Desde o início da guerra na Ucrânia, iniciada com a invasão do país pelas tropas da Rússia, autoridades russas ameaçaram multar ou bloquear dez meios de comunicação independentes se não apagassem publicações sobre o conflito, de acordo com a ONG Human Rights Watch (HRW). Moscou interferiu no acesso ao Facebook e ao Twitter e bloqueou outros sites de mídia cujas publicações não seguiram as diretrizes da propaganda do Kremlin. Trata-se de uma grande campanha para tentar bloquear a divulgação de qualquer informação que venha a prejudicar a imagem do governo Putin.
O Roskomnadzor, órgão estatal regulador da mídia, acusou veículos locais de publicarem “informações falsas” sobre a guerra. São relatos de bombardeios russos a cidades ucranianas e baixas civis, bem como textos que usaram expressões como “ataque”, “invasão” ou “declaração de guerra”. Moscou exige que se fale em “operação especial nas Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk”.
O órgão já havia publicado um aviso aos meios de comunicação de massa sobre a divulgação de informações “não verificadas” e “falsas”, dizendo que apenas informações de fontes oficiais podem ser publicadas quando relatarem a “operação especial”. As autoridades dizem que todas as informações “falsas” serão instantaneamente bloqueadas, com aplicação de multas aos respectivos meios de comunicação.
“Na última década, as autoridades russas usaram uma rede de leis vagas e pretextos frágeis para intimidar e assediar vozes independentes e dissidentes”, disse Hugh Williamson, diretor da HRW para Europa e Ásia Central. “Agora, eles estão impondo censura sem rodeios combinada com uma narrativa falsa e exigem que todos a propaguem”.
Durante a guerra, o principal objetivo do Kremlin ao controlar a mídia é transmitir uma imagem favorável ao governo. Por exemplo, até 27 de fevereiro, o Ministério da Defesa da Rússia afirmava não haver baixas militares russas e que a ofensiva não havia causado baixas civis entre os ucranianos, embora mais tarde tenha admitido a morte de soldados russos.
Na segunda-feira (28), a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, disse que, entre a última quinta-feira (24), quando ocorreu a invasão, e a noite de domingo (27), 406 vítimas civis foram confirmadas na Ucrânia, “incluindo sete crianças”.
De acordo com Bachelet, as maioria dos civis morreu por ataques de “armas explosivas com uma ampla área de impacto, incluindo bombardeios de artilharia pesada e sistemas de foguetes de lançamento múltiplo e ataques aéreos”. E, segundo ela, a apuração é incompleta, sendo os números reais provavelmente muito maiores.
Também na segunda (28), a Meta, empresa gestora do Facebook e do Instagram, disse ter derrubado nas duas redes sociais uma rede de desinformação russa, comandada pelo Kremlin, que tinha como alvo sobretudo a população da Ucrânia, segundo o jornal britânico Guardian.
Trata-se de uma rede relativamente pequena, composta por cerca de 40 contas, páginas e grupos originários de duas redes sociais. Eram páginas que se diziam organizações independentes e, assim, criavam perfis falsos em diversos sites, entre eles Twitter e YouTube, bem como o aplicativo de mensagens russo Telegram.
A rede tinha cerca de quatro mil seguidores no Facebook e pouco menos de 500 no Instagram. Havia perfis que diziam pertencer a jornalistas, engenheiros aeronáuticos e hidrógrafos, todos supostamente vivendo em Kiev e difundindo falsas informações. O objetivo era expor a Ucrânia como uma nação fadada ao fracasso e dizer que o Ocidente havia traído o país ao não oferecer apoio militar durante o conflito. A Rússia reagiu à ação da Meta e impôs restrições parciais às redes sociais, alegando se tratar de uma ação recíproca em função da censura à mídia estatal russa.
“Os Estados têm interesses legítimos em impedir a disseminação de desinformação durante a guerra, mas as autoridades russas estão indo muito além de quaisquer objetivos legítimos”, disse Williamson. “Os esforços para impor efetivamente um vácuo de informação pública são errados e podem ser perigosos. Os meios de comunicação e os jornalistas devem poder fazer seu trabalho com responsabilidade, sem medo de punição e processo”.
Rede de desinformação
Moscou habitualmente usa a mídia estatal para alimentar sua rede de desinformação online, confundir a opinião pública e tentar, assim, difundir uma versão dos eventos distorcida e favorável ao Kremlin. Quem afirma é Rebekah Koffler, ex-funcionária da inteligência militar norte-americana e autora do livro Putin’s Playbook: Russia’s Secret Plan to Defeat America (sem versão em português). As informações são da rede Fox News.
“Vídeos e outros conteúdos postados nas mídias sociais fazem parte da doutrina de guerra de informação da Rússia”, diz Koffler, que trabalhou na Agência de Inteligência de Defesa (DIA, na sigla em inglês) dos EUA entre 2008 e 2016, como Analista de Inteligência Sênior para Doutrina e Estratégia Russa. “O objetivo é predispor favoravelmente a população russa às ações do governo. Neste caso, a incursão militar na Ucrânia. E convencer os estrangeiros simpatizantes da Rússia a ver o lado russo da história”.
O alvo não é apenas a população civil, que usa a internet para se informar e eventualmente se depara com notícias cuidadosamente inseridas pela mídia estatal russa. Koffler também chama a atenção para o conceito de “engano estratégico“, cujo objetivo é “confundir a inteligência ocidental e os líderes do governo sobre as intenções da Rússia e de Putin”. E, segundo ela, há uma quantidade “significativa” de dinheiro gasto pelo Kremlin nessa máquina de desinformação online.
“O objetivo da Rússia não é exatamente converter alguém que é anti-Rússia e torná-lo um apoiador da Rússia, mas semear dúvidas suficientes e confundir as pessoas sobre os fatos reais no terreno, para que elas se tornem incapazes de tirar conclusões sensatas sobre quem está certo e quem está errado”, afirma a analista.
Koffler cita o caso da RT, emissora online russa que tem canais em idiomas como inglês, francês, espanhol e árabe. Segundo a analista, o conteúdo publicado pelo veículo atende aos interesses do governo russo. Trata-se de um “braço de propaganda do governo russo. Ponto final”, diz ela. Tanto que a emissora foi o primeiro alvo dos hacktvistas (hackers que agem em prol de uma causa) do grupo Anonymous, que se posicionaram a favor da Ucrânia, prometeram atacar digitalmente a Mosocu e tiraram o canal do ar na sexta-feira (25).
Mesmo o nome do veículo, antes batizado Russia Today, foi alterado para RT, de acordo com Koffler. “Eles queriam se dissociar da palavra ‘Rússia’, então usaram RT. E rotineiramente contratam pessoas de língua inglesa, incluindo americanos. Isso é ofício comercial, ofício comercial típico russo”, afirma.
Daniel Hoffman, um ex-agente da CIA (Agência Central de Inteligência, da sigla em inglês) que chegou a atuar na extinta União Soviética, segue a mesma linha de raciocínio. “Vladimir Putin é o dono da mídia. É apenas uma ferramenta para passar sua mensagem do jeito que quer”, afirma ele, que cita também os ataques de hackers como arma do líder russo. “Ele tem todos os tipos de, você sabe, esforços cibernéticos para conquistar o campo de batalha da informação. É isso que ele faz, e é tudo coordenado”.
De acordo com Koffler, esse tipo de campanha é difícil de combater, pois o controle da informação expõe os órgãos reguladores ao risco de praticarem a censura. Sendo assim, cabe ao leitor discernir o que é ou não confiável. “Não acredite em tudo que você vê na internet. Isso se aplica a qualquer conteúdo: russo, americano, qualquer coisa”, diz ela.
Por que isso importa?
A escalada de tensão entre Rússia e Ucrânia, que culminou com a efetiva invasão russa ao país vizinho na quinta-feira (24), remete à anexação da Crimeia pelos russos, em 2014, e à guerra em Donbass, que começou naquele mesmo ano e se estende até hoje.
O conflito armado no leste da Ucrânia opõe o governo central às forças separatistas das autodeclaradas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, que formam a região de Donbass e foram oficialmente reconhecidas como territórios independentes por Moscou. Foi o suporte aos separatistas que Putin usou como argumento para justificar a invasão, classificada por ele como uma “operação militar especial”.
“Tomei a decisão de uma operação militar especial”, disse Putin pouco depois das 6h de Moscou (0h de Brasília) de quinta (24), de acordo com o site independente The Moscow Times. Cerca de 30 minutos depois, as primeira explosões foram ouvidas em Kiev, capital ucraniana, e logo em seguida em Mariupol, no leste do país, segundo a agência AFP.
Para André Luís Woloszyn, analista de assuntos estratégicos, os primeiros movimentos no campo de batalha sugerem um conflito curto. “Não há interesse em manter uma guerra prolongada”, disse o especialista, baseando seu argumento na estratégia adotada por Moscou. “Creio que a Rússia optou por uma espécie de blitzkrieg, com ataques direcionados às estruturas militares“, afirmou, referindo-se à tática de guerra relâmpago dos alemães na Segunda Guerra Mundial.
O que também tende a contribuir para um conflito de duração reduzida é a decisão da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) de não interferir militarmente. “Não creio em envolvimento de outras potências no conflito, o que poderia desencadear uma guerra mais ampla e com consequências imprevisíveis”, disse Woloszyn, que é diplomado pela Escola Superior de Guerra.
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