Por María Fernanda Espinosa*
Há quase um quarto de século, em 1995, cerca de 50 mil pessoas, incluindo representantes de 193 países, reuniram-se em Pequim, na China, para a Quarta Conferência Mundial sobre Mulheres.
A Conferência de Pequim foi um dos ciclos mais memoráveis de reuniões organizadas pela ONU nos anos 90. Ali, os países-membros da organização se juntaram para responder aos maiores desafios econômicos, sociais, ambientais e de desenvolvimento enfrentados pelo mundo, focalizando em direitos.
A Conferência de Pequim sobre os direitos das mulheres e meninas e igualdade de gênero ocorreu logo após a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Icpd, que estabeleceu os direitos reprodutivos incluindo a prerrogativa das mulheres de decidir o número de filhos que queriam ter. Decisões baseadas no empoderamento da mulher e na expansão de suas escolhas.
Nos anos 90, líderes internacionais se dispuseram, na reunião convocada pela ONU, a redigir acordos globais sobre desafios comuns e que precisavam de solidariedade e soluções coletivas.
Os direitos das mulheres e a igualdade de gênero figuravam entre esses desafios. Em 1995, nenhum país se dirigiu a Pequim numa condição de vantagem moral, porque ninguém havia alcançado a igualdade entre homens e mulheres naquele momento. E hoje, mais de 25 anos depois, esta mesma situação segue sendo enfrentada pelo mundo. Neste momento, porém, uma pandemia ameaça reverter os ganhos frágeis feitos por mulheres e meninas durante os últimos anos.
A Conferência de Pequim foi vista como um divisor de águas para os direitos da mulher. O evento terminou com a ousada Declaração de Pequim e Plataforma para Ação, aprovada pelos países-membros, após intensas negociações, com ações nacionais e internacionais em 12 áreas críticas.
Mais de 25 anos depois, no entanto, as promessas de Pequim estão longe de se tornar realidade especialmente na área crucial sobre mulheres no poder e no processo de decisão.
Em 1995, a porcentagem de mulheres em Parlamentos era de 11,9%. E em 2020, ainda que mais alta, este número é de apenas 25%. O mesmo ocorre na saúde e no setor de cuidados. Ali, as mulheres detêm 25% dos papéis de decisão, apesar de formarem 70% da força de trabalho.
Em todos os setores, obstáculos sérios têm sido colocados no acesso das mulheres ao poder. E quando os talentos, perspectivas e expertise delas são sub-representados, todos nós perdemos. A pandemia atual deixou isto bem claro.
Neste mês, temos uma nova oportunidade de fazer um balanço sobre os direitos de meninas e mulheres e da igualdade de gênero e de planejar o futuro com o Fórum Geração Igualdade, GEF, em Paris, o qual começou no México, em março deste ano, e que promete “uma aceleração permanente em igualdade, liderança e oportunidade para meninas e mulheres em todo o mundo.”
Milhares de defensores em todo o globo e em vários setores se reunirão, de forma presencial e virtual, de 30 de junho a 2 de julho, para transformar e acelerar a conquista da igualdade de gênero e dos direitos da mulher.
Dentre os muitos eventos do Fórum, existe a Iniciativa da Força de Trabalho da Saúde e Cuidados e Igualdade de Gênero, Gehcwi, que é liderada pelo Governo da França, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Mulheres na Saúde Global. O objetivo é acelerar a igualdade de gênero na força de trabalho da saúde e cuidados. Por quê?
Porque ela se focaliza num dos setores onde as mulheres e as meninas são a maioria. Em todo o globo, as mulheres representam 90% dos profissionais de enfermagem. Este é também o espaço onde se faz viável e crítico acabar com as desigualdades de gênero que prejudicam as mulheres e danificam nossos sistemas de saúde.
As mulheres podem ser a maioria do setor, mas ainda estão presas em postos com baixos salários e de status baixo. Elas também seguem sendo mal pagas pelo trabalho e, frequentemente, sujeitas a assédio e maus tratos, e claro, marginalizadas na liderança.
A contribuição extraordinária das mulheres e das cuidadoras na pandemia não foi traduzida em uma voz de decisão num sistema que elas dominam tão bem. A pesquisa da Mulheres na Saúde Global, feita em 11 forças-tarefas nacionais, revela que 85% desses grupos eram dominados por homens.
A iniciativa Gehcwi apresenta um plano concreto de ação com quatro pilares: primeiro, o aumento da proporção de mulheres na saúde e na liderança dos cuidados. Segundo: reconhecer o valor do trabalho de cuidado e de saúde não-remunerado que é feito por elas e a importância de salários iguais nos setores de assistência social e saúde. Em terceiro lugar: a proteção de mulheres na saúde e no cuidado contra assédio sexual e violência no trabalho. E por último: assegurar condições de trabalho seguras e dignas para todos os funcionários da saúde em todas as partes.
Juntas, essas mudanças deverão apoiar o “triplo dividendo do gênero”: o dividendo da saúde, oportunidades iguais e trabalho decente que irá atrair e reter as profissionais da saúde, ajudando assim a preencher a lacuna de 18 milhões de agentes de saúde no mundo. O dividendo da igualdade de gênero, investindo em mulheres para cargos de liderança e postos formais na saúde, deve aumentar a igualdade de gênero à medida que as mulheres ganham mais e têm mais poder de decisão. O dividendo econômico levará à criação de novos empregos na saúde, abastecendo assim o crescimento econômico, fortalecendo os sistemas de saúde e os resultados e contribuindo para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, incluindo a Cobertura Universal de Saúde, UHC, até o prazo final de 2030.
As mulheres que cuidam da nossa saúde merecem um novo contrato social com condições decentes e dignas e com um papel de igualdade no processo decisório. Se cuidarmos das trabalhadoras de saúde, elas cuidarão de nós, nos mantendo seguros, fortalecendo nossos sistemas de saúde e realizando a Cobertura Universal de Saúde, UHC.
Hoje, mais de um ano após a pandemia, que ainda permanece longe do fim, as mulheres que atuam nos nossos sistemas de saúde estão exaustas física e mentalmente. Muitas contraíram Covid-19 e muitas morreram. Não é surpresa alguma que notícias que nos chegam de vários países sobre trabalhadores de saúde, especialmente mulheres, revelam que estão pensando em abandonar a profissão.
A pandemia piorou aquela que já era uma situação vulnerável para as mulheres. Elas foram as primeiras a perder seus empregos e suas subsistências e tiveram que assumir crescentes fardos com trabalho não-remunerado.
Durante a Covid-19, as mulheres também enfrentaram o aumento de violência doméstica por parceiros íntimos ao se encontrarem confinadas com os agressores em lares inseguros.
E a pandemia ameaça minar nossos recursos humanos para saúde à medida que as mulheres, da qual nossas saúdes dependem, chegam a um ponto de exaustão por causa da desigualdade e abuso aos quais foram submetidas no trabalho.
Pedimos a todos os governos, organizações internacionais, ONGs e defensores que se juntem a nós na Gehcwi para acelerar a mudança transformadora de gênero na força de trabalho da saúde e dos cuidados. Existe apenas um sistema de saúde, e são as mulheres, na sua maioria, que fazem dele uma realidade. Por isso, a questão da igualdade de gênero é uma questão de todos.
*María Fernanda Espinosa é membro da Comissão Organizadora do GEF, da Mulheres na Saúde Global e ex-presidente da Assembleia Geral da ONU
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