Artigo publicado originalmente no Jornal da USP (Universidade de São Paulo)
*por Cleber Vinicius do Amaral Felipe e Jean Pierre Chauvin, professores do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia e da ECA/USP, respectivamente
Poucos eventos, na história recente do cinema, são equiparáveis a 2001: Uma Odisseia no Espaço. Hoje, sabemos que o roteiro levado às telas foi escrito por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, em diálogo com dois contos do escritor inglês publicados na década de 1940 (“A sentinela” e “Encontro no alvorecer”).
Quem assistiu ao filme deve se recordar da trilha sonora que o embala, especialmente a majestosa “Introdução” a Also sprach Zarathustra, composta por Richard Strauss, que escutamos uma vez antes de o filme começar; outra, ao final da primeira parte (“The dawn of man”); a terceira, nos segundos finais da película, quando aparece a imagem do embrião em simetria com a do planeta Terra.
Dentre os numerosos aspectos relacionados a essa impressionante jornada do homem, o filme privilegia a ideia de que a nossa evolução foi pautada pela violência. A utilização dos ossos de animais (mortos) como armas incrementará as disputas territoriais, defenderá os gorilas dos leopardos e permitirá a eles se alimentar de outras espécies.
Três milhões de anos antes de nossa era (no filme, eram quatro milhões), eis que um objeto aparece, da noite para o dia, no deserto africano. O narrador, criado por Clarke, tenta adivinhar o pensamento rudimentar do gorila, numa passagem tanto lírica quanto ingênua, que revela o esforço do animal para estabelecer analogias: “Depois de pensar por vários minutos, chegou a uma explicação brilhante. Era uma rocha, é claro, e ela devia ter crescido durante a noite. Havia muitas plantas que faziam isso [….]” (p. 38).
No filme e no romance, sugere-se que o contato com o monolito transformara os animais, tornando-os mais inteligentes; porém, mais agressivos. Eis que, nos primórdios da aventura humana, “Eles tinham aprendido a falar, e assim obtiveram sua primeira grande vitória contra o Tempo. Agora, o conhecimento de uma geração podia ser transmitido para a seguinte” (p. 60).
A disputa constituiu um traço evidente na “evolução” dos gorilas e, consequentemente, dos homens. No ano de 2001, as muitas camadas de tecnologia superavançada não impedem que a animosidade persista: “Em um milhão de anos, a raça humana perdera pouco de seus instintos agressivos; ao longo de linhas simbólicas visíveis apenas para políticos, as trinta e oito potências nucleares observavam umas às outras com ansiedade beligerante” (p. 68).
O narrador soa irônico em diversos trechos, a sugerir que tecnologia e civilização não rumavam na mesma direção: “Outro pensamento lhe ocorria sempre que varria com os olhos aquelas minúsculas manchetes eletrônicas. Quanto mais maravilhoso o meio de comunicação, mais trivial, medíocre ou deprimente seu conteúdo parecia ser” (p. 87). Especialmente no filme, a Guerra Fria constitui o segundo plano da narrativa.
Na segunda parte de 2001, assistimos ao representante e membro do seletíssimo Conselho Espacial, o dr. Heywood Floyd, em uma nave proveniente da Terra com destino à estação espacial e, de lá, seguir para uma missão em Clavius (uma base norte-americana fincada na Lua, um ano antes da expedição fora da telas…), onde um monolito fora encontrado 15 metros abaixo da superfície.
Antes da reunião com seus anfitriões, o dr. Floyd reencontra um grupo de astronautas russos que falam perfeitamente o inglês (clichê recorrente em filmes que sugerem a superioridade de uns sobre outros). Embora o diálogo seja amistoso, Floyd se recusa a dar maiores explicações sobre o motivo para sua ida à base de Clavius. Ele se despede abruptamente das(os) quatro colegas.
Eis uma diferença interessante entre o roteiro do filme e o enredo do romance. Na tela, a disputa entre a União Soviética e os Estados Unidos é colocada em maior evidência, enquanto no livro há constantes alusões ao Império Chinês como poderosa força mundial.
Essa redução do mundo a duas potências talvez pareça simplista, mas pode ter havido suficiente razão para isso. Se estendermos um arco entre os duelos de gorilas e o desconfortável diálogo entre russos e norte-americanos na estação espacial, perceberemos que o binarismo pode constituir uma produtiva chave interpretativa do filme.
A dualidade não se restringe a esses episódios. Os astronautas responsáveis pela nave, em missão rumo a Júpiter 18 meses após a investigação liderada por Floyd, convivem com colegas de outros países (três pesquisadores mantidos em hibernação).
No livro, evidencia-se a consciência que eles têm sobre o supercomputador Hal 9000 e a respeito de si mesmos: “Poole e Bowman haviam muitas vezes se referido jocosamente a si mesmos como cuidadores ou zeladores a bordo de uma nave que, na verdade, poderia funcionar sozinha” (p. 134).
Meses depois, começam os conflitos entre o supercérebro e os homens. A certa altura, a unidade supostamente infalível afirma detectar duplo erro no sistema, o que provoca a desconfiança dos tripulantes:
“– Não estou entendendo, Hal. Duas unidades não podem estourar em dois dias.
– De fato, parece estranho, Dave. Mas eu lhe asseguro de que há uma pane iminente” (p. 182).
A calculada polidez de Hal é proporcional à ironia com que despeja observações supondo a inferioridade humana:
“– É uma pena o que houve com Frank, não é?
– Sim – Bowman respondeu, depois de uma longa pausa. – É.
– Suponho que você esteja bastante arrasado com isso, não?
– O que você esperava?”
Os diálogos entre o onisciente Hal e os astronautas evocam a rivalidade entre os seres, instaurada desde as primeiras cenas do filme (e as páginas iniciais do romance). As disputas territoriais entre gorilas, no deserto; a guerra fria evocada na estação espacial; os duelos emocionais/mentais entre o homem e a máquina obedecem à premissa de que o aniquilamento seria o efeito colateral da “evolução” de nossa espécie.
No filme, esse dualismo é reforçado por músicas ora épicas, ora líricas. As cenas estão dispostas de maneira que a introdução a Also sprach Zarathustra, de Richard Strauss, ou a Valsa do Danúbio Azul, de Johann Strauss, reforçam o impacto dos episódios a que concedem som e matéria.
Odisseia
Lançado cerca de uma década após o início do projeto soviético Sputnik, o filme dirigido por Kubrick encena o contato do homem com um artefato prometeico que confere, a uma forma bastante primitiva da humanidade, a habilidade de recorrer à técnica e, por extensão, à guerra. Seria oportuno comentar o título e um episódio em particular, com o intuito de esclarecer aspectos nucleares da película.
O termo “odisseia” remete ao poema homérico homônimo, voltado para o regresso de Odisseu após o término da Guerra de Troia. Seu itinerário permite apreender um mundo desconhecido, habitado por ciclopes, sereias, feiticeiras. O filme, por sua vez, retrata não somente viagens galácticas, mas também as errâncias da humanidade, que passa por uma mudança substancial quando se depara com o elemento extraterrestre que infunde novo modelo de comportamento.
No caso, os seres humanos recorreram à técnica não mais para sulcar mares e peregrinar em terras longínquas, mas para sobrevoar lugares não submetidos às nossas leis gravitacionais.
Em meio a essa odisseia espacial, Hal 9000, que realiza a vontade dos astronautas e faz diagnósticos precisos sobre a integridade da Discovery, supostamente comete um equívoco, ato inaugural quando se considera o histórico impecável daquele sistema de I.A.
Às escondidas, David e Frank concebem o plano de desativar Hal, mas o robô consegue descobrir a trama. Para impedi-los, ele abandona Frank no espaço e busca eliminar David. Porém, ele consegue voltar à nave ao destrancar, manualmente, a câmara de compressão. Em seguida, ele invade o computador, a despeito do receio e das súplicas de Hal, e apaga os dados ali reunidos. Depois disso, a máquina perde o controle da situação.
Ao que parece, além de uma odisseia no espaço, o protagonista também experiencia uma catábase. Trata-se de um ritual antigo por meio do qual heróis ou indivíduos notáveis buscavam visitar o mundo dos mortos para obter respostas.
Na Odisseia de Homero, por exemplo, para consultar o adivinho Tirésias, Odisseu realizou um conjunto de rituais para dialogar com os mortos. Devido à insubordinação de Hal (a pronúncia do nome soa como hell) e sem efetuar a “catábase” por meio da qual conseguiu reiniciá-lo, David seria condenado a vagar, a errar pelos descaminhos do espaço sideral.
A viagem espacial só foi possível devido ao poder do monolito, mas também foi graças a ele que Hal 9000 foi construído. Não fosse o artefato milenar (que funciona bem como metáfora da razão, da evolução, do ímpeto de Prometeu, da geometria, da ordem, do artifício), não haveria sequer a ideia de catábase, pois a morte não seria intuída sem contar com a razão. O monolito tanto estaria relacionado à “evolução” dos primatas, quanto ao avanço da ciência e da tecnologia, sintetizadas em Hal.
Vasto e de contornos imprecisos, o espaço pode substituir os mares nunca dantes navegados de Camões ao se converter no reduto das fantasias, do desconhecido. Arremessado para o não lugar galáctico, despejado da ordem instituída pelo homem, para flutuar rumo à morte no Cosmos, Frank não pôde efetuar seu retorno, a despeito dos esforços de David para trazê-lo de volta. David, por outro lado, regressa e, além disso, desabilita seu algoz.
Diferentemente dos ínferos greco-romanos e cristão, criados e/ou administrados por entidades imortais, o inferno espacial só foi viabilizado graças ao emprego da suprema técnica. Uma máquina com sentimentos é apavorante, pois estamos acostumados a ser os únicos a comportar autonomia e afetos.
Depois (e antes) de 2001, vários filmes exploraram os usos e os perigos da tecnologia; mas essa produção, em particular, apresenta muitas questões que permanecem atuais, capazes de enredar guerras frias ou quentes, internas ou externas, conscientes ou inconscientes.
O embrião, encerrado em sua cápsula uterina, demarca o início, mas também o fim; remete à unidade entre a mãe e sua prole, atadas pelo cordão umbilical, e ao super-homem autossuficiente de Nietzsche.
Já o monolito proporciona a criação e o aprimoramento da técnica: no limite, a sofisticação/insurreição de Hal; mas também a apoteose/transcendência de David, que (supõe-se) contempla/compreende a máquina do mundo. O ímpeto centrífugo do homem, seu desejo pelo saber, fez com que ultrapassasse as colunas de Hércules, o Cabo das Tormentas, e mesmo Gaia – a mãe-terra que sempre o acolheu.
Saiba mais
2001: A Space Odyssey, direção de Stanley Kubrick, EUA/Reino Unido, 1968.
Arthur C. Clarke, 2001: Uma Odisseia no Espaço, 3ª reimp., trad. Fábio Fernandes, São Paulo, Aleph, 2015.
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