Este artigo foi publicado originalmente em inglês no jornal independente The Moscow Times
Por Andrei Soldatov
Na manhã de 6 de junho, comecei a receber estranhas mensagens de texto do meu banco em Moscou. Todas elas tinham o mesmo conteúdo: minhas contas foram bloqueadas porque houve uma série de débitos muito grandes para meus saldos. Todas elas foram suspensas, uma por uma.
Em seguida, chegaram mensagens do meu segundo banco russo informando que eu havia sido multado no equivalente a US$ 80 mil (R$ 410,6 mil) em cada conta.
Sou um jornalista investigativo, então já vi esse tipo de coisa antes. Parecia algum tipo de ataque de phishing, e essa suspeita se aprofundou quando verifiquei o site do governo em busca de informações sobre multas e não encontrei nada.
Só então chegou outro texto, que ajudou a decifrar o que estava acontecendo. Dizia que minhas contas não estavam simplesmente bloqueadas, mas congeladas porque agora eu era alvo de uma investigação criminal. Seguindo o conselho do meu advogado de Moscou, verifiquei a lista de procurados da Rússia no site do Ministério do Interior e lá estava eu – com minha fotografia e detalhes biográficos. Não se preocupou em declarar as acusações ou qual agência governamental estava envolvida.
O próximo passo levou algum tempo e trabalho de detetive, mas finalmente percebi que, para entender o que estava acontecendo, eu deveria examinar os casos contra aqueles que vieram antes de mim – aqueles jornalistas russos que foram alvos das autoridades desde o início da guerra. E isso ajudou.
Logo ficou claro que meu caso e outros casos contra jornalistas russos – todos eles com números de série oficiais semelhantes – haviam sido iniciados pelo Comitê de Investigação, a versão russa do FBI (Serviço Federal de Investigação dos EUA). Esse órgão costuma atender casos da maior importância para o Estado.
Quanto mais eu cavava, maior a percepção da escala da campanha do Kremlin contra jornalistas independentes. No mundo orwelliano da Rússia em 2022, aqueles que publicam qualquer coisa que contradiga a narrativa do Estado são, ridiculamente, acusados de espalhar “fake news” sobre a guerra. Este crime gravíssimo foi recentemente acrescentado ao Código Penal e está na base da perseguição de jornalistas.
O alcance dessa nova onda de repressão ainda não é conhecido – só soube do meu caso porque meus bancos me contaram, e outros jornalistas também descobriram que foram acusados quase por acidente. Os números de série de nossos casos criminais dão uma dica, porém – os últimos dígitos variam entre 50 e 500, o que, em teoria, poderia significar que o Kremlin tem centenas de casos sob investigação.
Uma aparição na lista de procurados e os mandados de prisão emitidos à revelia são agora as ferramentas favoritas do Kremlin. Esta é uma campanha séria, mas também desesperada – os jornalistas sob ataque são aqueles que como eu deixaram o país e continuam a expor a campanha sistemática de inverdades do exílio do Kremlin.
E isso revela algo realmente interessante e um pouco inesperado; a decisão de emitir mandados de prisão diz mais claramente do que palavras jamais poderiam dizer que os meios técnicos de impor o monopólio da informação do governo – o filtro de Internet Soberano Russo – simplesmente não está funcionando.
Isso eu também aprendi com o meu caso. Em 7 de junho, finalmente tive um vislumbre de um documento que o Comitê de Investigação apresentou ao tribunal para justificar o congelamento de minhas contas e minha adição à lista de procurados.
O investigador-chefe Kurovskoi disse ao tribunal que meu crime estava relacionado à minha entrevista sobre a guerra em um canal do YouTube chamado Política Popular em 11 de março. O investigador disse que eu havia questionado o treinamento e a competência das tropas da Guarda Nacional (Rosgvardiya) enviadas para lutar na Ucrânia, e que minha pergunta equivalia a desinformação sobre as atividades das tropas russas ocupadas em “proteger os interesses da Rússia e apoiar a paz e segurança internacionais”.
Fiquei perplexo no início por que esse comentário em particular havia desencadeado uma reação tão negativa. E então li o título do vídeo citado por Kurovskoi. Era “Andrei Soldatov: generais da FSB (Agência de Segurança Federal, da sigla em inglês) presos por causa da guerra”.
Finalmente, clicou. A verdadeira razão para o caso contra mim foi minha reportagem com Irina Borogan sobre os expurgos da FSB desde o início da guerra e, em particular, a prisão de Sergei Beseda, chefe do Quinto Serviço da agência, o ramo de inteligência estrangeira. A referência à Guarda Nacional foi apenas um pretexto.
O Kremlin negou veementemente (e sem sucesso) quaisquer expurgos ou problemas dentro da FSB, argumentando que tudo estava indo “de acordo com o planejado”. Nosso site Agentura.ru foi bloqueado, e as autoridades lançaram uma operação especial de desinformação para minimizar nossas denúncias. Agora ficou claro que eles estão usando medidas antiquadas na esperança de bloquear nossas revelações sobre a FSB, que dependem de material de origem do Estado secreto de Putin. Acontece que em 29 de abril fui colocado na lista de procurados da Rússia e em 4 de maio fui colocado na lista internacional de procurados.
Tudo isso é bastante desagradável do ponto de vista pessoal, mas também é um sinal de que o governo está lutando para isolar a Rússia da internet e impor censura.
Kurovskoi admitiu ao tribunal que o vídeo em questão foi visto por 1,8 milhão de pessoas. E o canal Política Popular no YouTube com o qual falei é dirigido por apoiadores do líder da oposição preso Alexei Navalny.
Apesar de todos os esforços e ameaças e das ferramentas legislativas de repressão agora nas mãos do Estado, os jornalistas russos independentes e a oposição russa ainda têm acesso direto ao público russo.
A nova Cortina de Ferro, projetada para barrar ideias e verdades, já está enferrujando. E isso é uma péssima notícia para o Kremlin.
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