Ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central que historicamente seguem a cartilha do Kremlin mudaram de posição no que tange à guerra em curso na Ucrânia. O distanciamento de Cazaquistão e Uzbequistão em relação a Moscou ficou evidente com o êxodo de russos que fogem da mobilização militar anunciada por Vladimir Putin. As duas nações vizinhas têm recebido sem questionar os reservistas em fuga, uma ação que no futuro próximo tende a enfurecer o presidente. As informações são da agência catari Al Jazeera.
Desde 21 de setembro, um dia após Putin anunciar a mobilização, cerca de cem mil russos entraram no Cazaquistão, de acordo com o Ministério do Interior cazaque. E o país abriu suas fronteiras, com o ex-ministro das Relações Exteriores Kassym-Jomart Tokayev orientando o governo a ajudar os imigrantes.
“A maioria deles tem que sair por causa da situação desesperadora. Temos que cuidar deles e garantir sua segurança”, disse Tokayev.
O governo cazaque tem feito mais que acolher os vizinhos. O Ministério das Relações Exteriores afirmou que não reconheceria o referendo realizado nas regiões ucranianas controladas pela Rússia para consultar a população local sobre a anexação. Seguiu o mesmo caminho dos governos ocidentais, que não so contestam a votação forjada, com denúncias de pessoas forçadas a preencher cédulas sob ameaça armada, mas também preparam novas sanções aos envolvidos no processo.
Questionado se planeja extraditar os reservistas russos, o Cazaquistão refutou essa hipótese. “Uma busca por russos por escritórios de recrutamento não é motivo para extradição”, disse o ministro de Assuntos Internos Marat Akhmetzhanov na terça-feira (27).
Os russos sequer precisam de passaporte para entrar no Cazaquistão. A facilidade e a receptividade fizeram surgir filas extensas na fronteira terrestre, com carros e ônibus superlotando os dez postos de checagem dispostos pelos mais de 7,6 mil quilômetros da linha divisória. Ativistas que monitoram a situação dizem que a espera chega a levar três dias. Hoteis e albergues cazaques estão lotados, e o dono de um cinema ganhou as manchetes ao permitir que russos dormissem no seu estabelecimento.
No entanto, o país tem sido apenas uma escala para a maioria dos russos, sendo que dois terços dos cem mil visitantes já foi embora para outras nações.
Nação mais populosa da Ásia central, o Uzbequistão também tem recebido dezenas de milhares de russos, mas evita provocar Putin. Inclusive, o presidente Shavkat Mirziyoyev demitiu em março o então ministro das Relações Exteriores Abdulaziz Komilov, por afirmar em março que o país não reconheceria a independência das repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk.
Alisher Ilkhamov, diretor uzbeque do Due Diligence Central Asia, um think tank sediado em Londres, diz que as ações do presidente “beiram a covardia e a falta de princípios” e atrela tal comportamento ao medo de prejudicar os laços com Moscou.
O mais distante que os uzbeques conseguiram ir foi proibir seus cidadãos de se alistar para lutar na guerra em defesa da Rússia. O anúncio foi feito em 23 de setembro pela Administração Espiritual do Uzbequistão, o principal órgão de regulamentação dos assuntos religiosos no país.
Enquanto o Turcomenistão mantém suas fronteiras fechadas, mesmo tendo se afastado de moscou há alguns anos, outros dois países da Ásia Central, Tadjiquistão e Quirguistão, continuam recebendo russos, embora sem manifestações dos governos de oposição à guerra.
O fluxo de imigrantes criou uma situação no mínimo curiosa. No Tadjiquistão, os cidadãos locais têm se vingado dos russos que nas últimas décadas vêm discriminando os tadjiques que imigram para a Rússia em busca de emprego. Agora são os imigrantes russos que precisam ouvir piadinhas pelo fato de não saberem falar tadjique e de não conseguirem sequer se localizar nas novas cidades em que vivem.
Protestos populares e êxodo de reservistas
A mobilização militar parcial anunciada por Putin no dia 20 de setembro colocou a Rússia em ebulição de uma forma que a própria guerra não havia conseguido fazer. Desde então, uma nova onda de protestos populares varreu o país, algo que não se via desde que a legislação nacional foi endurecida para silenciar os dissidentes, em março. Também teve início um êxodo de cidadãos, em sua enorme maioria homens fugindo do alistamento para nações vizinhas. Até mesmo aliados passaram a contestar o governo.
Somente na primeira semana que sucedeu o anúncio da mobilização, a ONG OVD-Info, que monitora a repressão estatal na Rússia, registrou quase 2,5 mil detenções em protestos populares contra a decisão do Kremlin. E a entidade alerta que o número real tende a ser bem maior, vez que divulga apenas os dados referentes a nomes que conseguiu confirmar, com base em listas fornecidas pelas autoridades, e que recebeu autorização para divulgar.
Em todo o país, voltaram a ser comuns as cenas de policiais usando a força para deter manifestantes nas ruas, algo que não vinha acontecendo nos meses anteriores. Na Sibéria, autoridades locais relataram que um oficial de recrutamento foi gravemente ferido a bala por um manifestante que também incendiou o escritório onde atuava o funcionário do governo. Episódio parecido ocorreu na cidade de Uryupinsk, na região de Volgogrado, onde um coquetel molotov atingiu um centro de recrutamento.
Muitos cidadãos em idade de recrutamento optaram por deixar o país, com relatos de fronteiras lotadas em países vizinhos como Geórgia, Mongólia e Cazaquistão. Voos da Rússia para Armênia, Turquia e Azerbaijão, países que fazem fronteira com o território russo e não exigem visto de entrada, rapidamente se esgotaram.
Críticas de aliados
Mesmo importantes figuras pró-Kremlin têm encontrado motivos para condenar a mobilização. Não pelo que ela é, mas pela forma como vendo sendo feita. Caso de Margarita Simonyan, editora-chefe da emissora estatal RT (antiga Russia Today), que contestou a péssima logística, com cidadãos acima dos 40 anos recebendo cartas de convocação, sendo que a lei permite apenas a convocação daqueles até os 35.
“Eles estão enfurecendo as pessoas, como se de propósito, como se por despeito”, disse Simonyan sobre as autoridades por trás do projeto, segundo a RFE.
Críticas também partiram de políticos governistas, como a legisladora Valentina Matviyenko, presidente do Conselho da Federação da Rússia. Através do Telegram, ela contestou o fato de que muitos homens inelegíveis têm sido convocados.
“Esses excessos são absolutamente inaceitáveis. E considero absolutamente certo que estejam provocando uma forte reação na sociedade”, escreveu ela.
Vyacheslav Volodin, presidente da Duma do Estado, confirmou que “reclamações estão sendo recebidas” e igualmente cobrou uma ação.
“Se um erro é cometido, é necessário corrigi-lo”, disse ele. “As autoridades em todos os níveis devem entender suas responsabilidades”.
O governo admitiu os problemas. “De fato, há casos em que o decreto (de mobilização) foi violado. Em algumas regiões, os governadores estão trabalhando ativamente para corrigir a situação”, disse o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov.
Projeções pessimistas
Tantos problemas têm levado os especialistas a afirmar que o recrutamento dificilmente ajudará a Rússia a vencer a guerra. Michael Kofman, analista militar e chefe do programa de estudos da Rússia no think tank norte-americano CNA, afirmou que a decisão de Putin “pode estender a capacidade russa de sustentar esta guerra, mas não muda a trajetória e o resultado geral”.
Rob Lee, especialista do programa para a Eurásia do Instituto de Pesquisa em Política Externa dos EUA, concorda: “Ainda acho que a Ucrânia tem muitas vantagens daqui para frente”, diz ele, que igualmente vê a mobilização como uma mera oportunidade de resolver “por alguns meses” o problema russo da falta de mão de obra militar.
Em uma série de posts no Twitter, Mark Hertling, ex-comandante do exército dos EUA na Europa, listou obstáculos que talvez as forças armadas russas não consigam superar. Destacou, por exemplo, a falta de vontade dos reservistas de lutar. “Colocar ‘novatos’ em uma linha de frente que foi atacada, tem o moral baixo e que não quer estar lá pressagia mais desastre para a Rússia. De cair o queixo. Um novo sinal de fraqueza da Rússia”.
Lee reforça esse aspecto. “Esta guerra será cada vez mais travada por voluntários do lado ucraniano que estão motivados e com moral. Do lado russo, veremos uma parcela cada vez maior de pessoas que não querem estar lá”, disse o especialista do Instituto de Pesquisa em Política Externa dos EUA.
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