Este artigo foi publicado originalmente em inglês no jornal independente The Moscow Times
Por Yekaterina Mereminskaya
A ponte da Crimeia é um símbolo da Rússia de Putin: imperialismo, corrupção, propaganda e seu efeito sobre o povo, bem como as sanções ineficazes do Ocidente. No sábado (8), este símbolo de 300 bilhões de rublos (R$ 24,6 bilhões) pegou fogo.
A ponte da Crimeia – inicialmente chamada de ponte Kerch – deveria transformar a “ilha da Crimeia” em uma região modelo da Rússia, um lugar para o qual todas as estradas e dinheiro levavam. Isso não era particularmente lógico; nem todas as regiões russas têm algo assim, e, na verdade, cinco regiões sequer têm ferrovias. Mas seria uma boa vitrine. A ponte da Crimeia tornou-se um símbolo de ocupação permanente — não temporária —, confirmação visível da anexação de novos territórios e a personificação da ambição imperial.
Eu sei tudo sobre a construção da ponte de Kerch porque escrevi sobre contratos governamentais para o jornal Vedomosti. E a ponte era um dos maiores contratos estatais da época. Eu vi como o preço do contrato mudou (nem sempre subindo, a propósito), como as empreiteiras subsidiárias foram selecionadas e como os pagamentos aos trabalhadores da construção foram às vezes atrasados.
Esta ponte pode ter sido uma preparação para a guerra, ou pode ter sido o resultado de miopia política. É também uma ilustração perfeita do tipo de projetos massivos que o governo russo tanto ama. O país inteiro gosta de trabalhar por um grande e caro objetivo nacional e, de preferência, recebe algo para se lembrar: os Jogos Olímpicos de 2014 em Sochi, a Copa do Mundo de 2018 e assim por diante. É como uma nova versão dos antigos planos de cinco anos, mas com uma carga emocional: todos estão tão ocupados trabalhando que não têm tempo para pensar em declínios na renda real e nos padrões de vida.
A ponte foi concluída antes do previsto. A construção começou em 2015 e abriu em 2018 para carros e em 2019 para trens. Em outras palavras, a ponte está em uso há um ano a mais do que estava em construção. Nesse sentido, o projeto foi um sucesso.
Ao mesmo tempo, a ponte tornou-se um símbolo de corrupção. No total, todo o projeto custou mais de 300 bilhões de rublos (R$ 24,6 bilhões) por 19 quilômetros de ponte e outros 60 quilômetros de estrada costeira. Isso não era excessivamente caro. No momento da construção, um quilômetro de estrada custava cerca de 1 bilhão de rublos. O Terceiro Anel em torno de Moscou custou 341,2 bilhões de rublos (R$ 28 bilhões) por 337 quilômetros. Então, não era nem o projeto de grande escala mais caro.
Quase todo o dinheiro alocado para a ponte passou pelo amigo de Putin Arkady Rotenberg (cerca de US$ 4 bilhões, ou R$ 20,6 bilhões). É revelador que sua empresa Stroygazmontazh recebeu o pedido de construção sem concorrência – o governo essencialmente nomeou a empresa. O dinheiro foi enviado antecipadamente, então a empresa construiu, reportou ao governo e recebeu a próxima parcela. A Stroygazmontazh recebeu um contrato para construir a linha férrea para a Crimeia (US$ 325 milhões, ou R$ 1,68 bilhão) exatamente da mesma maneira – sem licitação. Os pagamentos foram feitos através do Mosoblbank, que foi reestruturado pelo SMP Bank de Arkady e Boris Rotenberg.
A Fundação Anticorrupção de Alexei Navalny acusou os criadores do filme “Ponte da Crimeia”, a editora-chefe da emissora RT Margarita Simonyan e seu marido Tigran Keosayan. de roubar 30% do orçamento do filme.
A ponte também mostrou que as sanções ocidentais impostas após a anexação da Crimeia em 2014 eram uma mera formalidade. A maioria das empresas que trabalham no projeto estava sob sanções. Mas isso pouco impediu o projeto, a construção ou o financiamento. Fornecedores individuais levantaram questões. Mas, no geral, qualquer um que quisesse contornar as sanções o fez.
A ponte foi uma excelente demonstração de como os russos estavam dispostos a desenvolver o território recém-anexado. A megaestrutura era admirada até pelos céticos em relação ao regime. Afinal, era a ponte mais longa construída na Rússia (19 quilômetros). Em 2018, 6,8 milhões de turistas chegaram à Crimeia, ou 28% a mais do que em 2017 (5,4 milhões), dos quais metade veio pela ponte da Crimeia. Eles continuaram a vir apesar da pandemia. Em 2021, um novo recorde foi estabelecido, com 9,5 milhões de turistas. Apesar da guerra, mesmo em 2022, mais de 5 milhões de pessoas passaram férias na Crimeia. Assim, a ponte também é um símbolo da natureza apolítica dos russos.
Em geral, as pontes são símbolos de unidade. Por exemplo, nas notas de euro, pontes e arcos simbolizam uma Europa unida. Mas esta ponte isolou a Rússia da comunidade mundial. A Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) condenou a construção e a operação da ponte como contribuindo para a militarização da Crimeia. A Ucrânia, a União Europeia (UE) e os EUA a condenaram.
Agora, a ponte foi danificada. Isso também é simbólico. O dano pode, talvez, simbolizar um ponto de virada na guerra.
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