Usuários do aplicativo de mensagens chinês WeChat, que tem mais de um bilhão de perfis cadastrados em todo o mundo, receberam nos últimos dias uma mensagem avisando que os dados pessoais deles são armazenados em servidores na China. O alerta ampliou o debate sobre privacidade e controle de conteúdo por parte do Partido Comunista Chinês (PCC), que impõe forte censura à manifestação de opinião no país e tem estendido seus tentáculos para além das próprias fronteiras.
O armazenamento citado no alerta inclui curtidas, históricos de navegação e pesquisa, comentários e uploads de conteúdo. Além disso, o aplicativo também lembrou os usuários que o comportamento deles está sujeito ao contrato de licenciamento e à política de privacidade do WeChat, segundo informações da rede Radio Free Asia..
De acordo com o jurista norte-americano Teng Biao, a mensagem enviada pelo WeChat não muda nada na prática, vez que Beijing legalmente já tem acesso ao conteúdo do aplicativo. Mas ela é um lembrete de que o governo chinês fiscaliza e censura todo conteúdo online que esteja a seu alcance.
O PCC “sempre usou o WeChat como forma de exportar sua censura para além de suas fronteiras“, disse Teng, alertando que é necessário maior atenção global aos riscos que o aplicativo representa à segurança nacional das nações ocidentais.
O jurista explica que, pela lei de segurança cibernética nacional da China, empresas como a Tencent, que administra a ferramenta, são obrigadas a colaborar com o PCC caso seja exigido o compartilhamento de qualquer dado que julgue necessário. Nas palavras dele, o aplicativo é “parte integrante do programa de controle totalitário de alta tecnologia” no país asiático.
Em maio de 2020, pesquisadores da Universidade de Toronto, no Canadá, já haviam alertado que os usuários do WeChat, mesmo estrangeiros, estão “sujeitos à vigilância de conteúdo abrangente que anteriormente era considerada exclusivamente reservada para contas registradas na China”.
O estudo aponta que documentos e imagens transmitidos entre perfis do aplicativo, mesmo no exterior, passam por vigilância de conteúdo por parte da China. Os arquivos são analisados em busca de conteúdo politicamente sensível, um processo inserido na rede mais ampla de censura digital chinesa conhecida como Grande Firewall.
Perfis excluídos
Casos recentes ilustram a situação. Em julho do ano passado diversos perfis relacionados a temas LGBT foram excluídos do WeChat por terem supostamente “violado as regras” da plataforma, sem qualquer explicação sobre quais teriam sido essas regras. Foram apagadas histórias pessoais de usuários, fotos e informações sobre eventos. À época, especialistas associaram o ocorrido ao aumento do controle sobre conteúdo LGBT por parte do PCC.
Mais recentemente, em janeiro deste ano, o então primeiro-ministro australiano Scott Morrison perdeu acesso ao perfil que mantinha no aplicativo. A conta do premiê tinha cerca de 76 mil seguidores e continha fotos e informações políticas.
Na ocasião, Morrison enfrentava uma disputa acirrada pela reeleição, sendo que a relação entre Austrália e China era uma questão relevante na corrida eleitoral. O Partido Trabalhista, de oposição, venceu o pleito, realizado em maio.
Por que isso importa?
No “ranking da liberdade” da ONG Freedom House, com sede em Washington, a China está entre os últimos colocados, com base em 25 medidas de direitos políticos e liberdades civis. O país soma nove pontos de cem possíveis, acima apenas de outras 13 nações que têm pontuação ainda mais baixa. E Hong Kong, embora opere em um sistema diferente, se aproxima cada vez mais do padrão chinês.
Na China, o simples fato de citar a democracia leva à repressão do Estado. Algo que ficou evidente justamente nos protestos de 2019 em Hong Kong, que até hoje rendem prisões e denúncias contra seus organizadores e participantes. Segundo a ONG Hong Kong Watch, baseada no Reino Unido, até o dia 31 de janeiro deste ano, 10.294 pessoas foram presas por motivação política no território autogovernado, sendo que cerca de 2,3 mil foram posteriormente processadas pelo Estado.
A internet também deixa claro que os valores democráticos não têm vez na China, que bloqueia as redes sociais dos EUA e utiliza suas próprias versões, estas submetidas à censura do Partido Comunista Chinês (PCC). É o caso do Weibo. Lá, uma postagem do jornal estatal People’s Daily sobre o ataque do Ministério das Relações Exteriores à democracia norte-americana recebeu inicialmente cerca de 2,7 mil comentários. Depois de a censura começar a agir, restaram pouco mais de uma dúzia.
E a repressão imposta pela China a seus cidadãos já ultrapassa as próprias fronteiras. Artigo publicado pela revista Foreign Policy em outubro do ano passado mostra como o PCC, fazendo uso da lei de segurança nacional de Hong Kong, tem poder para calar críticos que vivem a milhares de quilômetros de distância.
Aconteceu, por exemplo, com o empresário britânico Bill Browder, alertado pelo Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido a não viajar para países que honrem os tratados de extradição com Hong Kong. Ativista em defesa de sanções contra funcionários do governo britânico cúmplices de abusos dos direitos humanos, ele poderia ser preso e extraditado para o território controlado pela China por seu discurso crítico contra os abusos cometidos pelo PCC.
Isso porque a lei de segurança nacional prevê a acusação de qualquer pessoa, em qualquer lugar, por discurso considerado hostil aos interesses de segurança chineses. “Os ditames da China afetam os esportes, Hollywood, o mundo editorial, os meios de comunicação e o jornalismo, o ensino superior, as empresas de tecnologia e mídia social e muito mais”, diz o artigo.
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