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sábado, 2 de abril de 2022

A face carrancuda do BRICS: tendência autoritária ou competitividade com potências?

Por André Amaral

A autocracia de Vladimir Putin. A vigilância estatal de Xi Jinping. O ultranacionalismo de Narendra Modi. O militarismo de Jair Bolsonaro. O autoritarismo parece estar esculpindo um busto sisudo do BRICS, agrupamento econômico que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e, desde 2011, África do Sul.

A cúpula surgiu em 2009, como uma resposta à crise global do ano anterior. Mas, se à época havia uma expectativa de que os Estados-membros contestariam a ordem econômica hegemônica de EUA e Europa, hoje, as nações emergentes também são lembradas por abusos contra os direitos humanos e trocas de farpas com diversos países do mundo – particularmente da parte de Moscou e Beijing. E até entre si, como é o caso de Brasil e China, parceiros de longa data que tiveram rusgas em meio à pandemia.

Suas populações, que somadas chegam a 3 bilhões, apesar de avanços notáveis – a China superou os EUA e está no topo da pirâmide da elite econômica, segundo um relatório da empresa de consultoria empresarial norte-americana McKinsey & Co. sobre a classificação global da riqueza –, também sofrem com a repressão imposta por seus líderes. E, agora, com uma guerra que coloca o mundo em alerta.

Da esquerda para a direira, o presidente chinês Xi Jinping; o presidente russo, Vladimir Putin; o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro; o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi e o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, na cúpula do BRICS em Brasília, em novembro de 2019 (Foto: MRE/Arthur Max)

O cenário mais beligerante é justamente o dos russos, que sofrem as consequências de sanções internacionais que vão desde a exclusão da seleção nacional das Eliminatórias da Copa do Mundo até o fechamento de postos de trabalho com a debandada de multinacionais do país. A China, com sua histórica questão com Taiwan, também tem se mostrado intimidadora, com frequentes incursões aéreas que levaram a uma resposta taiwanesa, através da análise das táticas de guerra ucranianas. Já na Índia, quase 200 milhões de muçulmanos vivem em um país controlado por um partido que faz da divisão religiosa e da política pró-hindus uma de suas mais importantes bandeiras. No Brasil, até 2021, mais de 6 mil militares atuavam em cargos civis no governo Jair Bolsonaro.

Se o BRICS possui um superlativo espaço econômico e ostenta uma grande potência política, em se tratando de bem-estar social a história tem sido bem diferente. São povos que frequentemente se mostram insatisfeitos. Ou tentam. Protestos na China e na Rússia frequentemente acabam em prisões. Sem falar em dispositivos nas legislações de ambos países feitos para criminalizar manifestações.

A Rússia, por exemplo, tem leis severas para o controle de atos públicos, que costumam culminar em intensa ação policial. Os detidos têm que pagar multas que vão de dois mil rublos (cerca de R$ 88) a 300 mil rublos (R$ 13,3 mil) e prisão por até 30 dias. A mais recente é o Código de Contraordenações, que regulamenta as ações públicas destinadas a quem “desacredita o uso das Forças Armadas”. Ou seja: protestar contra a guerra pode acabar em detenção.

Homem é arrastado pelas forças policiais em Moscou (Foto: Avtozak LIVE/Reprodução Telegram)

Contextos históricos x tendências globais

Ouvido por A Referência, Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), faz uma análise baseada no contexto histórico das relações de cada país com a democracia e na onda conservadora da última década.

Para ele, o BRICS busca um entendimento de relações internacionais similares em alguns aspectos, embora sejam países que apresentem dinâmicas regionais e domésticas muito particulares. Uns historicamente “mão-de-ferro”; outros que já viveram os dois lados da moeda.

“Embora a gente possa tentar traçar um paralelo em relação aos momentos das políticas domésticas de cada um desses países, elas advêm de contextos muito diversos”, diz ele, citando o caso dos chineses. “A China tem sua tendência histórica, que pode ser compreendida na maneira como o Partido Comunista Chinês chegou ao poder. Você não não tem ali uma democracia liberal na formação do Estado chinês”.

Os russos viveram um processo semelhante, lembra o professor. “A Rússia passou por uma transição muito particular depois do fim da União Soviética. E, então, se compararmos com o Brasil e com a Índia, que são países que tiveram tradições democráticas nas últimas décadas, temos um contexto completamente distinto”.

Brites observa um crescimento de governos com discursos mais nacionalistas na última década, comportamento que, para ele, está relacionado com as novas configurações de poder nas relações internacionais. Mas isso não necessariamente estabeleceria uma tendência autoritária no BRICS.

“Eu não consigo achar que hoje exista uma tendência específica no bloco. O que há é um contexto internacional de maior competição, principalmente entre as grandes potências, e é claro que isso reflete também domesticamente nesses países”, avalia o professor, que considera essa a principal propensão dos emergentes atualmente.

No Brasil, que vive um aceno à extrema direita no governo Bolsonaro, Brites lembra que essa foi uma tendência de guinada política global iniciada na década de 2010, que mostrou força na Europa e usou do mesmo discurso nacionalista para levar Donald Trump ao poder.

“É possível ver algumas feridas se apresentando na democracia brasileira nesse sentido. Por exemplo, a presença mais efetiva de militares no poder, que supera a época do regime militar, o questionamento das eleições, da transparência e legitimidade delas. E esses são aspectos que também se incluem dentro dessas tendências globais”, afirma o analista.

“A ascensão de uma ‘Internacional da Direita” no mundo todo representa uma guinada em favor de valores que a democracia, em nível internacional, julgava já haver suplantado”, afirma o professor de ciências sociais Eduardo Grin, da FGV de São Paulo.

Para Grin, o modelo democrático floresceu sob a lógica de que os atores respeitariam valores como a competição entre ideologias políticas, a vitória e a derrota eleitoral e as instituições. “Não é mais o caso”, afirma.

Com Narendra Modi, do partido nacional-populista BJP (Bharatiya Janata, ou Partido do Povo Indiano, em hindi), a Índia foi de uma democracia vibrante para um Estado que beira o teocrático. Isso foi possível porque o premiê indiano, segundo Brites, buscou mobilizar uma base religiosa a partir de um discurso conservador, algo semelhante ao que aconteceu no Brasil com a volumosa população evangélica que apoiou o atual presidente em 2018.

O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi (Foto: Kremlin)

Na Índia – assim como nas Américas – as razões para uma guinada à direita também têm a ver com desigualdades sociais e com o crescimento de um conservadorismo carregado de religiosidade, lá hinduísta e aqui evangélico, afirma Adrián Albala, professor de ciência política da UnB (Universidade de Brasília).

Brites também crê que o comportamento atual dos países do BRICS tenha relação com a resistência das grandes potências quanto a um “lugar ao sol” do agrupamento no cenário global.

“De países que eram emergentes, que buscavam seu espaço na política internacional, as grandes potências tradicionais, como os europeus e os Estados Unidos, me parecem hoje mais resistentes a essas ideias”, analisa o professor.

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