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sábado, 12 de dezembro de 2020

ARTIGO: Tropeços da diplomacia na independência e no império

Este artigo foi publicado originalmente na revista Mundorama

por Paulo Roberto de Almeida, diplomata e professor universitário

Com poucas exceções aferíveis – como a miséria da atual diplomacia bolsolavista e dois ou três episódios localizáveis de “desalinhamentos” políticos –, a diplomacia brasileira é geralmente tida por excelente, de altíssima qualidade, o que se explica por uma espécie de “pecado original” ao contrário; ou seja, sempre fomos bons desde a origem, e geralmente estivemos acima de qualquer crítica, em grande medida, ao que se alega, graças ao rico legado da inteligente e esperta diplomacia lusitana, que entrou, por assim dizer, em nosso “código genético”.

Essa filiação precederia inclusive a formação do Estado nacional, pois viria de Alexandre de Gusmão, considerado o “avô” da nossa diplomacia; de fato, ele foi o construtor principal do nosso mapa atual, sendo que o “pai”, o Barão do Rio Branco, completou a cartografia em diversos pontos remanescentes.

Sem pretender contrariar essa história exemplar, pretendo selecionar alguns exemplos menos primorosos de nossa história diplomática, que aliás começam, justamente, antes da independência, pois que determinadas decisões continuaram pesando do lado dos compromissos externos, sem que a diplomacia profissional, ou os dirigentes políticos tenham conseguido reverter o peso de uns poucos legados negativos da herança lusitana.

Nada a ver com nosso estatuto colonial obscurantista, sem indústrias, sem universidade, sem sequer escolas dignas desse nome, e isto por causa de um dos líderes considerado o protótipo do absolutismo esclarecido, o marquês de Pombal. Ao expulsar os jesuítas, ele também condenou índios, pobres e pretos a ficar sem qualquer instrução, mesmo a mais elementar.

ARTIGO: Tropeços da diplomacia na independência e no império
Fachada do Palácio Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores. Foto: Leonardo Sá/Agência Senado

Mas não vamos considerar nada antes de 1808, que é quando se começa a fazer política externa a partir do Brasil, com o olho no que era, pelo menos provisoriamente, a sede do gigantesco império ultramarino português, cantado em prosa e verso desde Camões e, mais cientificamente, pelo historiador Charles Boxer.

A vinda da corte para o Brasil dá início a uma série de decisões e iniciativas no plano da política externa que continuariam exercendo efeitos já no Estado independente, e nem sempre de maneira positiva, o que sustenta a nossa tese do “pecado original” ao contrário.

Já instalado no Rio de Janeiro, e tendo como seu auxiliar nos negócios estrangeiros D. Rodrigo de Souza Coutinho, o futuro conde de Linhares, o príncipe regente D. João declara guerra a França, a que se segue, já em janeiro de 1809, a invasão de Caiena, que ficará sob administração portuguesa até 1817, quando se reconciliam as duas nações, libertas, enfim, das turbulências napoleônicas.

A primeira medida negativa da quase sempre lúcida diplomacia portuguesa foi a assinatura, em 1810, dos dois tratados entre Portugal e Grã-Bretanha, relativos à aliança defensiva (ou seja, a confirmação da dependência lusitana do poderio britânico) e ao comércio e navegação, o que não apenas conforma um perfeito protótipo dos “tratados desiguais” – estatuto de extraterritorialidade dos súditos britânicos em relação a Justiça local – como confirma o antigo tratado de Methuen (1703), outro protótipo da assimetria estrutural no comércio – vinhos portugueses contra tecidos ingleses –, e que figuraria, como exemplo perfeito, para a teoria das vantagens comparativas na obra de David Ricardo.

O tratado comercial, que atribuía privilégios tarifários à Grã-Bretanha, permaneceria vigente, por incapacidade da diplomacia brasileira de derrogá-lo na independência, ou depois dela, até o Segundo Reinado, quando, em 1844, finalmente se proclama nossa independência comercial.

Mais negativo ainda, do ponto de vista das relações regionais, foi a ambição portuguesa de dominar a margem superior do Rio da Prata, materializada originalmente com a fundação da colônia de Sacramento (1680), continuou com as incessantes pugnas contra os castelhanos pelo domínio daquele enclave, enfim trocado no tratado de Madri pelas reduções dos jesuítas nos Sete Povos das Missões (no Rio Grande do Sul), mas que nunca deixou de atiçar os desejos lusitanos de obter livre acesso às regiões do vasto hinterland brasileiro por meio das bacias do Paraná-Paraguai.

Depois de uma primeira tentativa em 1811, D. João finalmente resolve incorporar a então Banda Oriental aos domínios portugueses, enviando a expedição de Lecor em 1816, que consegue tomar Montevidéu em 1817.

As guerrilhas de Artigas não conseguem resistir aos invasores portugueses, e o território se vê dominado pelo governo instalado no Rio de Janeiro, no mesmo momento em que as cortes portuguesas obrigavam ao retorno de D. João VI a Lisboa e finalizavam a primeira Constituição do Reino, com o efeito involuntário de precipitar a independência brasileira.

Na Carta que D. Pedro outorga ao Império do Brasil, a Banda Oriental é incorporada ao território brasileiro como “Província Cisplatina”, com o outro efeito de precipitar a saída dos portugueses de Montevidéu, deixando uma herança bélica para o novo imperador, que relutaria por vários anos em se desfazer daquele território ambicionado por Buenos Aires.

O confronto, o primeiro do novo Estado independente, vai contaminar as relações do Brasil não apenas com as Províncias Unidas do Rio da Prata, mas também com os franceses e ingleses, que exigem reparações pelo bloqueio exercido pelo Brasil contra a livre navegação naquelas margens.

As pressões britânicas sobre o Rio de Janeiro e Buenos Aires lograram, finalmente, alcançar um armistício entre as duas potências do Prata, em 1828, mas o Uruguai e o Paraguai (independente desde 1811, mas visado pelo expansionismo argentino, em sua tentativa de reconstituir o vice-reino do Rio da Prata) permanecerão, não exatamente como “algodão entre cristais”, mas como pontos de fricção entre elas durante, praticamente, mais de um século e meio, independentemente da aliança temporária durante a Guerra do Paraguai.

A diplomacia brasileira começara realmente americana, sob a condução do primeiro chanceler, o “patriarca da independência”, José Bonifácio, mas seu expurgo do governo, desde o fechamento da Assembleia Constituinte por D. Pedro, no final de 1823, levou-a novamente a se envolver nos assuntos europeus, mais exatamente na sucessão de D. João VI em Portugal e nas relações sempre difíceis com os vizinhos espanhóis, franceses e os austríacos, também presentes nos assuntos do Brasil pelo casamento de D. Pedro com Leopoldina.

Ela só volta a converter-se novamente em uma diplomacia mais americana com as Regências, que infelizmente coincidem com conflitos internos no plano político, revoltas regionais que ameaçam a unidade do Império, o que inviabiliza a superação do legado negativo deixado pelas aventuras platinas da corte portuguesa e pela proverbial subordinação à hegemonia britânica.

O fato é que a diplomacia do Império não teve condições, provavelmente nem intenção, de cumprir os objetivos maiores que já tinham sido apontados pelos seus dois primeiros estadistas, Hipólito da Costa e José Bonifácio, que preconizavam a cessação imediata do tráfico africano, a abolição progressiva do regime escravocrata e um programa de imigração europeia para explorar as riquezas potenciais do Brasil no domínio agrícola.

Tampouco se conseguiu formular uma política comercial independente das amarras da “tarifa inglesa” e de promoção do desenvolvimento industrial, como os dois também apontavam, com os olhos no mesmo exemplo inglês. Quando isso se fez, na primeira década do Segundo Reinado, as alíquotas protecionistas tinham objetivos mais fiscalistas do que propriamente industrializantes; assim continuou durante a maior parte do Império, a despeito da emergência parcial de concepções ligadas à industrialização.

Dois dos maiores fracassos brasileiros, não simplesmente diplomáticos, mas representativos do “espírito” (se o conceito se aplica) de suas classes dirigentes são vergonhosamente evidenciados pela sua extrema relutância em cessar o tráfico e abolir a escravidão, a despeito das pressões estrangeiras e do clamor de mentes mais avançadas.

A vergonha propriamente diplomática consistiu em responder ao arrogante Bill Aberdeen por meio de uma nota oficial que defendia o tráfico africano como um “comércio legítimo”, assim como, mais adiante, o instituto da escravidão como “direito de propriedade”. A hipocrisia chegava ao cúmulo de muitos dos escravos libertos pelas incursões inglesas nas águas brasileiras serem postos a serviço do Estado imperial, e caberia investigar se alguns foram atribuídos à pequena Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros.

Dois dos maiores fracassos brasileiros, não simplesmente diplomáticos, são evidenciados pela sua extrema relutância em cessar o tráfico
e abolir a escravidão

As delongas, tanto na interrupção do tráfico quanto na abolição da escravidão, e na ausência de políticas de reforma agrária e de educação popular na sequência – como pretendia um espírito avançado como Nabuco –, marcariam para sempre, negativamente, a formação da nação, a que não se subtraiu o elitismo também renitente de sua diplomacia.

Da luta contra Rosas à guerra do Paraguai, a diplomacia se guiou pela ação de grandes estadistas, não, porém, sem deixar alguns resquícios de “expansão imperial” no registro dos vizinhos, o que dificultou a conclusão de negociações fronteiriças que ainda careciam de um quadro negociador adequado para o fechamento de diversos pontos limítrofes.

Por certo, essa tarefa não era facilitada pelo esforço da diplomacia brasileira no sentido de incluir nesses tratados cláusulas tendentes a comprometer os vizinhos com a devolução a seus proprietários os escravos fugidos do Brasil; caberia igualmente efetuar uma lista completa dessas pouco gloriosas tentativas de uma diplomacia submissa aos escravocratas de associar os vizinhos ao nefando regime que persistia no Brasil.

Pelo resto da monarquia, as elites governantes souberam moldar uma diplomacia relativamente eficiente, mesmo se exclusivamente a serviço das classes proprietárias e de seus interesses comerciais e políticos. Ainda que limitada à defesa do café e de alguns outros poucos produtos primários de exportação, a política externa do Segundo Reinado soube apaziguar os ânimos dos vizinhos quanto às supostas pretensões hegemônicas da única monarquia no hemisfério (com exceção do curto e infeliz experimento colonial francês no México) e desarmar quaisquer animosidades contra o país.

Não que todos os diplomatas fossem exemplos de sapiência e bom senso diplomático: Varnhagen, por exemplo, apreciado pelo imperador pelos seus trabalhos de historiografia cortesã, entrou por diversas vezes em choque com a Secretaria de Estado em virtude de suas arrevesadas recomendações de política externa: não apenas no relacionamento com os vizinhos do Prata, e mesmo do Pacífico (nas novas investidas espanholas contra as antigas colônias), mas sobretudo ao pretender que o Império reconhecesse a Confederação por ocasião da guerra de secessão, ou o reino do imperador austríaco Maximilien, no México.

Quanto ao “resto” dos assuntos diplomáticos, cabe destaque à emissão de títulos da dívida externa, pelos quais os diplomatas – em especial o Barão de Penedo, o mais longevo em Londres, mesmo com a interrupção temporária da ruptura de relações – recebiam gordas comissões dos banqueiros ingleses.

Da mesma forma, a participação de diplomatas nos boards constituídos em conexão com as PPPs do Império, as parcerias público-privadas organizadas com os investidores nos empreendimentos de infraestrutura (notadamente nas ferrovias), podia defender bem mais os interesses desses banqueiros do que os do governo brasileiro, muitas vezes enganado pela contabilidade suspeita das companhias, comprometendo os diplomatas com a “garantia de juros”, pagos em excesso aos espertos capitalistas.

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