A violência sexual é parte da “estratégia militar” da Rússia no conflito em curso na Ucrânia, uma ‘tática deliberada para desumanizar as vítimas”. A afirmação foi feita por Pramila Patten, representante especial da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre violência sexual na guerra, que esteve em Kiev em maio e agora concedeu entrevista à Agência France Press (AFP), reproduzida pela rede France 24.
“Quando as mulheres são detidas por dias e estupradas, quando você começa a estuprar meninos e homens, quando você vê uma série de mutilações genitais, quando você ouve mulheres testemunhando sobre soldados russos equipados com Viagra, é claramente uma estratégia militar”, disse ela.
Questionada se a violência sexual é uma arma de guerra de Moscou, Patten afirmou que “todas as indicações estão lá”. E prosseguiu: “Quando as vítimas relatam o que foi dito durante os estupros, é claramente uma tática deliberada para desumanizar as vítimas“.
Mais de cem casos
De acordo com a representante especial, já foram registrados pela ONU mais de cem casos de violência sexual desde o início da guerra. As primeiras ocorrências surgiram logo “nos três primeiros dias após a invasão da Ucrânia”, segundo um relatório divulgado no final de setembro pelas Nações Unidas.
O documento, preparado por um grupo de especialistas em direitos humanos independentes designados pela ONU, atesta que crimes de guerra foram de fato cometidos pelas tropas russas na Ucrânia.
O grupo concentrou as investigações em quatro regiões ucranianas: Kiev, Chernihiv, Kharkiv e Sumy. E disse que as principais evidências contra os russos estão atreladas a casos de agressão, choques elétricos e nudez forçada em centros de detenção gerenciados por Moscou. Além dos assassinatos e dos casos de agressão sexual, que têm como vítimas desde meninas de 4 anos de idade até mulheres de 82.
Em junho, a representante especial havia apresentado ao Conselho de Segurança dados da equipe de monitoramento do Ocha (Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários). Segundo o levantamento, havia na ocasião 124 relatos de violência sexual em cidades ucranianas.
“Há muitos casos de violência sexual contra crianças que são estupradas, torturadas e mantidas reféns”, disse Patten na entrevista. Entretanto, como já havia dito em outra ocasiões, os episódios documentados são apenas “a ponta do iceberg”, vez que ela pressupõe a existência de muitos outros que não foram notificados ou investigados.
“É muito difícil ter estatísticas confiáveis durante um conflito ativo, e os números nunca refletirão a realidade, porque a violência sexual é um crime silencioso”, afirmou ela.
Combate à impunidade
Patten destacou que a impunidade é praxe em casos de violência sexual e que a viagem dela à Ucrânia serviu para tentar mudar esse cenário.
“É por isso que fui à Ucrânia, para enviar um sinal forte às vítimas, dizer-lhes que estamos com elas e pedir-lhes que quebrem o silêncio”, disse a representante. “E também para enviar um forte sinal aos estupradores. O mundo está de olho neles, e estuprar uma mulher ou uma menina, um homem ou um menino, não será sem consequências”.
Segunda ela, o sinal de que a situação está mudando é o intenso debate em torno do assunto. “Acho muito positiva essa atenção à violência sexual ligada a conflitos”, disse, destacando também o fato de que uma guerra na Europa atrai muito mais atenção que os inúmeros conflitos que ocorrem em outras regiões e são quase sempre colocados em segundo plano.
“Há agora vontade política para combater a impunidade, e há consenso hoje sobre o fato de que os estupros são usados como uma tática militar, uma tática de terror”, declarou Patten. “É porque está acontecendo agora no coração da Europa? Pode ser isso”.
Por que isso importa?
No início de agosto, o governo ucraniano disse que estão em andamento investigações de quase 26 mil crimes de guerra atribuídos às tropas russas durante o conflito. Segundo a procuradoria-geral do país, 135 pessoas estariam ligadas a esses crimes, sendo que 15 acusados estão sob custódia.
Yuriy Bilousov, chefe do departamento de crimes de guerra da procuradoria-geral ucraniana, disse que 13 casos de violação do direito internacional já foram levados aos tribunais, com sete sentenças emitidas. Entre elas a do soldado russo Vadim Shishimarin, primeiro militar a enfrentar um processo do gênero em quase meio ano de conflito. Ele foi condenado à prisão perpétua em maio, por matar um civil desarmado no dia 28 de fevereiro.
As investigações de crimes de guerra conduzidas por Kiev contam com o suporte ocidental, que ajuda a financiar os esforços do governo ucraniano e também tem suas próprias equipes em ação. A Alemanha, por exemplo, disse no final de junho que analisa centenas de crimes de guerra possivelmente cometidos por tropas da Rússia.
Na mira das autoridades alemãs não estariam apenas os soldados do exército russo diretamente acusados de tais crimes. Também estariam sob investigação oficiais de alta patente e políticos suspeitos de ordenar os abusos.
Quem atua igualmente nesse sentido é o Tribunal Penal Internacional (TPI), que vê na guerra uma forma de reduzir as críticas recebidas desde sua fundação, há 20 anos. Nesse período, a corte conseguiu apenas três condenações por crimes de guerra e outras cinco por interferência na Justiça.
O TPI afirmou inclusive que planeja abrir ainda neste ano o primeiro caso contra as forças armadas da Rússia. Não foram revelados detalhes de qual poderia ser este primeiro processo, embora venha sendo debatida com Kiev a entrega de pelo menos um oficial russo ao tribunal. Trata-se de um prisioneiro de guerra disposto a testemunhar contra altos comandantes russos.
No início de junho, a Comissão Europeia anunciou que destinaria 7,25 milhões de euros ao TPI, a fim de apoiar as investigações. “Neste contexto, é crucial garantir o armazenamento seguro de provas fora da Ucrânia, bem como apoiar as investigações e processos por várias autoridades judiciárias europeias e internacionais”, disse o órgão na ocasião.
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