Artigo publicado originalmente no portal da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial
*por Manuela Trindade Viana, coordenadora do curso de graduação do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI/PUC-Rio)
Os reformadores da polícia estão em alvoroço na Colômbia. Nos últimos dias, temos visto depoimentos de especialistas sobre segurança pública se multiplicarem no país vizinho, buscando encontrar “novas” fórmulas por meio das quais se podem evitar notícias escandalosas como a morte de 14 pessoas por ação policial em três dias.
Em 9 de setembro, Javier Ordóñez foi levado já morto para um hospital em Bogotá, após ser submetido a sucessivos choques quando abordado por policiais na rua e levado a um Centro de Atenção Imediata (CAI) – unidades de atendimento policial pulverizadas em diversas partes da cidade.
Sua morte agora se encontra em processo de investigação por parte da Fiscalía General, atravessado por testemunhos de que Ordóñez foi torturado dentro das instalações do CAI.
O uso da violência que resultou na morte de Ordóñez engatilhou uma série de protestos nas ruas de Bogotá, os quais acrescentaram à ficha criminal da Polícia mais dez mortes – e ainda outras três, na cidade adjacente de Soacha.
Desde então, chamados pela reforma da Polícia têm sido vocalizados por lideranças políticas, acadêmicos e especialistas em segurança na Colômbia. As propostas variam de uma reforma geral da Polícia Nacional da Colômbia a modificações específicas na corregedoria da corporação.
A prefeita de Bogotá, Claudia López, apresentou ao presidente Iván Duque um plano de reforma estrutural da Polícia, voltado a transformá-la em um organismo civil, que responda à justiça ordinária e cujos operativos sejam pautados no respeito ao cidadão, e não na violência.
Cabe ressaltar que a proposta implicaria remover a Polícia da alçada do Ministério da Defesa e passá-la ao Ministério do Interior.
Já Jerónimo Castillo, diretor da área de Segurança e Política Criminal da Fundação Ideas para la Paz (FIP), defende o fortalecimento de mecanismos de controle da polícia, tanto no que se refere à ponta da denúncia quanto àquela das investigações.
Para o ministro da Defesa, Carlos Holmes Trujillo, é necessário apenas dar continuidade a um largo processo de modernização da Polícia já em andamento há anos, que inclui um fundamento na legalidade e nos direitos humanos e a ênfase no diálogo com a cidadania e na construção de relações de confiança com os cidadãos.
Dois aspectos chamam atenção, transversalmente às linhagens de propostas mencionadas acima. O primeiro deles é que o “problema da polícia” está sendo pautado como o problema da fronteira entre uso da violência (que caracterizaria o trabalho do militar) e controle dos civis (que não seria, ou não deveria ser, violento e que marcaria o trabalho policial).
Apesar de serem avançados com tonalidades inovadoras, os termos dessa reforma são monotonamente repetidos desde finais do século XIX, quando da criação da Polícia Nacional, em 1891. Desde então, a corporação trasladou do Ministério da Guerra/Defesa para o Ministério do Interior algumas vezes ao longo da trajetória histórica do país.
O segundo aspecto diz respeito ao ímpeto comum a diversas dessas propostas de reforma da Polícia: investigar para encontrar os culpados e puni-los.
É verdade que algumas buscam prevenir que a brutalidade manche o trabalho da Polícia por meio da “humanização” de sua profissionalização, incorporando técnicas de diálogo com os cidadãos e uma base curricular em direitos humanos, por exemplo.
No entanto, a emergência de eventuais casos de abuso da força preserva a fórmula que individualiza a responsabilidade, dá nome e identidade à brutalidade, exonera o responsável e encerra o caso.
Nessa toada, pouco se fala sobre um discreto protagonista em cena: as instâncias judiciais. Com efeito, a linha do abuso, que separa “conduta brutal” de “conduta normal” por parte da polícia, adequou-se plasticamente às diferentes conjunturas políticas com o auxílio da justiça criminal – seja ordinária ou militar.
Esta tem garantido, ao longo dos anos, que a narrativa de “maçãs podres” asfixie qualquer possibilidade de uma visão mais sistêmica sobre as condições dentro das quais a violência é admitida na sociedade.
Sob essa lógica, as mortes não são “da Polícia”, mas causadas por indivíduos que não “merecem usar a farda” – e, como tais, devem ser exonerados. O caso é encerrado, até o(s) próximo(s) ocorrer(em), e nova individualização da culpa ser produzida como expurgo de um desvio de conduta.
O empilhamento de propostas de reforma da polícia é, portanto, atravessado por uma discussão sobre as mortes, mas também sobre monstros – os policiais culpados. Quero agora voltar nossa atenção para outros monstros produzidos por esse debate.
Entre defensores e acusadores da Polícia Nacional, existe ao menos uma importante concórdia: a violência dos protestos que seguiram à morte de Javier Ordóñez os deslegitima. Aqui, a tensão entre a Prefeitura de Bogotá e o Ministério de Defesa quanto aos termos da reforma da Polícia é diluída, e encontra a comum condenação de qualquer conduta violenta na prática do protesto.
Nas palavras do ministro da Defesa, “o governo sempre respeitará o protesto legítimo e pacífico. As autoridades existem para garanti-lo, como também existem para fazer frente legitimamente a essas manifestações de violência, vandalismo e destruição.
Mencionando relatórios do serviço de inteligência colombiano, Holmes Trujillo sustentou que a brutalidade dos protestos foi protagonizada por infiltrados do Exército de Libertação Nacional (ELN) e dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), entre outros grupos “anarquistas e terroristas.
A colocação do ministro tem dois efeitos principais. Primeiro, cria as condições para que eventuais acusações de brutalidade policial sejam rechaçadas como “legítima defesa” – isto é, à violência dos manifestantes, responde-se com violência. Em segundo lugar, caracterizar o protesto não apenas como violento, mas também como delinquencial esvazia a pauta levada às ruas.
A busca aqui é por outras “maçãs podres” – aquelas que mancham a “democracia”. As investigações são governadas a identificar os responsáveis pela depredação da propriedade pública e “da infraestrutura de segurança que protege nossos bairros e cidades, como são os CAI, nas palavras do Alto Comissariado para a Paz da Presidência de Iván Duque, Miguel Ceballos.
Entra em cena novamente a justiça criminal, como o conjunto de instâncias em que a identificação e responsabilização dos “inimigos da democracia” será disputada.
Nesse contexto, é fundamental discutir a expansão das margens com que se autoriza o enquadramento de protestos como um delito nas últimas décadas.
A perturbação aguda da ordem pública veio a ser tipificável como terrorismo na década de 1980, quando a Reforma do Código Penal colombiano buscava endurecer o aparato penal de modo a dar conta tanto do que se entendia à época como “narcoterrorismo” como de greves e protestos estudantis que tomavam as ruas das grandes cidades colombianas.
O “abuso do direito de protestar” persiste em pauta desde então, como revela a declaração do ministro da Defesa. Em termos semelhantes, em 2003, quando Álvaro Uribe apresentava à sociedade colombiana sua “Política de Defesa e Segurança Democrática”, que intensificava o confronto militar contra as guerrilhas e acelerava o aparelhamento das Forças Armadas (tanto militares quanto policiais), o então presidente eleito afirmava que “Não há contradição entre segurança e democracia.
Pelo contrário: a segurança garante o espaço de divergência, que é o oxigênio de toda democracia (…). Mas é preciso traçar uma linha nítida entre o direito a divergir e a conduta criminal. Somente quando o Estado castiga implacavelmente o crime e combate a impunidade, existem plenas garantias para exercer a oposição e a crítica. A antítese da política democrática é o terrorismo.
A possibilidade de enquadramento do protesto violento como “terrorismo” produz a domesticação dos protestos, na medida em que estimula a autovigilância para garantir que determinada conduta não seja entendida como violenta e lança manifestantes uns contra os outros, em uma vigilância favorável ao protesto inofensivo.
Isso, quando não enfraquece o protesto, pela decisão de não comparecer às ruas justamente pelo receio de que a manifestação venha a ser descaracterizada por “vândalos”.
Para concluir, como vimos, o debate sobre as mortes na Colômbia produz sobretudo dois monstros: os policiais sendo investigados e a possibilidade de sua exoneração; e os manifestantes violentos e a possibilidade de sua punição.
De um lado, a narrativa das “maçãs podres” projetada contra a monstruosidade dos policiais oferece blindagem a uma discussão mais densa sobre as condições a partir das quais a sociedade admite o uso da violência pela Polícia.
Ao mesmo tempo, a narrativa das “maçãs podres” investida contra os manifestantes violentos acena generosamente à sociedade com a garantia do protesto, desde que este seja domesticado.
Nesse sentido, os recentes acontecimentos na Colômbia merecem nossa atenção não porque constituem uma oportunidade para uma nova reforma da corporação policial, mas precisamente porque revelam como a reforma da polícia é também uma reforma do protesto.
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