Artigo publicado originalmente no Jornal da USP (Universidade de São Paulo)
*por Elza Antônia Pereira Cunha Boiteux, professora de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP
No que diz respeito ao papel de uma Suprema Corte, em especial o Supremo Tribunal Federal, no Brasil, e a Supreme Court, nos EUA, é preciso não confundir três dimensões claras: a função, a composição e a atuação dessas cortes.
Enquanto à função não pode ultrapassar ao papel reservado pela lei, a Constituição, para o exercício normal da jurisdição; a composição é cambiante e depende de uma série de fatores, muitos deles políticos, para a escolha de um membro da Corte, e, por último, a atuação diz respeito muito mais ao impacto social que cada uma das decisões de uma corte suprema irá resultar, na medida em que, como órgão de cúpula, tem decisões vinculantes e de última instância decisional.
A ideia de uma corte suprema está perfeitamente orquestrada a uma teoria da separação dos poderes. A tripartição dos poderes, invenção moderna que Montesquieu em O Espírito das Leis acabou por impulsionar, levou ao advento da limitação do poder absoluto na contemporaneidade, em franca oposição a uma concentração do poder nas mãos de poucos, como foi uma das características do período Moderno.
Tanto nos EUA quanto no Brasil, três componentes chamam a atenção no que tange a sua função primordial: são instâncias de jurisdição natural para o julgamento de certos tipos de casos (principalmente em que estão envolvidos membros-órgãos da República), julgam casos em regime de apelação (ocasião em que são últimas alternativas recursais) e compõem a estrutura final de guarda da Constituição (orientando, julgando e regularizando a compreensão semântica das Cartas Magnas).
A composição, no Brasil de 11 ministros e, nos EUA, de nove membros, está sujeita a variabilidade, apesar do limite de 75 anos no Brasil e do mandato vitalício nos EUA. Tanto nos EUA, quanto no Brasil, que replica o modelo americano, o candidato passa por sabatina no Senado e precisa ser aprovado pela maioria da casa.
Como sua eleição para a suprema corte não é direta, sempre depende de indicação de quem já está no poder, todas as ocasiões em que temos vagas abertas nessas cortes, um incômodo democrático se manifesta, pois, não raro, as escolhas são feitas a partir de ideologias e afinamentos políticos que geram desequilíbrios, incoerências e incertezas quanto ao futuro.
O recente falecimento da juíza mais antiga da Suprema Corte americana, líder da ala liberal, Ruth Bader Ginsburg, permitiu ao presidente Trump indicar ao cargo a católica fervorosa Amy Coney Barret. Esta, associada ao grupo religioso People of Praise, filiada à “Faculdade pela Vida” de Notre Dame, chegou, inclusive, a assinar, em 2015, uma carta à Igreja Católica em que declara que os ensinamentos da Igreja devem ser lidos como a “verdade”.
Liberais nos EUA temem que essa afirmação possa reverter a famosa decisão conhecida como Roe v. Wade, que em 1973, acabou por favorecer a legalização do aborto no país.
No Brasil, a vaga aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello concedeu ao presidente Jair Bolsonaro a possibilidade de indicar um novo ministro para o STF. Como, dos quatro requisitos básicos para o cargo (cidadão brasileiro, maior de 35 anos e menor de 60 anos, notório saber jurídico e reputação ilibada), dois dependem de interpretação da presidência, na medida em que os outros são objetivos, muitos juristas questionaram a indicação, pois encontraram, no currículo do novo indicado, supostos plágios em dissertação de mestrado e informações desencontradas e não comprovadas no currículo, o que, por certo, também feriria não apenas o notório saber jurídico, mas a própria ideia de reputação.
Se as indicações políticas abrem espaço para o debate sobre qual seria o modelo mais adequado para as grandes democracias, isso se dá, em muito, porque tanto nos EUA, quanto no Brasil, esses órgãos de cúpula do Judiciário têm se destacado pelo julgamento de grandes temas que impactam não apenas a vida política, mas, também, as orientações morais e sociais da sociedade.
O STF, por exemplo, nos últimos anos, julgou desde o chamado “mensalão” até o aborto de fetos anencéfalos, do casamento entre casais homoafetivos até recursos da prisão de um ex-presidente da República.
A atuação dessas cortes, assim, se mostra extremamente impactante para a vida social e, se nos EUA, a Supreme Court opera em sigilo de informação, no Brasil, o STF tem transmissões ao vivo em que, qual reality show, vemos as deselegâncias e perdas da compostura de ministros que deveriam primar pelo controle psicológico na atividade de julgar.
Por vezes, inclusive, tais ministros menos elegantes antecipam votos nas mídias, advogam em magazines teses que estão para julgar, tudo o que politiza mais ainda suas esferas de ação.
Se por um lado, o ativismo judicial, seja uma forma de crítica da atuação das cúpulas, seja um incentivo para a sua operação em nível político, não é conceito, a bem da verdade, relacionado a uma ideologia política em particular ou a um partido político em específico, suas inclinações decorrem da própria composição ideológica dos membros, a maioria dentro do órgão e o momento histórico que precisa ser definido.
Como tanto nos EUA quanto no Brasil observamos uma guinada conservadora no âmbito político e, ao mesmo tempo, a indicação para as Supremas Cortes opera a partir de decisões políticas, podemos dizer que uma certa viravolta conservadora tem impregnado nossos órgãos superiores de jurisdição.
Que o direito e a política andam de braços dados não é novidade para ninguém. Porém, ser julgado por critérios objetivos de interpretação jurídica, capacidade técnica e intelectual para o exercício de cargo de tamanha distinção, como no caso das supremas cortes, é uma verdadeira garantia para a liberdade e autonomia democrática de uma nação.
Quando o debate sobre a fórmula ideal de preenchimento das vagas aparece, isso não é apenas sintoma de descontentamento momentâneo, ao contrário, parece ser indicação de déficit democrático nas sociedades modernas.
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