“Eu quero dizer ao nosso comandante-chefe para parar os atos terroristas na Ucrânia. Porque, quando voltarmos, nos levantaremos contra ele”. A frase, direcionada ao presidente da Rússia Vladimir Putin, é de um soldado russo mantido como prisioneiro pelas forças da Ucrânia. E foi dita durante entrevista coletiva organizada pelo governo ucraniano, segundo a rede norte-americana CNN.
É importante contextualizar a ameaça a Putin. Afinal, foi concedida por um prisioneiro de guerra em um evento coordenado por seus captores. Inclusive, as entrevistas podem configurar crime de guerra sob a Convenção de Genebra, que proíbe a exposição de prisioneiros de guerra a humilhações desnecessárias.
Entretanto, há um ponto nas falas de diversos prisioneiros russos que merece atenção. Eles parecem genuinamente incomodados com a missão que lhes foi concedida. Algo que a CNN diz ter constatado ao conversar com três pilotos russos detidos por Kiev que concederam entrevista com autorização do Ministério do Interior da Ucrânia.
Apesar da possibilidade de os três pilotos também se sentirem intimidados por seus captores, como os soldados exibidos das entrevistas coletivas, a CNN alega que a conversa com o trio foi conduzida com total autonomia. “Os únicos jornalistas na sala eram da CNN, e em nenhum momento os Serviços de Segurança Ucranianos, que estavam na sala o tempo todo, intervieram ou direcionaram a CNN ou os prisioneiros nas respostas a perguntas específicas”, diz a emissora.
Durante as entrevista à emissora, os pilotos deixaram transparecer incômodo com a missão atribuída a eles e com o sofrimento dos ucranianos. Maxim, quem mais falou na conversa com os repórteres da rede norte-americana, contestou especificamente as acusações de Putin de que atacou a Ucrânia para “desnazificar” o país.
“Não vimos nazistas ou fascistas. Russos e ucranianos podem se comunicar na mesma língua, então vemos o bem (nessas pessoas)”, disse o piloto, que afirma ter recebido no dia 23 de fevereiro as orientações para a “operação militar especial”, como Moscou classifica a invasão à Ucrânia realizada no dia 24.
Maxim foi relutante, mas admitiu discordar de Putin, ao menos parcialmente. “É difícil dar uma avaliação direta de suas ações”, disse ele. “Mas, no mínimo, a julgar pelas consequências de suas ordens, ele está incorreto”.
O que mais incomoda os soldados da Rússia, segundo o piloto, é o sofrimento imposto aos civis ucranianos. “Não se trata apenas de desmilitarizar a Ucrânia ou derrotar as Forças Armadas da Ucrânia. Agora, cidades de civis pacíficos estão sendo destruídas. Até… eu não sei… o que pode justificar, porra, as lágrimas de uma criança, ou, pior ainda, a morte de pessoas inocentes e crianças?”.
Maxim citou especificamente Mariupol, onde uma maternidade foi bombardeada, com relatos de civis mortos. “Foi um fato horrível, não só porque é um crime. É vandalismo. Você não pode perdoar essas coisas. Bombardear uma maternidade?”.
Alexei, um dos três pilotos, foi mais comedido e interrompeu o colega. “Não depende de nós decidir quem bombardear ou o que bombardear. É um comando”.
Ameaças a Putin
Em um evento de imprensa diferente, outros prisioneiros de guerra russos conversaram com jornalistas de todo o mundo. E foram mais incisivos ao manifestarem sua insatisfação.
Vladimir, um oficial de reconhecimento do exército russo, direcionou seu discursos aos demais militares do país. “Nosso governo nos disse que precisamos libertar a população civil. Quero dizer aos militares russos: deponham suas armas e deixem seus postos, não venham aqui. Todo mundo quer paz aqui”.
O oficial, então, disse que a insatisfação do exército russo vai acabar se virando contra o líder do país, Vladimir Putin. “Eu quero dizer ao nosso comandante-chefe para parar os atos terroristas na Ucrânia. Porque, quando voltarmos, nos levantaremos contra ele”, afirmou Vladimir.
“Você não vai esconder isso por muito tempo. Há muitos como nós aqui”, reforçou outro oficial de reconhecimento aprisionado pelos ucranianos. “Mais cedo ou mais tarde voltaremos para casa”.
Segundo Neil Greenberg, professor de saúde mental no King’s College, em Londres, a Convenção de Genebra determina que prisioneiros de guerra devem fornecer apenas nome, patente, data de nascimento e número de identificação militar. Segundo ele, no caso dos russos que falaram nas coletivas, há duas hipóteses: ou foram pressionados a falar o que falaram, ou quebraram o protocolo porque estão sob forte estresse e realmente acreditam no que dizem.
Crimes de guerra
Em mais um dos eventos de imprensa organizados pelas forças ucranianas com prisioneiros, um russo chegou a chorar quando disse que, durante a ofensiva, iniciada em Belarus, foi cercado por ucranianos que pediram aos militares que fossem embora: “Não somos fascistas”, diziam. Eventualmente, as tropas tiveram que se render, pois perderam os veículos em um pântano da região e ficaram sem transporte.
Outro soldado, cujo depoimento em vídeo foi divulgado pela Ucrânia, disse que Moscou mentiu ao afirmar que civis não seriam atacados. “Já tínhamos percebido que os mísseis estavam voando contra a população civil, contra cidades comuns, mas não contra instalações militares. Embora nos tenham dito exatamente o contrário. Então, nos rendemos”.
Na entrevista à CNN, Maxim admitiu a possibilidade de ter atingido alvos civis. “É impossível saber realmente o que está além das fronteiras do nosso Estado. Por exemplo, eles marcam uma coluna de tanques. Mas não podemos ter certeza se há realmente uma lá ou não”.
Segundo o piloto, a incerteza é ainda maior porque os ataque usam bombas não guiadas, popularmente conhecidas com dumb bombs (bombas idiotas, em tradução literal) devido à incapacidade de precisar quais alvos serão atingidos. “O mesmo tipo que foi usado durante a Segunda Guerra Mundial, com algumas mudanças aqui e ali ao longo dos anos. Existem variedades balísticas mais modernas, é claro, mas o fato é que não usamos essas”, disse Maxim.
Quanto a determinar a responsabilidade pelas ações que vitimaram civis na Ucrânia, o piloto diz que não se pode direcionar a acusação a uma única pessoa. “Os crimes que cometemos… todos seremos julgados da mesma forma. Fora isso, não posso dizer. É impossível adivinhar. Eles vão nos julgar”, disse Maxim.
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