Cidadãos chineses contratados para trabalhar na Argélia, em um projeto de construção de habitações populares ligado à Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative), dizem ter sido enganados pela empresa da China que intermediou a contratação. Os termos estabelecidos no contrato não foram respeitados, com os trabalhadores inseridos em uma situação abusiva que pode ser associada ao tráfico de pessoas. É o que aponta uma investigação conduzida pela rede Radio Free Asia
As vítimas são, em sua maioria, pessoas de províncias relativamente pobres do interior da China que descobriram a oportunidade em feiras de emprego realizadas no país de origem. O projeto para o qual foram contratados é gerenciado por empresas chinesas, algumas delas estatais, e está inserido na BRI, uma iniciativa lançada pelo presidente Xi Jinping para financiar obras de infraestrutura no exterior,
No ato da contratação, a Shandong Jiaqiang Real Estate Co. Ltd. prometeu passagem aérea de ida e volta, hospedagem, alimentação e salários melhores do que os pagos em território chinês. A realidade, porém, é outra: acomodações sem ar condicionado no calor de cerca de 40º C, salários retidos, passaportes confiscados e má alimentação.
Salários retidos
De acordo com os trabalhadores chineses ouvidos pela reportagem, todos atuando na província argelina de Souk Ahras, o desrespeito ao acordo firmado começa no salário. “O contrato é válido por dois anos, e o pagamento listado no contrato é de mais de 10 mil yuans (R$ 8 mil) por mês, entre 15 mil yuans (R$ 12 mil) e 20 mil yuans (R$ 16 mil). Depois de desembarcar aqui, ganhei menos de dez mil yuans por mês”, disse um deles, que não quis se identificar.
Além do valor abaixo do estabelecido, os pagamentos ocorrem somente de seis em seis meses, e apenas 70% do salário é pago. Os outros 30% ficam retidos pela empresa até o final dos dois anos estabelecidos, para evitar que os trabalhadores saiam antes do prazo. E mesmo os 70% chegaram a atrasar, o que levou a uma greve em setembro de 2021.
Diante de tal situação, muitos não conseguem se sustentar e acabam pedindo dinheiro emprestado à própria empresa para arcar com as despesas dos dia-a-dia. Os juros desses empréstimos, claro, são altíssimos.
Um dos custos diários é com alimentação. “Para dizer sem rodeios, a comida era pior do que a dada aos porcos. Às vezes, a comida era simplesmente impossível de comer”, diz outro trabalhador que não quer ter o nome revelado.
Presos na Argélia
Ante à situação degradante, muitos tentam, sem sucesso, voltar para casa. Ao questionarem a empresa, ouvem que o contrato está assinado e deve ser cumprido. Se quiserem rompê-lo, precisam pagar a multa de 22,8 mil yuans (R$ 18,2 mil).
Sem contar os casos de chineses cujos passaportes ficam retidos com o empregador. “Assim que saí do aeroporto da Argélia, na chegada, meu passaporte foi retirado. Eles disseram que os trabalhadores aqui têm que comprar um seguro local e tiraram nossos passaportes e nossas identidade”, diz um terceiro trabalhador.
Os abusos não terminam com o fim do contrato. “Pedi à empresa para me dar um visto de trabalho. Mas, quando chegamos, conseguimos vistos de negócios. Então, nos tornamos trabalhadores ilegais”, diz mais um dos prejudicados, que desembolsou 30 mil yuans para regularizar a situação (R$ 24 mil).
Consulado ineficiente
Questionada, a Shandong Jiaqiang Real Estate Co., Ltd., que desde 2013 presta serviços trabalhistas na Argélia a cidadãos chineses, refutou a denúncia. “Não existe tal coisa. De onde vem isso?” declarou o gerente-geral Sun Zongting, negando que a empresa tenha impedido trabalhadores de retornar à China. Segundo ele, isso ocorre eventualmente porque “não há voos disponíveis”.
Os cidadãos chineses que se dizem prejudicados acusam até a diplomacia da China de envolvimento. “Se você quer ir ao Consulado pedir ajuda, por exemplo, quando algumas pessoas vão, perguntam para qual empresa você trabalha e qual é o nome do seu chefe. Então, notificam seu chefe, que vem de carro e fala com você”, disse um dos denunciantes.
A Embaixada confirmou ter sido procurada por alguns cidadãos em busca de solução para o problema e disse que, em certos casos, negociou preços acessíveis de passagens de avião para que eles retornassem à China. A questão trabalhista, porém, estaria fora do alcance da diplomacia chinesa, que alega não ter “poder jurisdicional” sobre o tema.
Tráfico de pessoas
De acordo com Yu Ping, ex-diretor do departamento de China na Ordem dos Advogados dos Estados Unidos, a queixa dos trabalhadores pode configurar tráfico de pessoas sob a Convenção das Nações Unidas de 2000 contra o Crime Organizado Transnacional, da qual Beijing é signatária.
“De acordo com a Convenção, o tráfico de pessoas é definido como o ato de recrutar, transportar, receber e abrigar seres humanos para outro país, como ações que envolvem coerção, fraude e engano para fins lucrativos”, disse ele. “Se você aplicar esses três critérios ao caso, verá que as ações da agência de recrutamento, da empresa estatal e do contratado privado constituem a definição internacionalmente reconhecida de tráfico de pessoas”.
Por que isso importa?
A Nova Rota da Seda começou a se desenhar após a crise financeira internacional de 2008, quando as empresas chinesas se voltaram para a Eurásia de olho em atraentes ativos industriais e comerciais. Então, pipocaram projetos de infraestrutura de transporte e energia com financiamento chinês, o principal foco desde então. Em 2013, a iniciativa se estabeleceu globalmente como uma das bases da política externa do presidente Xi Jinping.
O objetivo central da BRI é espalhar a influência de Beijing através do investimento. No total, 140 países foram beneficiados com dinheiro proveniente da iniciativa chinesa até 2020, sendo o maior número da África, 40 nações. Entre 2013 e dezembro de 2020, a China investiu cerca de US$ 770 bilhões nos países participantes da BRI.
No início, os governos receberam muito bem os bilhões de dólares injetados por Beijing, especialmente pelo fato de isso ter ocorrido logo após uma recessão global histórica. Hoje, com muitas das nações inseridas na BRI em situação financeira dramática, manter em dia o pagamento das dívidas é missão quase impossível.
Isso é parte da estratégia da China, que invariavelmente usa a inadimplência como justificativa legal para assumir a gestão dos próprios projetos que financiou. Assim, estende os tentáculos do Partido Comunista Chinês (PCC) mundo afora ao assumir o controle de infraestruturas cruciais em todos os continentes.
A questão ambiental é outro ponto negativo da BRI. Segundo Vuk Vuksanovic, pesquisador da Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres, Beijing tem como objetivo “a terceirização da poluição e da degradação ambiental para países mais pobres e distantes, com extrema necessidade de financiamento de infraestrutura e desenvolvimento socioeconômico, cujos governos ignoram os riscos ambientais”.
Um estudo do think tank canadense Iffras (Fórum Internacional por Direitos e Segurança, da sigla em inglês) corrobora a opinião de Vuksanovic. Segundo relatório publicado em setembro de 2021, a iniciativa chinesa tende a “aumentar ainda mais a degradação ambiental e as mudanças climáticas”.
Em países como Indonésia, Egito, Quênia, Bangladesh, Vietnã e Turquia, a BRI está ligada a projetos de usinas de geração de energia movidas a carvão. No final de 2016, a ONG Global Environment Institute (Instituto de Meio Ambiente Global, em tradução literal) registrou 240 projetos movidos a carvão ligados à iniciativa chinesa.
“A Nova Rota da Seda tem um grande foco na construção de projetos de energia, e quase 90% deles são intensivos em carbono, operando com combustível fóssil“, diz o documento do Iffras. “Dada a magnitude da BRI, que se espalha pelos cinco continentes, o planeta vai sofrer impactos graves e negativos graças ao jeito chinês de construir projetos em que as diretrizes ambientais dificilmente são seguidas”.
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