Artigo publicado originalmente no portal do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes)
*por Carolina Antunes Condé de Lima, doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP)
No dia 21 de abril, vinte e cinco generais da reserva francesa publicaram uma carta, assinada por outros mil militares, alertando o presidente Emmanuel Macron sobre a possibilidade e o limiar de uma guerra civil estourar na França.
De acordo com os generais, as políticas frouxas de segurança pública do atual governo resultariam em caos, gerando a necessidade de intervenção dos militares na ativa, a fim de proteger aquilo que chamaram de “valores civilizacionais franceses”.
Em sua carta, os generais apontam para o perigo da desintegração da integridade e da identidade francesas, e os culpados por isso seriam os antirracistas, pessoas não brancas e, particularmente, o islã.
A carta deslegitima os muçulmanos como cidadãos legítimos ou residentes da França e os trata como uma horda de estrangeiros cujas ideologias e práticas ameaçam a identidade natural do país.
No texto, os generais ainda afirmam que áreas ao redor de algumas cidades francesas foram transformadas em territórios sem lei pelos seus habitantes não-brancos, abalando as estruturas da república da França. No fim, para eles, a simples existência de minorias é uma ameaça à nação.
Como resposta, o governo e partidos de esquerda se manifestaram contra a carta, uma vez que o documento fere a ideia de controle civil sobre os militares, esperado em governos democráticos. A Ministra da Defesa, Florence Parly, falou em punir os signatários que ainda estão na ativa por descumprirem a lei que requer que militares sejam politicamente neutros.
Uma semana após a carta, o chefe do Estado-Maior, general François Lecointre, afirmou que os militares na ativa que assinaram a carta irão passar por um tribunal militar e receberão sanções.
O assunto, que parecia resolvido, voltou às manchetes no dia 9 de maio, quando uma nova carta, dessa vez atribuída a militares franceses na ativa, veio a público, apontando para o que chamam de “concessões ao islamismo” feitas pelo governo de Macron, reforçando o alerta de uma guerra civil.
A nova manifestação é feita por homens e mulheres que dizem terem dado suas vidas em combate ao islamismo em intervenções mundo afora e agora assistem a concessões sendo feitas no próprio país.
Manifestações como essa não são novidade na França. A publicação da primeira carta aconteceu na data na qual se relembra a tentativa de golpe sofrida pelo então presidente Charles de Gaulle, conhecida como putsch de Argel, há 70 anos.
O que está por trás
Na ocasião, um grupo de militares se uniu para depor o então presidente como forma de retaliação aos planos de reconhecer a independência da Argélia. Além da memória histórica, a carta foi publicada num contexto de preparação para a eleição presidencial, que acontece ano que vem e, portanto, de disputa pelo eleitorado francês, que entende a luta contra o terrorismo e a segurança como pautas importantes.
Em função disso, temas como imigração e a disseminação do chamado Islã Radical têm feito, cada vez mais, parte das agendas dos candidatos. Esse novo ataque à política de Macron, e à comunidade muçulmana francesa, acontece num momento em que se assiste ao crescimento das intenções de voto para Marine Le Pen e o aumento da reprovação da atual administração.
Le Pen, candidata da extrema-direita apontada como principal rival de Macron na eleição presidencial do próximo ano, se manifestou em apoio à carta dos generais, os convidou a fazer parte de sua campanha e os convocou para aquilo que chamou de ‘batalha pela França’.
A manifestação de Le Pen gerou críticas dos governistas e, mais abertamente, da Ministra Parly, que afirmou que a politização do exército, tal qual defendido por Le Pen, enfraqueceria a própria França, uma vez que “os exércitos não estão lá para fazer campanha [política], mas para defender a França e os franceses”. A segunda carta também causou reações de repúdio do governo francês e recebeu o apoio de Le Pen.
Dentro desse contexto de disputa pelo eleitorado francês, o atual presidente tem sido acusado de se aproximar cada vez mais da direita e estar se valendo de algumas pautas. Em outubro de 2020, Macron lançou seu projeto de lei para dar fim ao que ele denominou de “separatismo islâmico”.
A proposta de lei surgiu após ataques cometidos por radicais voltarem a acontecer no país, reacendendo os debates sobre islã, secularismo e islamofobia na França, lar da maior população muçulmana na Europa (são aproximadamente seis milhões de muçulmanos, que correspondem a quase 10% da população).
Exclusão
Ao mesmo tempo em que há uma hiper politização do Islã na França, acadêmicos e a comunidade são excluídos dos debates sobre a questão, inviabilizando maior conhecimento e aproximação real da comunidade e suas demandas e problemas, resultando numa dificuldade de entender a diversidade de opiniões entre os quase seis milhões de muçulmanos que moram no país.
Uma das principais razões para isso é a instrumentalização do secularismo francês, ou seja, as ideias de laicidade e secularismo são usadas como justificativa para não se engajar nem reconhecer a diversidade religiosa do país. Outra razão se deve ao passado colonial e orientalista, que criou e perpetuou a ideia de que muçulmanos são um bloco único e homogêneo.
Outra frente da lei de Macron contra o separatismo islâmico foi a imposição do não uso do veú por mulheres muçulmanas. Em 2004, o governo aprovou a primeira lei que proibiu o uso de coberturas religiosas em escolas e espaços públicos; em 2011 foi proibido o uso de vestimentas que cobrem toda a face em locais públicos; e em 2016, o governo proibiu o uso de burkinis, lei que depois foi suspensa.
Agora, o governo pretende proibir mulheres que estejam acompanhando seus filhos em atividades escolares e meninas menores de 18 anos a usarem o véu.
Batalha cultural
Todas essas medidas são parte da assim chamada “batalha cultural” contra o “esquerdismo islâmico”, uma suposta aliança entre acadêmicos assumidamente de esquerda e indivíduos das comunidades islâmicas. Essa imposição sobre o que mulheres muçulmanas podem ou não usar remete ao recente passado colonial francês, que reverbera em sua sociedade.
Quando da invasão francesa ao Norte da África (1830-1975), também foi imposto às mulheres que deixassem de usar os véus, além das diversas imposições contra símbolos e práticas religiosas. A ideia de resgatar mulheres muçulmanas sempre foi parte integral do imperialismo francês e foi usado como justificativa e, consequentemente, apagamento das violências cometidas nos territórios invadidos: estima-se que os franceses tenham matado 825.000 pessoas durante a ocupação da Argélia, além dos estupros cometidos contra as mulheres da região.
O debate sobre o véu, portanto, é parte de algo muito maior: é apenas um elemento da atual batalha do governo francês contra ideais de equidade de gênero, raça e teorias pós-coloniais, que têm sido colocadas como ameaças à estabilidade e à identidade nacional francesa.
Ainda que seja cedo para apontar as consequências da carta e do apoio oferecido aos militares por Le Pen, a situação tem se desdobrado de forma preocupante na França. No dia 30 de abril, foi publicada uma pesquisa na qual 58% dos entrevistados concordam com o que dizem os militares e 49% afirmou que apoiaria uma intervenção militar na França. Isso não significa que a França irá sofrer um golpe de Estado, mas pode ser um indicativo do que a eleição presidencial aponta para o ano que vem.
Quando olhada sem contextualização, a carta dos 25 generais, prontamente respondida e rechaçada pelo atual governo da França, perde sua força justamente pela resposta e pela punição aos seus signatários. Porém, a carta mais recente dos militares na ativa e os números de intenções de votos a favor de Le Pen demonstram que há algo muito maior acontecendo na França.
Enquanto a guinada de Macron à direita já é perceptível em uma França na qual a esquerda tem sido, cada vez mais, marginalizada, as eleições do ano que vem podem levar o país a numa guinada para a extrema-direita.
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