Nos primeiros dois meses de 2023, 53 ataques aéreos foram registrados no Estado de Chin, em Mianmar, que está sob lei marcial por determinação da junta militar que comanda o país. Os dados divulgados pela ONG Organização Chin de Direitos Humanos relatam quase um bombardeio por dia, violência que feriu seis civis e matou oito combatentes rebeldes que fazem resistência ao governo. As informações são da rede Radio Free Asia (RFA).
Em Chin, os alvos foram as cidades de Mindat, Hakha, Matupi e Thantlang, que receberam mais de 140 bombas lançadas pelos jatos da força aérea birmanesa. Esse tipo de ação é cada vez mais importante dentro da estratégia do governo, que tem encontrado dificuldade crescente para conter a resistência armada e suas táticas de guerrilha.
Salai Htet Ni, porta-voz da Frente Nacional Chin, organização politica com um braço armado que faz resistência ao governo militar, confirma que as operações terrestres do exército nacional não mais vinham surtindo efeito. “Não há mais confrontos no terreno”, afirmou. “Eles (os militares) lançam agora principalmente ataques aéreos para nos atacar”.
Os números endossam a afirmação do rebelde. De acordo com a ONG Anistia Internacional, 16 ataques aéreos haviam sido registrados entre março de 2021 e agosto de 2022 em todo o país. Já a Organização Chin de Direitos Humanos aponta 53 ações do gênero ocorridas somente entre janeiro e fevereiro de 2023, e exclusivamente em um Estado.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) citou dados semelhantes em um relatório divulgado no dia 3 de março. O documento diz que os ataques aéreos da junta mais do que dobraram entre 2021 e 2022, saltando de 125 no primeiro ano de ditadura para 301 nos 12 meses posteriores.
Embora os alvos do governo sejam os rebeldes, os civis são igualmente vitimados. A ONG tailandesa Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos (AAPP), que guarda um criterioso registro das mortes causadas pelos militares, confirmou até agora 3.120 vítimas fatais da violenta repressão estatal em Mianmar. Destas, 116 mortes ocorreram em ataques aéreos.
“Os civis estão com muito medo de ficar em casa, pois sabem que os militares podem lançar ataques aéreos em sua região a qualquer momento”, disse um morador de Mindat ouvido pela RFA. “As forças de defesa locais também anunciaram planos para cavar abrigos antiaéreos e instruir os moradores sobre o que fazer e o que não fazer para usá-los”.
Embargo de armas
A fim de tentar conter o poder de fogo da força aérea birmanesa, a Anistia Internacional publicou em novembro do ano passado um relatório pedindo a interrupção da cadeia de suprimentos que permite a chegada do combustível para abastecer as aeronaves militares.
“Esses ataques aéreos devastaram famílias, aterrorizaram civis, mataram e mutilaram vítimas. Mas, se os aviões não podem reabastecer, eles não podem voar e causar estragos”, disse a secretária-geral da Anistia, Agnès Callamard.
As tentativas de encerrar o fornecimento de armas à junta, porém, têm falhado. Prova disso surgiu em 15 de dezembro de 2022, durante uma celebração do 75º aniversário da força aérea de Mianmar. Nos festejos, os militares apresentaram novos caças e helicópteros de ataque comprados de Rússia, China e Paquistão.
Entre os destaques do pacote estão sofisticados caças Sukhoi Su-30, de Moscou, e jatos FTC-2000G, de Beijing, comprados após o golpe e usados nos ataques aéreos.
A ONU Human Rights Watch (HRW) diz que mais de 40 países, a maioria do Ocidente, decretaram embargos de armas contra Mianmar. No entanto, segundo o analista político e militar birmanês Hla Kyaw Zaw, “obter uma adesão mais ampla é improvável, dados os interesses concorrentes dos países”.
Hla mostra pouca esperança de que os embargos tenham efeito prático na proteção dos civis. “Mesmo que a China e a Rússia não vendessem armas aos militares de Mianmar, alguns países ocidentais o fariam”, disse ele, acrescentando que “os países do mundo nunca teriam a mesma opinião sobre quaisquer questões”.
Por que isso importa?
Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.
Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.
As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.
A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.
Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.
O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.
A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.
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