma marmita para uma pessoa em situação de rua foram proibidas, sob pena de multa de R$ 550. Conseguimos deter o projeto e isso gerou uma grande exposição dele.
Você denunciou o recebimento de um e-mail com insultos racistas. Continua recebendo ataques? Sente medo?
Recebi mensagens de gente dizendo que ia me dar tiro. Outros mandaram fotos de armas. Mas a verdade é que a gente tem Deus por nós. Não há o que temer, nem lamentar. Antes de nós, outras pessoas lutaram. Outros virão depois. Não desenvolvo nem ansiedade, medo ou frustração. Na Câmara, acho que o jogo contra mim já está marcado. Mas acredito que no Judiciário tenho possibilidade de recorrer. Foge absolutamente ao meu controle.
Além de serem da base do prefeito, os vereadores que assinam as representações do seu processo de cassação são ligados a igrejas evangélicas. Como é sua relação com as lideranças religiosas na Câmara?
A gente já teve uma briga muito grande com os religiosos. Os hipócritas que se utilizam de um verniz religioso para pregar o ódio mais visceral e destruidor. A bancada religiosa da Câmara dos Vereadores é encabeçada pelo pastor Osias de Moraes (Republicanos), que é da Igreja Universal e vice-líder do prefeito na Câmara. Ele teve a falta de escrúpulo de levar um médico, na tribuna virtual, que disse que com ivermectina tinha curado mais de 10 mil funcionários em uma empresa que trabalhava. Era mentira. Ele era médico do trabalho, fazia só admissional e demissional. As pessoas que ficavam doentes procuravam unidades de saúde básica.
Na época, falei que era uma picaretagem, charlatanismo, sobretudo quando você ainda tem motivação política para induzir pessoas a erro, em prol de fortalecer laços de Bolsonaro e sua base. Foi quando sofri meu primeiro pedido de cassação, ainda no primeiro semestre do meu mandato, mas que não prosperou.
Então, desde o início, seu mandato tem enfrentado resistência dentro da própria Câmara? Você acredita que tem sido vítima de racismo e violência política?
A Câmara foi o tempo todo hostil comigo. A ponto de, em momentos, eu fazer comentários mais contundentes contra eles, o líder do prefeito vir me perguntar se eu estava bêbado, se eu tinha costume de beber durante a sessão ou só antes. Em outro momento disse que eu tinha usado maconha, porque durante uma das minhas falas cantei uma música que chama Hipócritas de Ponto de Equilíbrio, que era para eles.
Alguns vereadores tentaram descredibilizar meus posicionamentos durante as sessões dizendo que eu era só um menino. Inconsequente. Que eu não sabia o que fazia e falava. E o mais curioso é que teve vereadores mais novos do que eu me chamando de garoto. O líder do prefeito, por exemplo, não é mais novo, mas é do mesmo ano que eu, de 1983. São coisas que você percebe que são racismo mesmo. A pessoa te vê como menos: intelectualmente, emocionalmente. Te vê como menos por todos os ângulos.
Você e os manifestantes que participaram do ato antirracista foram acusados de profanar um tempo. De não terem respeito com o espaço religioso e de culto das pessoas. Você pode explicar como tudo aconteceu? A ideia de entrar na igreja foi sua? Vocês invadiram a missa?
No dia 5 de fevereiro, num sábado, por conta da morte do imigrante Moïse Kagambe, atos antirracistas e contra a xenofobia foram realizados em todas as capitais, inclusive fora do país. A gente organizou nosso ato para cinco da tarde. Foram vários grupos ligados ao movimento negro e à associação dos imigrantes. A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito é onde teve o pelourinho, onde se deu a mercantilização dos seres humanos que eram escravizados, visto como coisas e objetos, em Curitiba. Fica no centro comercial da cidade. Só que tinha a missa às cinco horas e não sabíamos.
Nossa manifestação terminou começando apenas às 17h30, quando a missa já tinha acabado. O padre estava falando só os informes. Ao invés dele ter um espírito pacificador, teve um espírito de conflito. Ficou perguntando o que a gente tava fazendo ali, no lugar de entender que a gente estava fazendo uma manifestação em prol da vida. Um dos manifestantes respondeu a ele: estamos aqui porque essa igreja é nossa. E outro já chamou o padre de racista. Ele respondeu fazendo um ‘joinha’ com a mão. Então a galera ficou ‘P da vida’ porque ele estava ironizando, como se fosse inquestionável. Como se visse no próprio umbigo a razão de ser da própria igreja. A igreja é muito mais que ele, tanto que é igreja do Rosário dos Homens Pretos.
Pensei na hora: vão arrumar uma coisa com o padre, vai ficar ruim pra nós. Daí os manos já falaram: “na oração do padre não tem a nossa vida”. Alguém deu a ideia de entrar na igreja e isso se alastrou como rastilho de pólvora na hora. Então ocupamos.
Você foi acusado de “cristofobia” (preconceito contra cristãos) por um vereador da Câmara. Li entrevistas onde você cita versículos bíblicos. Qual sua relação com o cristianismo?
Não sou nem católico, nem evangélico. Eu sou cristão. Minha mãe é cristã. Paulo disse aos Coríntios: o templo sois vós. Jesus disse: onde estiverem dois ou três em meu nome, ali eu estarei. Essa tentativa de aprisionar Deus dentro de quatro paredes foi um fracasso histórico. A Idade Média demonstrou que não dar possibilidade de interpretação — mas sobretudo de vivência dos dizeres bíblicos—, pode levar a verdadeiras heresias. Gente que, dentro da igreja acredita estar falando com Deus, mas quando sai não fala com o morador de rua, com quem mais precisa, que são acusados, torturados e assassinados pelo sistema, como Jesus Cristo.
É pela história dos humildes, dos mais fracos, dos que servem, que sou cristão. Não pelos fariseus e doutores da lei que foram responsáveis pela morte de Jesus. Quem estava comprimido para ouvir os ensinamentos de Jesus? O povo. Quem gritava Hosana quando ele chegou em Jerusalém depois de ser batizado? O povo. Quem acusou ele? Quem ofereceu armadilhas para Jesus, acusando de blasfemador, de fazer milagres aos sábados? Quem fez isso foram os religiosos da época, que se achavam donos da religião e de Deus. Essas pessoas são a grande representação do mal.
Na sua opinião, estão querendo cassar seu mandato por racismo? Existem outras questões?
O racismo é um dos elementos, com toda certeza. Há uma hostilidade em relação à minha presença na Câmara dos Vereadores. Você vê nos olhos das pessoas, na forma como me tratam. Mas também o elemento de classe e o elemento político.
A Câmara de Curitiba tem 38 vereadores — 35 brancos e 3 negros. Herivelto Oliveira (Cidadania) é uma pessoa que era um apresentador de afiliada da Rede Globo aqui. Ele faz parte da base do prefeito. Já a Carol Dartora é do PT e tem uma postura mais de enfrentamento em relação à realidade racista de Curitiba.
Eu luto pelo direito à moradia. Quem são as pessoas que não têm direito à moradia? Que foram libertas da escravidão e não tiveram a possibilidade de, com uma reforma agrária, receber um pedacinho de terra. Os Estados Unidos deram 40, 50 alqueires e uma mula aos libertos. No Brasil, se produziu uma massa de vidas desperdiçadas e matáveis, que foram controladas pelo sistema penal. Lutar pelo direito à moradia é lutar pela causa negra. Via de regra é difícil fazer um corte de bisturi nessas questões raciais, políticas e de classe, porque elas se misturam muito. Então, tem o racismo, mas tem as minhas lutas também por moradia, por uma segurança pública que não seja tão preconceituosa e higienista — não meramente eugenista, no sentido racista, mas higienista. Aqui a pobreza é vista como uma sujeira, uma mancha no cartão postal de Curitiba, que se vende como civilização de primeiro mundo e não convive com a miséria. E isso é uma mentira.
E como é ser uma liderança política negra nessa cidade que, como você disse, vê a pobreza como uma mancha no cartão postal?
Curitiba é uma cidade muito fascista. Foi o berço do integralismo, de células neonazistas no Brasil. Tem um conservadorismo, se considera um berço europeu dentro de um país miscigenado. Em Curitiba, a polícia é muito mais perversa. É bem remunerada, bem equipada, composta por uma classe média do funcionalismo público que é branca, mas não só branca, mas que reivindica essa ascendência europeia. Para nós negros, andar nas ruas, ocupar espaços públicos, é um grande desafio. A polícia aborda, constrange, dissuade as pessoas do propósito de acessar espaços públicos. Curitiba é uma cidade aberta com muros invisíveis. Está aberta, mas sei que não posso entrar.
Você já contou em outras entrevistas que foi vítima de violência policial. Poderia falar um pouco sobre essas situações?
Tenho mais de dez processos de desacato. Em 2004, eu tinha acabado de entrar na universidade. Morava no extremo da periferia e fui abordado dentro de um terminal, às 18h, por um PM que já estava fora do horário do trabalho. Ele me enquadrou na plataforma do ônibus. Eu estava sozinho. Deu a geral, jogou meus livros no chão. Mandou tirar o tênis, bateu a palmilha. Não contente, mandou tirar a meia. Tirei e cheirei a meia. Aí ele me deu um tapa no rosto, me derrubou no chão e me algemou. Na delegacia, a acusação de desacato foi fundamentada no fato de que cheirei a minha meia.
Em 2016, disse a um policial que era advogado e sabia meus direitos. O cara me prendeu porque achou que minha carteirinha era falsa. Outra vez, fui enquadrado numa praça. Não acharam nada e me mandaram sumir dali. Eu disse que não ia sair. Olha como o que estou passando hoje é uma continuidade do que sempre aconteceu. O que é o decoro, ou a quebra dele, senão a interpretação sobre minha forma de agir e falar? E que é um poder subjetivo que o Estado tem para condenar alguém? Não é exatamente o mesmo poder que um policial tem quando tá com a arma na tua cara e, qualquer coisa que você disser, ou não disser, ele pode dizer que você está desacatando a autoridade dele? É isso que a polícia faz, que a Câmara faz, que sofro ao longo de décadas. Então, de algum modo, já estou acostumado.
Apesar dos ataques que você denunciou ter sofrido, há também o apoio de lideranças políticas, artistas que têm aderido à mobilização pela manutenção do seu mandato. Como tem sido receber esses apoios de personalidades nacionais? Isso te motiva a continuar na política?
É muito da hora saber que a gente tem apoio de gente como Leci Brandão, Ice Blue, do Racionais, políticos, artistas, líderes de movimentos como Galo de Luta, liderança dos entregadores de aplicativos, e tantas outras. Tenho vários planos de continuar desenvolvendo meus projetos. Um deles é trabalhar com egressos do sistema carcerário. Oferecer integração no mundo do trabalho, assistência social, mas também uma conscientização sobre o sistema de segurança pública, sobre a lógica que permeia esse sistema para libertar pessoas da cadeia de criminalização que gera reincidência cada vez mais. E tenho outro projeto de narrativas marginais na literatura, cinema e música para jovens.
Além dos projetos, quero construir um movimento de dimensão nacional, junto com essas grandes lideranças que você apontou — e tantas outras. Quero que a gente construa uma forma alternativa de organização que nos respeite e que tenha nós mesmos. Queremos negros e pobres como protagonistas. Hoje não temos. A gente quer que aconteça isso um dia também no PT, mas se vermos o primeiro escalão dos assessores do presidente Lula, a cada 30 [brancos] vai ter um negro pra cumprir uma cota e colorir uma foto. Quem domina é a elite branca.
Essa proposta é de formação de um partido?
Não, mas um movimento de caráter nacional, que abrigue vários outros movimentos, com suas bandeiras, mas num caráter talvez até suprapartidário. Onde a gente tenha um espaço para discutir nossas ideias, e que seja protagonizado por nós. Discutir, organizar e sermos nós. Coisa simples, mas que a gente ainda não tem oportunidade no Brasil.
source https://apublica.org/2022/05/renato-freitas-um-vereador-entre-o-racismo-e-o-fundamentalismo-religioso/
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