Nos escombros do Império Otomano, dissolvido no fim da Primeira Guerra, o objetivo do governo turco era facilitar o estabelecimento de um Estado-nação homogêneo e a restauração de seu poder de influência perdido nos anos anteriores. Para atingir o objetivo, usou propaganda estatal para criar um inimigo comum: os armênios, alvos de um massacre que entre 1915 e 1923 ceifou a vida de 1,5 milhão de pessoas.
A avaliação é da pesquisadora Edita Gzoyan, vice-diretora científica do Museu do Genocídio Armênio em Yerevan, na Armênia. Doutora em relações internacionais pela Universidade Estadual de Yerevan, Gzoyan, é especialista na história do país na sequência do fim do Império, que controlava parte do território ocupado pelos armênios étnicos, de religião cristã.
A pequena nação, localizada no Cáucaso, está encurralada entre duas potências regionais, a Rússia e a Turquia. O fato de essa população estar espalhada pelos dois impérios, argumenta Gzoyan, contribuiu para insuflar a narrativa dos armênios como inimigos do Estado que culminou no morticínio. Ao final de oito anos, restavam apenas 600 mil armênios na Turquia – ou cerca de 1/4 da população original.
O reconhecimento do genocídio armênio pelo presidente norte-americano Joe Biden, concedido no último dia 24, foi saudado pelo governo da Armênia e pela comunidade na diáspora e renovou o interesse da opinião pública a respeito das atrocidades perpetradas no início do século 20 pela Turquia.
Veja a conversa de A Referência com a pesquisadora, na íntegra.
Qual é o contexto no qual ocorre o genocídio?
O contexto histórico que precede o genocídio armênio no Império Otomano foi complexo, como em qualquer acontecimento do tipo, mas alguns pontos se destacam. A primeira e mais importante precondição é a desigualdade institucionalizada do sistema otomano, marcada por uma posição subordinada dos cristãos armênios e supremacia dos turcos muçulmanos como a comunidade dominante, nação titular de um país multiétnico e multirreligioso.
No final do século 19, as elites intelectuais de todas as comunidades nacionais passam a cooperar para derrubar a ditadura do sultanato e estabelecer um regime constitucional, o que resulta em um golpe de Estado em 1908. Contudo, esse novo governo de maioria turca não conseguiu criar o Otomanismo como uma ideologia que pregasse a cidadania comum para toda a população do império, independente de fé, religião e etnia.
No período que precede a Primeira Guerra Mundial, houve o contínuo recuo do império da Europa para a Ásia Menor, em função das derrotas nas guerras Ítalo-Turca e Balcânica, entre 1911 e 1913 e as revoltas dos albaneses muçulmanos e árabes. Tudo isso resultou em desastre político, ideológico e militar para os turcos. O chamado CUP (Comitê de União e Progresso, chamados informalmente de “Jovens Turcos”), partido que controlava o país e foi o formulador e propagador do nacionalismo turco, adota então um posicionamento político radical. Em 1913, há outro golpe do CUP, que viabiliza uma ditadura no império.
Pela legislação, os armênios eram marginalizados na vida social, econômica e cultural do país e, por meio de clubes de intelectuais e sindicatos, a propaganda estatal transfere o ódio da população muçulmana dos refugiados dos Bálcãs para os armênios. O estabelecimento de um Estado-nação homogêneo turco era a visão de prazo mais curto do CUP, enquanto a união de todas as nações de origem turca na Ásia Central e restauração de um grande império sob a supremacia turca era seu ideal.
Mas a população armênia, que tinha uma forte marca de identidade nacional, além de burguesia e instituições religiosas bem-estabelecidas, era um símbolo de que a política assimilacionista dos otomanos não havia dado certo. Como os armênios viviam em suas terras ancestrais no coração desse futuro Estado-nação, essa população tornou-se obstáculo e alvo.
Houve programas de reforma para auxiliar os armênios com ajuda dos países europeus em 1878, 1880 e 1896, que foram na prática bloqueados pelo Império Otomano. A Constituição de 1908 [elaborada por uma Assembleia dividida entre turcos, armênios, sérvios, búlgaros e outras etnias que compunham o império] nunca foi promulgada. Por isso, não foi possível organizar intervenção humanitária como resposta aos periódicos massacres de armênios.
Uma última tentativa, em 1914, acaba abortada por conta da Primeira Guerra. Com isso, a comunidade armênia ficou vulnerável e tornou-se alvo fácil para investidas do governo. Quando o Império Otomano se junta aos Poderes Centrais, que incluíam a Alemanha e o Império Austro-Húngaro, e entra na guerra, os armênios deixados à margem da sociedade passam a ser classificados como traidores em potencial e ameaça real, pela qual uma resposta mortal passa a ser justificada. A guerra torna-se então usada como uma cobertura para a homogeneização étnica do Império.
Como você explica, historicamente, as relações entre a Rússia e a Turquia em relação à Armênia e ao genocídio?
Os armênios eram uma minoria nacional cristã, dividida entre os impérios russo e otomano, que esposavam suas próprias visões expansionistas pan-eslava e pan-turca, e tornaram-se vulneráveis dos dois lados. Contudo, a afinidade religiosa com os russos diminuiu a tensão para os armênios-russos, enquanto para os armênios-otomanos serviu como um marcador de discriminação em um Estado islâmico.
As aspirações geopolíticas do Império Russo nos Bálcãs, em direção ao Mar Negro e os Estreitos de Bósforo e Dardanelos [que separam a Europa da Ásia e hoje estão ambos em território turco] culminaram em mais de uma dúzia de guerras turco-russas ao longo da história, fazendo da Rússia um inimigo natural do Império Otomano. Os armênios, com sua afinidade religiosa aos russos e vivendo dos dois lados da fronteira, tornaram-se vítimas das guerras e da diplomacia dos dois países. Foram assim considerados uma espécie de estrangeiro dentro do território turco.
A Primeira Guerra intensifica esses sentimentos no governo otomano e é usada como pretexto para prosseguir com uma política pré-estabelecida. Como os impérios russo e otomano eram inimigos, espalhavam-se boatos sobre armênios que seriam pró-russos, colocando-os como ameaça existencial sobre a qual uma resposta moral era justificada. O objetivo era se livrar os armênios e homogeneizar a população do império.
Na sua avaliação, por que há uma campanha forte e histórica do governo turco para que o genocídio não seja reconhecido?
A Turquia começou a negar o genocídio dos armênios já no início de sua formação como república. A imagem dos armênios como “inimigos e traidores” foi construída ao mesmo tempo em que se nega e encobre o que ocorreu. As leis temporárias de deportação e confisco de propriedades, que foram anos depois consideradas inconstitucionais, foram novamente adotadas como uma cortina sobre a realidade do extermínio.
Os pais fundadores da República da Turquia moderna eram membros do CUP, que planejou e executou o genocídio armênio, então reconhecer o que aconteceu teria um impacto negativo muito forte na identidade nacional turca construída sobre essas pessoas. Outra questão é que a atual república inclui territórios historicamente armênios. Portanto, reconhecer o genocídio abre caminho para eventuais demandas de devolução dessas terras. Além disso, parcelas grandes de propriedade foram confiscadas dos armênios durante o genocídio, incluindo terra e propriedades de entidades religiosas, residências da população, plantações e animais. De novo, reconhecer o genocídio traria de volta essa demanda por compensação, que é complicada para o Estado turco.
Como os armênios de hoje se relacionam com a diáspora criada pelo massacre de cem anos atrás?
Durante e sobretudo após o genocídio, os poucos que sobreviveram se espalharam pelo mundo, criando o que hoje conhecemos como a diáspora armênia. A história e a memória do genocídio são firmes e trazem uma noção de que somos duas metades de um povo separado pelo genocídio. As relações entre os armênios que vivem aqui e os que estão na diáspora são próximas, e eles contribuem para o desenvolvimento da república armênia contemporânea e da República de Artsakh [região de maioria armênia, hoje em território do Azerbaijão, e pleiteada no conflito de Nagorno-Karabakh]. Eles investem financeiramente e com capital humano para o futuro da nação. Os armênios da diáspora, inclusive, são os responsáveis por iniciar e trabalhar pelo reconhecimento do genocídio armênio em seus países, além da independência do território de Artsakh.
Como você definiria o impacto do genocídio na Armênia contemporânea?
O genocídio ainda afeta a Armênia de hoje na medida em que o não reconhecimento e a ausência de condenação ainda são entendidas como uma ameaça de segurança ao país. O exemplo mais evidente ocorreu em setembro de 2020, quando o Azerbaijão lançou uma ofensiva militar contra os armênios em Artsakh. Há pelo menos 20 anos o reconhecimento do genocídio armênio é uma das principais dimensões da política externa nacional, já que é visto como uma ferramenta importante para garantir a segurança nacional no longo prazo.
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