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terça-feira, 8 de dezembro de 2020

ARTIGO: Ideologia, política e Supremas Cortes

Artigo publicado originalmente no Jornal da USP (Universidade de São Paulo)

por André Ramos Tavares, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP

Há uma suposição bastante generalizada de que a Suprema Corte dos EUA tem se tornado mais conservadora nos costumes e na economia, um processo que teria tido início em virtude das recentes indicações para a Corte, com nomes supostamente comprometidos com uma agenda ultraconservadora.

O pano de fundo que nos move nesta reflexão é o seguinte: mudar os membros de uma suprema corte pode alterar o Direito de um país, sem que se altere esse Direito “no papel”, ou seja, sem mudanças no texto da Constituição e das leis?

A resposta recorrente da literatura jurídica mundial é pela possibilidade, o que certamente pode causar um choque inicial ao leigo em assuntos jurídicos. Impõe-se, porém, grande cautela ao assimilar essa resposta, pois ela não significa que o país possa ser comandado pela toga.

Aliás, em lugares nos quais um desvirtuamento dessa magnitude ocorreu – e recentemente a Hungria tem sido apontada como um exemplo – assistiu-se, logo a seguir, a uma espécie de “contra-ataque” à Corte e sua independência, inclusive pelas urnas, quando eleitores escolheram representantes que realizaram o chamado court-curbing.

Neste fenômeno, mina-se o poder do Tribunal que adotou postura incômoda. Na Hungria esse “remédio” parece ter agravado a crise democrática.

Portanto, a base da afirmação que fiz acima não pode ser confundida com uma permissão, uma carte blanche para a prática da ideologia como razão de decidir em sede de jurisdição. Constatar que o Direito também é construído por decisões judiciais é apenas reafirmar a essência cultural e dinâmica do Direito.

ARTIGO: Ideologia, política e Supremas Cortes
Suprema Corte dos EUA, em Washington (Foto: CreativeCommons/Wally Gobetz)

Nenhuma sociedade aberta, no contexto ocidental, almeja um Direito petrificado, de aplicação automática por juízes-autômatos, reprodutores “fiéis” das leis, juiz soldado da lei. Aliás, essas figuras são verdadeiras fantasias de certos teóricos.

No caso do juiz, a ideia de que deveria ser um escravo da lei serve apenas a escamotear a inevitável subjetividade, em prol da construção ficcional da imagem de engrenagens seguras e precisas – matemáticas mesmo – de funcionamento das decisões jurisdicionais. Ocorre que, na realidade, estas são guiadas por um inevitável subjetivismo, permeado legitimamente pela cultura de sua época.

A questão crucial, no nosso tema, é exatamente o limite entre o que é legítimo e, em grande medida, inevitável (seja inclusive pelo caráter político das Constituições, como advertia Mortati) e, de outro lado, aquilo que é extremamente corrosivo das bases da democracia.

Em outros termos, os limites, expressos ou imanentes ao sistema democrático e de poderes autônomos, acabam dependendo fortemente da cultura da sociedade, a dar lastro ao que, em cada época, compreende-se como intransponível, em face das decisões fundamentais da sociedade, que são exatamente as decisões-limitadoras já inseridas na Constituição.

Dentro desse quadro, existem duas situações que devemos distinguir. Uma é a fuga de seus limites por ativismo deletério da Corte, geralmente por se enxergar em uma missão olímpica. Outra é a fuga de limites por quebra do decoro técnico e engajamento com uma missão política, geralmente por pressão de outros poderes.

Há algumas sinalizações objetivas para identificar a eventual ocorrência deste último fenômeno, da politização ou desvio da justiça constitucional. Falando do caso brasileiro, por exemplo, não é possível abandonar a nossa Constituição social para adotar um Direito que prioriza e privilegia o grande capital.

Não se poderia, ainda, transitar de um Direito garantista para um essencialmente punitivista, criando um Estado policialesco, combatido com todas as forças pela sociedade brasileira que elaborou o texto de 1988. Assim também não se pode alterar o modelo econômico capitalista por um modelo outro, como o comunista de produção.

Alterações como essas sinalizam rupturas e, como tais, dependem de largos consensos, não de decisões judicialiformes. Ainda assim, as Cortes podem flertar com essas significativas mudanças, na vã crença de que devem conduzir as sociedades por outros caminhos não validados democraticamente. A permanência dessa situação dependerá da tolerância da sociedade e dos poderes constituídos.

Qualquer Suprema Corte alinhada ao modelo norte-americano tem por função básica a defesa da Constituição, jamais sua deposição. No caso brasileiro, esse comando está expresso no art. 102. Ou seja, a própria existência da Corte só se justifica para atender a essa finalidade, que exige limites.

ARTIGO: Ideologia, política e Supremas Cortes
O presidente dos EUA, Donald Trump, em comício eleitoral no estado do Arizona, em outubro de 2016 (Foto: Flickr/Gage Skidmore)

Fugir do pressuposto de que há limites, por mais complexo que se revele no dia a dia, para assumir a feição de um poder político, é inversão que desabilita a própria razão de ser da Corte.

Algumas das melhores ilustrações desses limites advêm dos EUA. É famoso o episódio em que F. Roosevelt pretendeu acrescentar mais seis integrantes à Suprema Corte, composta por nove Justices, para, a partir daí, mudar o posicionamento da Corte, que era contrário à sua política do New Deal.

Se tivesse sido bem-sucedido nessa operação, teria também destruído um dos pilares do Estado de Direito, rebaixando a Corte, nesse caso, a órgão auxiliar do poder político de plantão.

Nos dias atuais, o anúncio feito por Trump de que pretende levar o resultado das eleições norte-americanas, que lhe impuseram uma derrota, à Suprema Corte, são palavras que soam como ameaça, porque insinuam um comprometimento ideológico da Corte.

As implicações de afirmativas como as de Trump constituem um dos grandes temores da teoria da Constituição, que é ver a Corte Suprema tornar-se uma terceira câmara política.

Ainda assim, resta um último ponto. Há, como assinalei, grande margem para interpretações diferentes, um espaço legítimo de manobra, preenchido em boa medida – mas não apenas – pela cultura da época, pela visão de mundo e pela formação dos integrantes da Corte, pelas diferenças de assimilação e percepção dos casos concretos e pelo nível de autovigilância pessoal com esses elementos.

Nesses espaços é possível assistir a viragens legítimas. Muitas delas, aliás, representam grandes conquistas civilizatórias. A única solução, em face desse outro pressuposto, é a mudança do modelo de indicação dos integrantes da Corte, de maneira a garantirmos alternância e pluralismo na Corte.

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