Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do Centro de Análise de Políticas Europeias (CEPA)
Por Kseniya Kirillova
Os especialistas militares da Rússia, mesmo aqueles totalmente leais ao Kremlin, estão ficando irritados e cada vez mais soando o alarme de que o prolongamento das hostilidades repercutirá contra a Rússia.
Essas dúvidas sobre o rumo dos acontecimentos são cada vez mais compartilhadas pelo público. Em meados de julho, sociólogos independentes do projeto de pesquisa Chronicles observaram que, durante um período de cerca de seis semanas, o número de russos declarando apoio à chamada operação militar especial diminuiu 9%, de 64% para 55%. Este é o nível mais baixo desde o início da guerra. E, segundo os pesquisadores, espera-se que esse declínio continue.
Curiosamente, cerca de um mês atrás, os canais pró-Kremlin do Telegram também reconheceram que, mesmo com o alto nível de sentimento patriótico e uma prontidão popular “para confrontar todo o Ocidente”, a sociedade russa está expressando um desejo claro de encerrar a operação especial o mais rápido possível.
As dúvidas dos especialistas militares russos são novas, especificamente seus apelos para um fim precoce da fase ativa da guerra. Seus argumentos estão revestidos de propaganda aceitável do regime (de que uma guerra prolongada é benéfica para o Ocidente e os “nacionalistas de Kiev”), mas a mensagem principal é a de que a Rússia não deve permitir que isso aconteça.
Alexander Zhilin, chefe do Centro para o Estudo de Problemas Públicos Aplicados de Segurança Nacional, ex-Coronel do GRU (a agência de inteligência militar russa), um linha-dura e ator regular em canais de propaganda estatal, argumentou recentemente em termos levemente apocalípticos que uma guerra prolongada levaria à “destruição de economias, o sangramento dos exércitos, a infligir grandes perdas ao potencial de dois países em guerra”, e que arriscava o rebaixamento da Rússia “à margem” da política mundial. Ele comparou os pedidos para aumentar a intensidade das hostilidades com as ações dos EUA no Vietnã, reconheceu o fato de que pessoas inocentes desarmadas morreram e pediu uma solução não militar para que a Rússia possa viver ao lado da Ucrânia “e tenha alguma perspectiva de normalizar as relações. ”
No final de julho, vários artigos com tema semelhante apareceram no site Military Review, próximo ao Ministério da Defesa da Rússia. Em um deles, o autor Alexander Odintsov apontou que a “estratégia russa de ataques limitados e remotos contra as Forças Armadas ucranianas” atingiu seu limite, enquanto o exército ucraniano mostrou uma resiliência inesperada e está pronto para morrer por suas ideias.
Assim, se o exército russo planeja cortar as formações ucranianas da retaguarda para privá-las completamente de suprimentos, precisa pelo menos dobrar suas forças. Se o Kremlin está planejando um ataque ainda mais amplo na direção de Nikolaev e Odessa “com o objetivo de cercá-las completamente e abrir o caminho para a Transnístria”, suas forças terão que ser pelo menos triplicadas. Segundo o especialista militar, para lançar uma ofensiva decisiva, conforme descrito pelos propagandistas, a Rússia terá que “aumentar o número de [tropas destacadas] em pelo menos 1,5 vezes e restaurar a paridade no campo dos UAVs [drones] e defesa de contra-baterias em pouco tempo.”
A operação militar da Rússia enfrenta riscos reais, disse Odintsov. Seu prolongamento pode começar a funcionar contra a Rússia, já que a Ucrânia continua aumentando seu potencial graças a armas estrangeiras e a uma convocação muito mais ampla de mão de obra. Criticamente, especialistas militares russos temem que, “com o primeiro grande fracasso, a atitude da sociedade em relação ao poder mude”, e que o Kremlin simplesmente não tenha recursos suficientes para uma longa guerra (em 1º de agosto, foi registrado que a Rússia agora perdeu mais de cinco mil veículos blindados em cinco meses de guerra.)
Advertências semelhantes foram feitas por outro escritor da Military Review, Alexander Staver. Ele criticou o mito da propaganda da “irmandade eslava”, enfatizou que a principal tarefa deveria ser a apreensão de Donbass e previu possíveis ataques da Ucrânia na ponte da Crimeia, em Simferopol e Sebastopol (onde um quartel-general da Marinha russa foi atingido pela primeira vez por um drone ucraniano em 31 de julho.)
Dados de analistas independentes confirmam as preocupações dos especialistas militares russos. É óbvio que a Rússia carece de recursos para fazer a transição para uma ofensiva decisiva, disse um deles. Outro disse que a maioria da sociedade russa tende a apoiar passivamente a guerra e não está pronta para participar pessoalmente. É por isso que o Kremlin prefere as táticas de mobilização “oculta”.
Conforme observado pelo Instituto Americano para o Estudo da Guerra, o Kremlin provavelmente ordenou que as regiões russas formassem batalhões voluntários para participar da invasão russa da Ucrânia, em vez de declarar mobilização parcial ou total. Segundo os pesquisadores, esses batalhões poderão gerar cerca de 34 mil novos militares até o final de agosto se cada área federal produzir pelo menos uma unidade militar de 400 homens.
Outro método não tradicional de atrair novos soldados é o recrutamento de criminosos condenados, realizado principalmente pelos mercenários do Wagner Group. De acordo com a mídia independente, pelo menos três prisioneiros recrutados dessa forma morreram em Donbass. Por seis meses de serviço, esses “voluntários” recebem a promessa de 200 mil rublos (cerca de R$ 17 mil) mais uma anistia para aqueles que retornam vivos. De acordo com os familiares dos presos, essas promessas não estão sendo registradas oficialmente de forma alguma, e o exército aceita quem quiser ir, independentemente da experiência militar anterior.
A proeminente ativista russa de direitos humanos Olga Romanova também confirmou o recrutamento de prisioneiros para a guerra. Segundo ela, o recrutamento é realizado em todas as regiões da Rússia e várias centenas de pessoas podem ser recrutadas em cada região. Ao mesmo tempo, não há fundamento legal para enviar essas pessoas para a zona de combate. Esses esquemas de recrutamento foram confirmados pelo americano Paul Whelan, preso em uma colônia russa sob acusação de espionagem. Em um comunicado de imprensa enviado por seu irmão David, foi dito que cerca de dez prisioneiros do IK-17, onde ele está preso, foram para a linha de frente.
Tais medidas podem indicar a falta de recursos do Kremlin para travar sem uma mobilização geral que parece desesperada para evitar. Ao mesmo tempo, Putin e seus assessores rejeitaram qualquer ideia de negociar com a Ucrânia neste momento.
Isso porque ele permitiu que sua narrativa de propaganda o encurralasse no corner. A alegação de que “os nazistas ucranianos destruirão a população pró-russa do sudeste” não dá ao Kremlin muito espaço para recuar dos territórios ocupados. Aos olhos dos consumidores de propaganda, tal recuo pareceria uma “traição ao povo russo, que está esperando a libertação há oito anos”, como descrevem os propagandistas. Enquanto isso, a liderança do fantoche da Rússia, chamada República Popular de Donetsk, pede a “nova libertação das cidades russas, incluindo Kiev”.
Por enquanto, o Kremlin parece acreditar que a maneira mais simples de escapar desse impasse é incorporar rapidamente os territórios ocupados à Rússia. As autoridades de ocupação da parte controlada pelos russos da região de Zaporozhye anunciaram em 14 de julho que um referendo sobre a adesão à Federação Russa será realizado no início do outono. Planos para anexar todas as regiões de Zaporozhye e Kherson, bem como toda Donbass, também foram confirmados pela inteligência norte-americana.
O Kremlin pode esperar que a anexação de novos territórios leve a uma nova onda patriótica, como aconteceu em 2014 após a anexação da Crimeia. Se esse é realmente o plano de Putin, parece uma base frágil para otimismo. Enquanto isso, os contra-ataques da Ucrânia estão aumentando, e novas unidades estão sendo formadas atrás das linhas de frente. A menos que algo radical mude, os militares da Rússia têm muito com que se preocupar.
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