A lei, de 1905, prevê que “a República Francesa não reconhece nem emprega nem subsidia cultos”. O conceito, forjado nos moldes atuais a partir do século 18. Ambos tipificam a laïcité, ou secularismo, ideia que pautou o desenvolvimento da cultura política na França.
Trata-se da separação total do Estado e da religião, com um rigor ora considerado controverso pelos cidadãos, ora considerado intolerante em outros países. A proposta de uma emancipação da religião na coisa pública permite seu protagonismo apenas em fórum privado.
O conceito é “parte integral do DNA político contemporâneo da França”, pontua a professora de teologia política e pesquisadora do Instituto Montaigne Anastasia Colosimo, em análise.
A partir do fim dos impérios coloniais na África e na Ásia, sobretudo a partir dos anos 1960, a França passou a testemunhar uma mudança demográfica em seu território.
Milhões de marroquinos, argelinos, senegaleses e cidadãos de outras partes do antigo império deslocaram-se à França, trazendo consigo sua religião e cultura ancestral. Choques culturais são parte desse processo de assimilação de ambas as partes.
Mas, na França, essa irresoluta determinação de manter valores de liberdade, forjados ao longo dos últimos séculos, às vezes causa incômodo uma parcela da população. Sobretudo aquela que ainda estranha o rigor da laïcité na visão francesa de mundo.
Foi o caso das famigeradas charges do semanário “Charlie Hebdo”, que já causaram um massacre de 12 pessoas em sua redação, em 2015, e a decapitação do professor de história Samuel Paty, 47, no último dia 16.
Paty foi assassinado na rua depois de mostrar aos alunos as charges que motivaram os extremistas responsáveis pelo ataque ao semanário. O tema da aula era a liberdade de expressão.
Também é um reflexo da laïcité a regra que proíbe cobrir o rosto em espaços públicos, de 2010, sobre a qual choveram acusações de preconceito contra os véus das mulheres muçulmanas. Cinco anos antes, também havia sido proibido o uso de símbolos religiosos – todos eles – nas escolas.
História
A separação gradual entre os assuntos da Igreja e do Estado começou cedo na França, com seus pilares forjados ainda no século 14. No final do século 17, o clero passa a ter seu papel cada vez mais confinado à “representação espiritual”, garantindo que o poder político precederia o religioso. Era o que previa a Declaração do Clero da França, de 1682.
A partir do século 18, o Iluminismo abre o caminho para outros movimentos seculares, a exemplo da própria Revolução Francesa, em 1789, e a derrubada da monarquia absolutista na França.
No período napoleônico, consolida-se o entendimento que, sobre assuntos religiosos trazidos à público, prevaleceria o controle do governo. Esse entendimento se manteria a partir de então, com alterações pouco significativas nos séculos 19 e 20.
Já a terceira república, entre 1870 e 1940, foi secular em sua essência, mas palco de disputa entre grupos com visões distintas sobre como conduzir a separação entre religião e governo.
Uma vertente era pragmática, e interessada na construção de um Estado de bem estar social. A outra, ideológica, foi responsável pela criação de “heróis” franceses que oferecessem esse véu quase religioso dos assuntos civis. O Panteão francês, aponta a especialista, é o exemplo mais bem acabado dessa caracterização.
A última, afinal vitoriosa, previa a separação dos âmbitos público, de Estado, e privado, ou religioso. Era compreendida como uma arma contra práticas discriminatórias e contra a ingerência de autoridades religiosas em assuntos que não lhes competiam.
Para a especialista, a revisão da lei de 1905 é “inconcebível” para a maioria dos franceses, mesmo que suscite um debate cada vez mais acalorado. O motivo seria a importância da norma para a cultura política local.
Mesmo assim, espera-se que a laïcité torne-se mais incompreendida em outras partes do mundo. Para a pesquisadora, o conceito deve ser mais criticado onde é mais vocal a defesa do individualismo, que defende o ganho pessoal em detrimento de valores de bem comum da sociedade.
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