Entrevista publicada originalmente no portal ONU News
Em entrevista à ONU News, a diretora-executiva da Aliança para a Internet Acessível, Sónia Jorge, afirmou que a pandemia de Covid-19 causou um reconhecimento dos níveis de desigualdade digital em todo o mundo.
Sónia Jorge foi uma das participantes do lançamento do Roteiro para Cooperação Digital da ONU (Organização das Nações Unidas), apresentado pelo secretário-geral António Guterres, em junho.
ONU News: A pandemia de Covid-19 está a acelerar as mudanças nesta área?
Sónia Jorge (SJ): Mudanças, infelizmente, não estão acontecendo muito rápido. O que está havendo é um reconhecimento de que a crise da desigualdade digital a nível mundial, mas principalmente em certas áreas do mundo, é crítica. É uma crise que este vírus da Covid-19 veio desmascarar.
Isso quer dizer que mais de 50% da população mundial que não tem acesso à internet está numa desvantagem terrível, não só no acesso à informação, mas no acesso à educação, dados sobre saúde, possibilidades de trabalho e formas de compensar a crise econômica.
Outro problema é que muitos não têm um acesso que seja bom suficiente para, por exemplo, usufruir da educação em linha, informações de saúde ou simplesmente informação geral sobre o estado do país, negócios, informações básicas.
Portanto, a crise da desigualdade digital, é mais complexa do que parece, porque não é só ao nível da falta de acesso. Mesmo aqueles que têm acesso, não têm acesso de qualidade suficiente.
As populações em países como, por exemplo, Moçambique, Cabo Verde ou até mesmo no Brasil, que supostamente estão conectados, muitas vezes não têm acesso à velocidade, aos dados e aos dispositivos que lhes proporcionem as oportunidades que o desenvolvimento digital possa dar.
Imagine o número de crianças que não têm escola, as escolas fecham, e passam a ser virtual. Muitos deles nem têm aparatos que sejam suficientes para usufruírem da educação. E o mesmo em relação à saúde, para terem consultas virtuais.
Há muitos trabalhos que as pessoas não podem fazer em casa, não podem ser virtuais. Há muitas desvantagens da falta de acesso, não só para os que estão excluídos, mas também os que tem uma certa inclusão, mas que não é suficiente para uma grande percentagem nos países desfavorecidos.
ONU News: Como este problema está distribuído a nível mundial?
SJ: A nível mundial, diz-se que à volta de 50% da população mundial está conectada. Mas entre 20 a 30% dessa população não está bem servida, isso quer dizer, não tem conectividade significativa, conectividade com capacidade equivalente a 4G, dados suficientes, aparatos com disponibilidade e acesso frequente. Se a pessoa tem acesso uma vez por mês, não é a mesma coisa que ter diariamente.
Depois, se for a ver o resto da população que não tem acesso nenhum, a maioria está na África e no sul da Ásia. São populações rurais, remotas, pobres, mulheres e adolescentes meninas.
Isso quer dizer que existem barreiras a nível de rendimentos, mas também a nível da indústria, de infraestrutura, de serviços, e outras que têm a ver com fatores sociais e culturais, que não permitem a certos grupos terem acesso por outros problemas que, infelizmente, ainda não se conseguiu lidar.
Isso tem a ver com a desigualdade a nível do gênero e também desigualdade no mundo inteiro, todos os problemas que ainda não se conseguiram resolver, relacionados com a pobreza. Depois, a nível do número específico das diferentes regiões, na África apenas cerca de 25% tem acesso aos serviços digitais. A nível da Ásia é um pouco maior, mas nos países desfavorecidos do Sul é à volta de 30 a 35%.
Existem barreiras a nível de rendimentos, mas também a nível da indústria, de infraestrutura, de serviços, e outras que têm a ver com fatores sociais e culturais
– Diretora-executiva da Aliança para a Internet Acessível, Sónia Jorge
ONU News: Além de regiões, que outros tipos de desigualdades existem?
SJ: Se for a ver a nível de gênero, na Ásia, o fosso digital de gênero na Ásia é mais de 50%. Das pessoas que estão ligadas e que têm acesso, a maioria são homens, as mulheres estão muito mais em desvantagem.
Nos países de África, e mesmo em países fora dessas regiões, em que esse fosso possa não parecer tão grande a nível do acesso, continua a ser grande a nível do uso, por causa dos tais problemas culturais e sociais que não deixam as mulheres e meninas usufruírem das oportunidades que os homens têm, ficando ainda mais em desvantagem.
A nível de rendimentos, as mulheres continuam a receber, em média, dependendo das regiões, entre 30 a 40% dos salários dos homens. Portanto, a nível do custo do acesso à internet, para as mulheres é uma percentagem muito maior do rendimento mensal médio do que para os homens.
Assim, não só a acessibilidade e o custo é a barreira principal, mas é a barreira que exclui muito mais as mulheres e os pobres, principalmente as mulheres pobres e rurais. É um problema complexo, mas não difícil de lidar. Aliás, para lidar com ele, é preciso um compromisso.
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