A escalada de tensão no Mali, que opõe a junta militar atualmente no poder a grupos jihadistas ativos no país, matou mais de 500 civis entre os meses de janeiro e março deste ano. Os dados constam de um relatório da ONU (Organização das Nações Unidas) divulgado na segunda-feira (30), segundo a agência Reuters.
Em relação ao trimestre anterior, o número de mortes aumentou 324%, o que expõe a incapacidade da junta militar encabeçada pelo coronel Assimi Goita para combater os abusos dos direitos humanos e frear a ação de organizações extremistas ligadas à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico (EI).
Ao usar a expressão “elementos militares estrangeiros”, o documento também sugere o envolvimento do Wagner Group, uma misteriosa organização paramilitar russa associada a massacres não apenas no Mali, mas também em diversos países em conflito nos quais os mercenários marcam presença.
“As forças armadas do Mali, apoiadas em certas ocasiões por elementos militares estrangeiros, aumentaram as operações militares para combater o terrorismo, algumas das quais às vezes terminaram em sérias alegações de violações dos direitos humanos“, diz o relatório da Minusma, a missão de paz da ONU no Mali, sem citar nominalmente o Wagner Group.
O documento indica que o exército maliano foi responsável por 320 violações dos direitos humanos entre janeiro e março, contra apenas 31 do trimestre anterior. O caso mais chocante foi registrada em março, em Moura, uma vila controlada por extremistas islâmicos. Na ocasião, centenas de pessoas teriam sido mortas durante quatro dias de intervenção.
No caso do massacre de Moura, testemunhas afirmaram que os militares locais estavam acompanhados de combatentes brancos, sugerindo a presença dos mercenários russos. “Além das execuções sumárias, as forças de segurança também supostamente estupraram, saquearam, prenderam e detiveram arbitrariamente muitos civis durante a operação militar”, afirma o relatório.
França x Rússia
Os relatos de abusos surgem no momento em que o Mali perde seu principal parceiro ocidental para gestão da segurança, a França. Desde o ano passado, as forças armadas francesas iniciaram um processo de retirada de tropas, devido a um desacerto entre os dois governos. A decisão de Paris gerou dúvidas quanto à capacidade de o Mali sustentar os avanços na luta contra o jihadismo.
Uma das razões para a retirada francesa foi justamente o acordo com os mercenários do Wagner Group firmado pelo coronel Assimi Goita, que assumiu o poder no golpe de Estado de maio de 2021.
Fontes sustentam que o pagamento pelos serviços da organização russa seria de US$ 10,8 milhões por mês, dinheiro que vem da extração de minerais, acreditam especialistas. O governo do Mali, entretanto, alega que os russos são apenas instrutores e “não estão em funções de combate”.
Organização obscura
Oficialmente, o Wagner Group sequer existe. Mas há indícios de que ao menos dez mil pessoas já atuaram para a misteriosa organização, cuja primeira empreitada de que se tem notícia foi em 2014, quando se aliou a separatistas pró-Rússia contra o governo da Ucrânia. Desde então, há sinais de presença do grupo em conflitos em diversos países, como Líbia, Síria, Sudão, Moçambique e República Centro Africana.
Em agosto, um tablet perdido ajudou a expor os segredos da organização. Uma reportagem da rede britânica BBC teve acesso ao equipamento, que expõe a participação da milícia na guerra civil da Líbia, sugere a proximidade entre associados do grupo e o governo russo e dá fortes indícios de que os mercenários são responsáveis por inúmeros crimes de guerra, atuando inclusive a mando do Kremlin.
Por que isso importa?
A instabilidade no Mali começou com o golpe de Estado em 2012, quando vários grupos rebeldes e extremistas tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.
A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos salários dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.
Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem o militar na formação do novo governo.
Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população malinesa rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.
Militarmente, especialistas e políticos ocidentais enxergam uma geopolítica delicada na região, devido ao aumento constante da influência de grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda e ao EI e à consequente explosão da violência nos confrontos entre extremistas e militares. Além disso, trata-se de uma posição importante para traficantes de armas e pessoas, e o processo em curso de redução das tropas franceses, que atuam no país desde 2013, tende a piorar a situação.
Os conflitos, antes concentrados no norte do país, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. A região central do Mali se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra forças do governo.
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