Devido ao alto número de baixas e à falta de mobilização popular, a Rússia tem recorrido a alternativas emergenciais para ampliar seu efetivo na guerra em curso na Ucrânia. Uma delas, revelada pelo jornal independente The Moscow Times, é enviar ao campo de batalha soldados com pouco treinamento militar, uma prática que coloca a vida deles em risco e compromete o rendimento geral das tropas.
Ivan, um soldado de 31 anos que pediu para ter o nome omitido por questões de segurança, diz que vivenciou essa situação. “Eu disse a mim mesmo que queria ir para lá e ninguém me impediria. Sou patriota”, disse ele, que explica a preparação. “Eles nos treinaram por cinco dias, esperamos mais cinco dias por uma rotação de força e depois fomos para as posições [de combate]”.
Durante os cinco dias, Ivan diz que o treinamento foi intenso. Segundo ele, o foco era na habilidade necessária para cada posição a ser ocupada pelo soldado no campo de batalhas: “Um metralhador, um operador de lançador de granadas e assim por diante”, afirmou.
Embora se diga favorável à “operação militar especial”, eufemismo imposto pelo governo para se referir à guerra, Ivan admite desconforto com a inexperiência. E diz que o caso dele nem era o mais preocupante.
“Havia um soldado em nossa companhia que não sabia como funciona uma metralhadora. Então, ensinei aquele cara a desmontar e montar uma metralhadora. Eu não gostaria de estar ao lado dele na batalha. Como você pode lutar assim?”, questionou.
Um outro soldado, este ouvido pelo serviço em russo da rede britânica BBC, diz que viveu situação semelhante à de Ivan. “Fiquei chocado. Alguns não seguravam adequadamente uma metralhadora em suas mãos, nunca viram tanques reais pessoalmente e estão partindo para a linha de frente em alguns dias”, disse ele.
Rendimento comprometido
O analista militar independente Pavel Luzin avalia como inadequada a preparação descrita pelos dois soldados. “Uma semana [de treinamento] não é nada. Para um soldado, é um caminho direto para um hospital ou um saco para cadáveres”, afirmou.
Samuel Cranny-Evans, analista militar do think tank Royal United Services Institute, em Londres, diz que não é apenas o treinamento de combate que faz falta: “Há muito a aprender em termos de coordenação e cooperação com uma equipe. E é bastante demorado”.
Tais deficiências ajudam a explicar o alto número de baixas russas na Ucrânia. E a reposição apressada, com soldados de diferentes unidades misturados, leva à falta de coesão.
“Os soldados não conhecem os comandantes, eles não sabem onde sua unidade está lutando no campo”, afirmou Dara Massicot, pesquisadora sênior do think tank RAND, dos EUA. “Além disso, faltam especialistas. Isso significa que, se algum equipamento quebrar, eles simplesmente não poderão consertá-lo”.
Na contramão da lei
O treinamento reduzido vai na contramão do que afirma o Ministério da Defesa da Rússia, que projeta uma preparação de quatro semanas para considerar o soldado apto. “O treinamento intensivo de armas, combinado com um curso de sobrevivência, é elemento integrante do treinamento de combate”, diz o órgão.
O documento descreve a rotina de preparação e deixa claro o prazo: “Em quatro semanas, são realizadas aulas práticas (até 240 horas), aulas em simuladores (até 10 horas), treinamento físico (até 36 horas), treinamento tático (até 32 horas), treinamento especial (até 50 horas), exercícios de tiro AK-74 (9 vezes e 200 rodadas) e lançamento de granadas (7 vezes)”.
A situação é ainda mais delicada no caso dos conscritos, soldados recrutados pelo governo e enviados ao campo de batalhas mesmo contra a própria vontade. Nesses casos, o envio à guerra só é permitido pela legislação russa após quatro meses de serviço militar.
Desde o início do conflito, Moscou afirma que apenas soldados profissionais, caso de Ivan, fazem parte do que o governo classifica como “operação militar especial“. Em março, porém, o Ministério da Defesa admitiu que alguns conscritos foram enviados por engano, mas já teriam sido levados de volta à Rússia. Inclusive, houve a promessa de punições aos oficiais que os enviaram à guerra.
Apesar dos problemas, o alistamento militar continua atraindo cidadãos russos porque o salário é até quatro vezes maior que a média local. Ivan, por exemplo, diz que recebia mais de 240 mil rublos por mês (R$ 23,8 mil). Atualmente, porém, o soldado não está em combate. Ele afirma que sofreu ferimentos de estilhaços na perna e no braço, foi tratado em um hospital russo e agora se recupera em casa.
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