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quinta-feira, 26 de novembro de 2020

ARTIGO: Azerbaijão e Armênia, esquina do mundo e cruzamento perigoso

Artigo publicado originalmente no portal da Revista Mundorama

*por Paulo Antônio Pereira Pinto, embaixador aposentado

Em artigo anterior referi-me à antiga disputa entre o Azerbaijão e a Armênia, como “conflito congelado”.

Identifiquei a existência de um quadro de “mentes congeladas”, ao redor do Cáucaso, em virtude da pressão exercida pelo culto persistente de um passado histórico, real ou imaginário, que busca reforçar discórdias entre os habitantes daquela parte do mundo, sem que haja visão prospectiva favorável sobre como serão resolvidas.

Em disputa, entre os dois países, encontra-se o território de Nagorno-Karabakh (NK), que, com o fim do Império Soviético, em 1991, passou a ser noticiada como um “conflito entre povos exóticos e intratáveis”.

As populações locais, no entanto, querem livrar-se da opressão da persistente invocação, pelas classes dirigentes, de passado cheio de massacres – ocorridos ou não – sem referência a projetos de paz futura. Conforme se procurou expor no artigo anterior, este contexto favorece, apenas, aos que desejam perpetuar estruturas herdadas do período soviético, em benefício de interesses próprios.

Recordo, a propósito, passado rico de tradições, que descrevem aquela região como uma pacífica “esquina do mundo”, ao invés de um atual “cruzamento de trânsito perigoso”.

Entre as narrativas melhor conhecidas lembram-se: as epopeias narradas por Dede Korkut na Rota das Sedas; o romance entre Ali e Nina; e o filme Repentance, sobre “assombrações soviéticas no sul do Cáucaso”.

ARTIGO: Azerbaijão e Armênia, da pacífica esquina do mundo a cruzamento perigoso
Personagem central do filme ‘Repentance’ (2013) (Foto: Reprodução)

O Sul da Cordilheira do Cáucaso, onde se situam o Azerbaijão e a Armênia, era mais bem conhecido, na Antiguidade Greco-Romana e no auge da Rota das Sedas, do que no mundo atual.

Segundo a mitologia grega, foi no alto daquelas montanhas que Zeus mandou acorrentar Prometeu, para que seu fígado fosse comido por abutres, como punição por ter entregue o fogo prometido aos humanos.

Até hoje, perto de Baku – onde fui o primeiro Embaixador residente – há uma chama eterna que brota do chão que seria aquela fogueira inicial. Ao escurecer, adquire um tom azulado.

É um prazer observar o fenômeno, entendido pela óbvia presença de gás subterrâneo, sorvendo chá com iguarias locais. Imagine-se, no entanto, a perplexidade de povos antigos, diante daquele fogaréu todo, sem explicação através dos séculos, favorecendo o surgimento de crenças e credos como os seguidores de Zaratustra, que adoram o fogo.

A esquina de Dede Korkut na Rota das Sedas

Consta que, no início do Século XIV, o ancião Dede Korkut ficava, em área hoje ocupada pelo Azerbaijão, na esquina da Rota das Sedas, e “narrando, espalhava por toda a parte” a epopeia deste povo tão antigo.

A questão não tem apenas o interesse literário sobre a principal narrativa oral dos “povos turcos” – entre eles os azeris, que reverenciam sua imagem. Isto porque, o Azerbaijão, como outros estados que se emanciparam da União Soviética, a partir da década de 1990, enfrentam, entre outros, os problemas do estabelecimento de identidades nacionais viáveis e da reconstrução de suas instituições culturais e educacionais.

O Azerbaijão é palco de história rica e antiga e, da mesma forma que seus vizinhos no Cáucaso, tem sido cenário de batalhas há mais de um milênio. Há evidência de ocupação humana em seu território, desde a Idade da Pedra.

Localizada na convergência de diferentes civilizações, a região foi invadida e disputada por grandes impérios e personagens famosos, como Alexandre o Grande, o General Romano Pompeu, o conquistador mongol Genghis Khan, e o Tzar Pedro o Grande.

Cartograficamente, o Azerbaijão estende-se do Noroeste do Irã, ao Mar Cáspio, a Leste. Faz fronteira, a Oeste, com a Armênia e Turquia. Ao Norte, situam-se a Geórgia e a Rússia.

A nação azeri encontra-se, hoje, dividida em duas partes. A que ocupa o território do país hoje independente, a partir de 1991. E ao Sul, a que habita na parte meridional iraniana. Esta divisão ocorreu em 1828, a partir de tratado entre a Pérsia e a Rússia.

Apenas cerca de oito milhões dos nacionais azeris vivem no Azerbaijão. Entre 20 e 30 milhões habitam, ao Sul, no Irã. Estima-se, ainda, que quase dois milhões se encontrem na Turquia e número idêntico na Rússia. Grupos significativos residem na Geórgia, Iraque e Ucrânia.

Há versões distintas sobre a origem étnica desta população, cuja língua é conhecida como azeri e, hoje, segue, majoritariamente o Islã Xiita. Daí, ser importante encontrar algo que defina a identidade cultural azeri. Este esforço leva, inevitavelmente, ao estudo do personagem Dede Korkut.

Trata-se da figura maior da história épica dos oguzes, que formaram um dos principais ramos dos povos túrquicos, entre os séculos VIII e XI, e são considerados ancestrais dos turcos modernos. Estes incluem, entre outros: azeris, turcos da Turquia, turcomenos, turcos qashqais do Irã, turcos do Khorassan e gagaúzes, que, em conjunto, representam mais de 100 milhões de pessoas.

As narrativas místicas fazem parte da herança cultural dos “Estados turcos”, que incluem, hoje, a Turquia, o Azerbaijão e o Turcomenistão, e, em menor grau, o Cazaquistão e o Quirguistão. Para os povos que se consideram turcos, especialmente os que se identificam como oguzes, o livro Dede Korkut é o principal registro de sua identidade étnica, história, costumes e de seus sistemas de valores, através da História.

Nos contos, lugares, batalhas, armas, intrigas, cavalos, palácios, fontes e jardins saltam à imaginação. O leitor, então, passa a sonhar como se estivesse assistindo a um filme. Trata-se, como já foi dito, de uma película épica, a definir a consciência coletiva de um povo.

Segundo especialistas no assunto, Dede Korkut teria, para o mundo turco e, nesse contexto, para a nacionalidade azeri, o mesmo papel de definição de uma identidade unificadora, que, no Ocidente teriam tido epopeias como a Ilíada e a Odisseia.

Várias datas são sugeridas para o desenrolar das narrativas de Dede Korkut. A maioria dos estudiosos concordaria que o período mais provável seria o do século XV, na medida em que as tradições mencionadas registrariam conflitos entre os oguzes e seus rivais turcos na Ásia Central.

ARTIGO: Azerbaijão e Armênia, da pacífica esquina do mundo a cruzamento perigoso
Mulher de 106 anos patrulha sua casa contra os azeris em Degh, na Armênia, próxima a Nagorno-Karabakh, em 1990 (Foto: UN Photo/Armineh Johannes)

Outros autores, no entanto, situam os acontecimentos como ocorridos ainda nos século VIII. A grande dificuldade para o estabelecimento mais preciso das datas deve-se ao fato de que os povos em questão eram nômades, sem deixarem registros por escrito, prevalecendo as narrativas orais.

Os contos épicos de Dede Korkut encontram-se entre os melhores, registrados oralmente, na língua turca. Para especialistas, não há dúvida de que os fatos ocorridos teriam acontecido no território, hoje ocupado pelo Azerbaijão.

Na esquina da Rota das Sedas, conforme já foi dito, por ser Baku, então, centro comercial da maior importância, no intercâmbio de bens e convergência de culturas, entre a Europa e a Ásia Central.

Tratam de lutas pela liberdade em época durante a qual os oguzes eram um povo pastoril, em fase de transição para o conceito de uma etnia turca mais ampla. Ocorria, mais uma vez, de um ponto de inflexão – de outra fronteira, no tempo – enquanto o Islã começava a predominar na região, coincidindo com a adoção de um estilo de vida mais sedentário, possivelmente no século XIV.

Hoje publicado em diferentes idiomas, o Dede Korkut registra, como já mencionado, narrativas orais, ora com escritos em prosa, ora em versos. Conclui-se, hoje, que a epopeia é composta por dezesseis histórias.

As doze principais compreendem período posterior à adoção do Islã, pelos turcos. Os heróis, portanto, são retratados como “bons muçulmanos”, enquanto há referências aos infiéis, como vilões. Mas há referências, também a mitologia prevalecente no período anterior à introdução do Islã.

O personagem Dede Korkut é entendido como o “Vovô Korkut”, uma mistura de curandeiro, profeta e narrador de estórias. É desenhado como um respeitável idoso, de cabelos e barbas brancos. O décimo segundo capítulo faz a compilação de dizeres atribuídos a ele. Representa, portanto, um líder mais velho – conselheiro ou sábio – resolvendo as dificuldades com as quais se confrontam os membros da tribo.

O Romance de Ali e Nina

Ao deixar de lado análises apenas políticas e econômicas da região, é curioso registrar convergências regionais, como as disponíveis no romance Ali e Nino. Editado pela primeira vez, em 1937, em Viena, sua autoria está envolta em mistério, especulação e controvérsia, subsistindo dúvidas quanto a ser obra de um só autor, Essad Bey sob o pseudônimo Kuban Said (Ali e Nino, por Kuban Said, editado no Brasil em 2000, pela Nova Fronteira).

Enquanto história de amor pode ser comparada às maiores de todos os tempos – Romeu e Julieta. Mas o livro não se reduz a uma história de amor e merece ser lido como um poema épico, escrito em prosa.

À primeira impressão, a narrativa evocaria relação de conflito/acomodação entre Oriente e Ocidente, cristãos e muçulmanos, modernidade e tradição, o masculino e o feminino. O cenário é a capital do Azerbaijão, Baku, cidade multiétnica em véspera da Primeira Guerra Mundial.

Ali Khan Shivanshir é um jovem muçulmano xiita, de uma família azeri aristocrata, que se apaixona por Nino Kipiani, uma adolescente natural da Geórgia, país vizinho, de formação cristã, que pratica valores europeus. O amor que dedicam um ao outro será dramaticamente ameaçado pelo espectro da guerra e pelo inevitável abismo cultural e religioso que os separa.

O grande amor entre Ali e Nino é o enredo principal do livro, cujo texto, no entanto, transcende o escopo de um romance. Lida em perspectiva mais ampla e sem recorrer a estereótipos, a história conduz o leitor a uma visita fascinante ao Cáucaso, com suas paixões, guerras e revoluções, honra e desgraça, montanhas, desertos e cidades como Baku.

É importante, contudo, ler a obra fora do contexto das oposições entre Ocidente e Oriente. O amor entre os dois personagens é um tema universal, na medida em que cada um busca definir sua identidade em momento histórico de turbulência no cenário típico do Cáucaso. Apenas superficialmente, o livro é sobre a Europa e a Ásia, tampouco é sobre as diferenças entre o Islã e o Cristianismo.

Não é fácil definir um lugar, como Baku, onde diferentes culturas têm procurado interagir há séculos. A união entre Ali e Nino não replica processo semelhante, entre a Europa e a Ásia, mas representa a fusão entre duas culturas distintas, que, ao mesmo tempo, se relacionam, no Cáucaso.

O livro, ademais, descreve o nascimento de um novo Azerbaijão, durante mais um período turbulento de sua história, com a narração da luta entre vários impérios – russo, persa, turco e britânico – pelo Sul do Cáucaso.

Cabe ressaltar, a propósito, a tensão descrita no livro, entre os amigos do personagem Ali que, inicialmente, se dispuseram a lutar, na Primeira Guerra Mundial, em favor do Tzar russo, conforme haviam feito seus pais e avôs. Quando a Turquia entra no conflito, contra a Rússia, cria-se enorme perplexidade entre tais indivíduos, que se consideram parte dos “povos turcos”.

A crise de lealdades se agrava, quando a escolha tem que ser feita, entre combater ao lado de russos, contra os irmãos turcos ou lutar em defesa do califa da Turquia, que era muçulmano sunita, enquanto os azeris são seguidores do Islã xiita.

O contexto político agravou-se quando o exército turco, visto pelos azeris como “libertadores”, retira-se de Baku e lá é substituído por tropas britânicas, como resultado de acordo assinado entre as capitais daqueles dois países.

Verifica-se, assim, que o romance Ali e Nino é fonte rica em jogadas geopolíticas, durante o século passado. O livro é também um atestado de afirmação da nacionalidade azeri. Isto fica evidente no diálogo final, entre Ali e seu pai, quando este decide partir do Azerbaijão, para o Irã, diante da ameaça de invasão russa, em defesa de cujo Império ele – o pai – havia lutado. Na ocasião, o personagem mais velho aconselha seu filho “jovem e corajoso, a ficar e lutar em defesa do novo Azerbaijão, que necessita de seu patriotismo”.

Ali permanece em Baku e morre lutando em defesa de seu novo país, diante de mais uma investida do poderoso vizinho russo ao Norte. O livro poderia, então, transmitir a conclusão geopolítica de que a história da região ensina que a convivência local entre diferentes culturas – da mesma forma que o amor entre o Ali muçulmano e a Nino cristã – não foi possível por incompatibilidades locais insolúveis. A ameaça à estabilidade ao Sul do Cáucaso tem chegado, principalmente, do exterior.

Profeticamente – talvez tivesse previsto Zaratustra – o perigo para o Azerbaijão veio, no romance em questão, e continua vindo, da fronteira ao Norte.

Assombrações soviéticas no sul do Cáucaso

Uma das obras mais significativas do final do período soviético é o filme “Repentance”, dirigido por Tengiz Abuladze, nacional da Geórgia, em 1986. Aborda a política de violência e disputas territoriais, resultantes de ambições pessoais que levaram populações da URSS à ruína.

O enredo trata da morte de um Sr. Varlam, prefeito autoritário de município não identificado, naquele país, ao Sul do Cáucaso. Após o enterro, a população local descobre que o corpo continua ressurgindo, em diferentes lugares, como se tivesse “vida própria”.

Identifica-se, finalmente, que uma mulher, cuja família havia sido vítima de crueldades do falecido dirigente, era a responsável, após cada renovado enterro, pelo reaparecimento do cadáver. Levada a julgamento, a cidadã é considerada insana. Mas, perante o tribunal, a acusada consegue fazer denúncias que desmoralizam o ex- Prefeito Varlam.

O filme transmitia a mensagem inconfundível de que, então, a União Soviética tinha que assumir o seu passado autoritário, para que “os fantasmas de seus tiranos” deixassem de assombrar o processo de reformas político-econômicas exigidas no país.

Segundo avaliado nesta parte do mundo, a obra cinematográfica teria sido associada com os esforços liberalizantes de Mikhail Gorbachev. O cineasta Abuladze foi protegido por Eduard Shevardnadze, também natural da Geórgia, então Ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS e futuro Presidente de seu próprio país.

A partir de 1985, iniciaram-se os sete anos de governo de Gorbachev, que culminaram com a desintegração da União Soviética. A Lituânia declarou-se independente, em março de 1990, e a Geórgia a seguiu, em abril de 1991. Armênia e Azerbaijão e outras Repúblicas continuaram, no mesmo ano, o processo de emancipação. Logo, a URSS deixou de existir.

No Cáucaso ocorreram conflitos armados associados com o término do poderio soviético. Estes incluíram as disputas por Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, pela Ossetia do Sul e Abkhazia, na Geórgia, e pela Chechenya, na Rússia. Caberia, então, exercício de reflexão, sobre as razões que levaram a tais disputas, sempre em torno de reivindicações territoriais que ficaram “congeladas”, durante os 70 anos de dominação soviética.

Registra-se, a propósito, que, com o término da Segunda Guerra Mundial, o Cáucaso tornara-se tema de numerosos autores estrangeiros, inclusive o novelista norte-americano John Steinbeck, que, no final da década de 1940, descreveu a Geórgia como “um lugar mágico” (John Steinbeck, “A Russian Journal” , New York, Viking, 1948).

Da mesma forma que durante o Império Russo, a região permanecia, então, como um cenário de fantasias, um lugar de liberdade e liberação, que, para o trabalhador soviético, podia ser visitado, durante férias e feriados.

Para os residentes fora da URSS, os “spas” de água mineral, no Azerbaijão e Geórgia, eram locais de turismo. Casas de banho, jardins e sanatórios foram criados. Os visitantes recebiam promessas de curas imediatas para problemas digestivos e cardiovasculares, entre outros. Intensos esforços e investimentos governamentais reformulavam a imagem do Cáucaso, até o início do século passado associada a violências, da parte tanto de “tribos primitivas”, quando do Império Russo, que tentava “civilizá-las”.

Tratava-se, então, de criar condições regionais que refletissem a forma como russos e outros cidadãos soviéticos concebiam seu próprio país. Grupos de danças da parte Norte da região, com suas vestimentas típicas, o vinho da Geórgia, o brandi da Armênia e os tapetes do Azerbaijão, tornaram-se símbolos daquela parte do país, bem como da “maneira soviética de ser e sentir”.

Daí, este exotismo todo ser, naquele período, celebrado e satirizado, ao invés de temido. Filmes populares consolidavam a boa índole e naturalidade das pessoas do Sul da URSS, bem como as boas maneiras e ânsia de vida de suas populações. Tais manifestações artísticas, no entanto, gradativamente passaram a ter conteúdo de protesto quanto à ausência de liberdades do período soviético, como aconteceu com o filme “Repentance”, citado acima.

ARTIGO: Azerbaijão e Armênia, da pacífica esquina do mundo a cruzamento perigoso
Soldados da Armênia durante a guerra de Nagorno-Karabakh, em 1994 (Foto: Wikimedia Commons)

No decorrer da década de 1980, as três Repúblicas Soviéticas do Cáucaso do Sul – Armênia, Geórgia e Azerbaijão – evoluíam em direção a reivindicações de livre manifestação de suas identidades nacionais.

O conceito de nação, nesta parte do mundo, contudo, estava – e está – permeado pelo pensamento estalinista. Este leva em conta a língua, a cultura e os interesses em comum, mas repousa, principalmente, sobre o território de residência, que servia de base ao sistema vigente no período soviético.

O Partido Comunista, durante a existência da União Soviética, é sabido, dirigia todos os detalhes de sua organização político-sócio-econômica, tendo sempre como base o território.

Tal convicção, não favorecia, contudo, o florescimento de ideologias em competição entre si, no âmbito de fronteiras definidas no período pós-independência, em 1991. Havia que prevalecer, segundo esta maneira de pensar, apenas o conjunto de ideias forças definidas pelas autoridades centrais. Este processo facilitaria o congelamento de lideranças que, “à maneira antiga de pensar”, não admitia contestação. Assim agia o Prefeito Varlam, do filme georgiano “Repentance”.

Conforme já mencionado em texto que publiquei anteriormente, cabe reiterar que tais pendências não seriam inevitáveis, por ser esta região do mundo “condenada a instabilidade permanente”. Resultariam, sim, de estruturas básicas do Estado Soviético, que tinha o território como sustentação de tudo, o que veio a facilitar, em certa medida, que projetos de poder pessoais viessem a mobilizar populações que foram levadas a genocídios e enorme sofrimento.

Isto é, no final da década de 1990, e início dos anos 2000 – da mesma forma que o enredo do filme “Repentance” – reivindicações herdadas do período de hegemonia da URSS, sobre o Cáucaso, continuavam a ressurgir, sem que mitos daquelas sete décadas de escuridão tivessem sido enterrados – como o corpo daquele falecido Prefeito Verlam.

Enquanto isso, velhos hábitos ligados à doutrina estalinista de governança perduravam, mesmo diante do colapso da estrutura do Estado Soviético. Ao mesmo tempo, partes do Cáucaso, vinculadas a estas práticas antigas, que nada têm a ver com estruturas de confrontação herdadas da Guerra Fria, mantinham mitos consagrados nos lugares de sempre, enquanto apenas os corpos dos déspotas eram enterrados.

No Cáucaso, a história real do final do século XX e do início do atual não é a respeito de animosidades étnicas irreconciliáveis ou antigas disputas, mas sobre como ambições pessoais têm prevalecido sobre o interesse de coletividades.

Isto tem sido possível, em virtude do legado do pensamento estalinista de vincular nações a territórios, bem como à disponibilidade de armamento soviético, deixado para trás, quando do recuo de seus exércitos, alimentando, assim, a capacidade de destruição mútua das partes que retomaram seus conflitos históricos.

Como no enredo da película “Repentance”, parece que, apenas quando houver o compromisso de desenterrar o passado e os responsáveis pelos erros cometidos tenham seus erros devidamente avaliados, poderia haver mudanças significativas nas formas de governança – ou desgovernança do Cáucaso, Sul e Norte.

Já ia me esquecendo: após o Dilúvio, foi no alto da Cordilheira do Cáucaso que Noé aportou com sua arca. Este foi, mesmo, antigamente um destino de viagens bem mais popular, do que no mundo atual.

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