No Lixão do Trairi, no Ceará, o zumbido das moscas me apavora. Não é a primeira vez que fotografo um lixão a céu aberto, mas aquela sinfonia, tão alta, era inédita. Tapo os ouvidos com medo de que elas entrem. Eu não sabia, mas estava tendo um ataque de pânico.
Me aproximo de um homem, pergunto se posso fotografá-lo e ele consente. Há dois sacos ao seu lado: um para comida e outro para plástico. Ele vai se alimentar do que encontrou ali.
Continuo andando e topo com um casal e uma criança sentada ao lado deles. Ao ver a câmera, pedem ao menino que se afaste. Têm receio de que eu possa estar denunciando trabalho infantil. Converso um pouco, explico meu trabalho e eles me permitem imagens. Mais à frente uma família inteira em busca de comida e recicláveis. Não me permitem fotografar. Eu entendo. Agradeço assim mesmo.
O sol dos lixões é sempre um carrasco e o cheiro, mesmo de máscara, é impossível de aguentar. O lodo ao redor, misturado com o calor, me deixa tonto e relembro da primeira vez que estive num lixão e do impacto que me causou.
As crianças descalças brincando com a terra como se fosse areia na praia. Os animais disputando comida com os humanos. Bois, cavalos, urubus e porcos. A fumaça produzida pelo fogo, que desbasta os montes de entulhos. Um cenário pós apocalíptico.
Lembro de Adriano, no Lixão de Pinheiro (Maranhão), em 2021, achando comida em meio ao entulho, um pedaço de pão. Ele enfiou na boca como se fosse normal comer do lixo. Testemunhar essa miséria mata o ser humano dentro da gente. E cada vez que a gente revisita essa realidade, morre mais um pouquinho.
No Lixão de Itariri, em Ilhéus, na Bahia, eu vi duas tragédias em uma só. Catadores de recicláveis antigos e experientes ensinando aos novatos, recém chegados que haviam perdido tudo nas enchentes que atingiram o nordeste da Bahia no início deste ano.
Converso com uma mulher e ela me diz que a água chegou rápido e a casa logo foi abaixo. Ela fugiu antes de ser levada com os filhos. Sobreviveu para sub-viver. Estava em busca de roupas, um colchão para as crianças, comida. A fome já arrasava a Bahia antes das enchentes. Já consumia o país.
O Brasil voltou ao Mapa da Fome que tinha deixado para trás em 2014. Hoje são 33 milhões de pessoas com fome. Que se alimentam de ossos nos supermercados, restos de restaurantes, lixo. A miséria é real, por mais indiferentes que sejam o atual governo e a elite da sociedade.
No Lixão de Caxias no Maranhão encontro Alex. Paulista nascido e criado no Brooklyn, que se apresenta como cozinheiro. Ele conta que era pizzaiolo, sushiman e churrasqueiro, que trabalhou na Pizzahut e na Texas Grill. Fez inúmeros cursos no SENAC e começou sua vida profissional aos 16 anos de idade.
No início é difícil acreditar em sua história. Preciso provocar. Pergunto quais pratos Alex gostava de preparar e que tipos de corte ele fazia nas carnes que preparava. Ele começa:
“Taco mexicano, paella espanhola feita no tacho de barro, sei fazer cortes de carne entrelaçado, corte diagonal, corte borboleta espetando e atravessando, o entrelaçado é pra não tirar o perfil e nem o sabor da carne, eu selo a carne, boto em caldeira quente, gosto de fazer molho com redução de carne, barbecue, molho french, de yogurt natural, molho de tomate seco com tomilho e ervas finas. Na culinária japonesa eu sei fazer uramaki, hot roll, frango poke, sushi, sashimi, também sei fazer o yakissoba que é o macarrão chinês…”
Quando ele para de falar engulo em seco. Abaixo a câmera e pergunto o que aconteceu pra ele estar ali.
“Eu vim morar com minha esposa aqui e fiquei desempregado. Nada mais deu certo. Agora eu moro numa casa de taipa forrada com palha de côco. Não temos energia elétrica e nem geladeira, mas morro de saudade de cozinhar.”
O cozinheiro sente fome. Sente calor e sente vergonha. Eu, desolado, sinto muito. Sinto que perdemos como sociedade e como humanidade.
source https://apublica.org/ensaio/2022/06/as-caras-da-fome/
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