Com a mídia estatal russa silenciada por governos ocidentais e pelas principais redes sociais do mundo, o corpo diplomático de Moscou assumiu a tarefa de disseminar desinformação e a propaganda estatal na internet. São centenas de perfis de consulados e embaixadas da Rússia no Twitter, no Facebook e em outras plataformas encarregados de desacreditar as acusações de crimes de guerra cometidos por tropas russas e tentar desestruturar a coalizão internacional que apoia a Ucrânia na guerra. As informações são da agência Associated Press.
O movimento foi notado pelas empresas de tecnologia, que passaram a remover as contas suspeitas dos resultados de busca e das recomendações feitas aos usuários. Para alertar o leitor, também foi adicionado um selo indicando que aquele perfil é de uma “organização governamental russa“. Mas as contas seguem ativas, levando o conteúdo irregular a praticamente todas as nações do mundo. Em parte graças ao status diplomático que garante uma camada extra de proteção contra os moderadores de conteúdo.
“Toda semana, desde o início da guerra, esses diplomatas postaram milhares de vezes, ganhando mais de um milhão de engajamentos no Twitter por semana”, disse Marcel Schliebs, pesquisador de desinformação da Universidade de Oxford, na Inglaterra, que rastreou mais de 300 contas de mídia social vinculadas a embaixadas, consulados e grupos diplomáticos russos.
O Reino Unido tem sido um dos alvos, com o perfil oficial da embaixada russa no Twitter culpando os britânicos pela disseminação de falsas acusações contra Moscou de crimes de guerra na Ucrânia.
“Um regime totalitário requer uma bolha de mídia. Requer censura em casa e requer sua própria mensagem, tanto para o público doméstico quanto para o estrangeiro”, afirmou Nicholas Cull, professor da Universidade do Sul da Califórnia que estuda a relação entre diplomacia e propaganda.
O movimento de desinformação e propaganda online não é novo e existia desde antes da guerra. Foi bastante intenso, por exemplo, em 2014, à época da anexação da Crimeia por tropas russas. Mas se intensificou desde a invasão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro. Somente no Twitter, no início do conflito, as contas diplomáticas russas postavam cerca de duas mil vezes por semana, gerando mais de um milhão de curtidas, comentários e compartilhamentos.
As medidas adotadas pelas empresas reduziram o engajamento, com cerca de 300 perfis excluídos das buscas a fim de limitar seu alcance. Ainda assim, Schliebs diz que sua pesquisa indica que essas contas ainda geram cerca de meio milhão de curtidas, comentários e compartilhamentos semanais.
De acordo com o pesquisador da Universidade de Oxford, a censura completa, como alguns sugerem, aumentaria o problema. Isso porque a desinformação migraria para plataformas menos transparentes, como o aplicativo de mensagens russo Telegram. E aumentaria o atrito já existente entre as empresas de tecnologia norte-americanas e o governo russo.
A tendência, portanto, é a de que as redes sociais continuem a monitorar o conteúdo publicado, deixando claro tratar-se de informação difundida pelo governo.
Mídia estatal silenciada
A diplomacia assumiu a dianteira na campanha de desinformação e propaganda após a mídia estatal russa entrar na mira das nações ocidentais, inclusive com a suspensão de transmissões de emissoras russas online. Dois estudos publicados em fevereiro atrelam a emissora RT, bem como a agência estatal de notícias Sputnik, à inteligência da Rússia, liderando uma campanha de desinformação focada não somente em fortalecer a imagem do Kremlin, mas também em desestabilizar governos alinhados com Washington.
Um relatório publicado no dia 20 de janeiro pelo Departamento de Estado dos EUA também destaca a atuação dos veículos de mídia a serviço da inteligência russa. “Os meios de comunicação russos financiados pelo Estado e dirigidos pelo Estado RT e Sputnik são elementos críticos no ecossistema de desinformação e propaganda da Rússia”, diz o documento.
Análise semelhante foi feita pelo Robert Lansing Institute (RLI), uma ONG dos Estados Unidos que classifica a RT como “instrumento de propaganda e desinformação russa”. E cita, entre os temas focados pela emissora, o da pandemia de Covid-19, particularmente na França.
Segundo o RLI, os veículos estatais russos têm um objetivo em comum: “Minar a ordem liberal e democrática ocidental”, diz a ONG em sua análise. O documento do governo dos EUA segue a mesma linha e diz que a meta é “influenciar a opinião pública e a política externa em favor dos objetivos políticos do Kremlin”.
Por que isso importa?
A diplomacia russa tem dado enorme dor de cabeça às nações ocidentais nos últimos anos. Antes de surgir esse problema do compartilhamento de desinformação e propaganda, o que preocupava eram os casos de diplomatas acusados por países europeus de desempenharem atividades de inteligência sob o disfarce do serviço diplomático.
O país mais afetado pela espionagem russa tem sido a Alemanha, dona da maior população e da principal economia da União Europeia (UE), o que a torna forte influenciadora do bloco, inclusive em assuntos ligados à Rússia.
A relação diplomática entre Moscou e Berlim é ruim desde 2014, quando da anexação da Crimeia. Desde então, o bloco europeu proibiu a venda para empresas russas de bens de dupla utilização, aqueles que poderiam também ter uso militar, e os casos de espionagem se acumulam.
O caso que mais contribuiu para estremecer as relações entre Berlim e Moscou ocorreu em 2020. Foi o envenenamento do principal opositor do Kremlin, Alexei Navalny, que aliados dele atribuem ao presidente russo Vladimir Putin. A vítima se recuperou na capital alemã antes de retornar à Rússia, onde está preso desde fevereiro de 2021.
A Ucrânia, agora integralmente invadida por tropas de Moscou, também detectou forte atividade de inteligência russa nos últimos anos. Um relatório divulgado pelo SBU (Serviço de Segurança da Ucrânia, da sigla em inglês), no final de 2021, aponta que mais de 20 oficiais da inteligência russa operavam no país sob cobertura diplomática e foram denunciados desde 2014. O trabalho já levou aos tribunais mais de 180 réus, que foram posteriormente considerados culpados por traição e espionagem.
Até mesmo a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) foi alvo dos espiões, tendo anunciado, em outubro do ano passado, a expulsão de oito diplomatas russos. Como consequência, à época, a aliança ainda reduziu pela metade a equipe de Moscou dentro de seu quartel-general.
Em março deste ano, já em meio à guerra, outros países europeus anunciaram a expulsão de supostos diplomatas russos. Primeiro a Bulgária, que determinou a saída do país de dez acusados de desempenharem funções incompatíveis com o status diplomático. Uma semana depois foi a vez da Polônia, cuja lista de expulsões tinha 45 pessoas.
Dias depois, quatro países da União Europeia (UE) expulsaram 43 diplomatas russos no total. A Holanda puxou a fila, com 17 diplomatas expulsos por desempenharem “atividades secretas”. A Bélgica, em ação coordenada com o vizinho, expulsou 21 russos. O terceiro país a aderir à ação foi a República Tcheca, com um nome, enquanto a Irlanda anunciou uma lista com quatro indivíduos.
Já em abril foi a vez de a Alemanha expulsar 40 diplomatas russos, enquanto a França anunciou a saída de 25 indivíduos. A Lituânia, por sua vez, expulsou o embaixador russo em Vilnius e convocou seu principal diplomata em Moscou para retornar ao país. Na sequência, a vizinha Letônia disse estar “reduzindo suas relações diplomáticas com a Federação Russa”, sem dar maiores detalhes.
Uma nova leva de países europeus anunciaram a expulsão de integrantes do corpo diplomático russo neste mês de abril. Juntos, Portugal, Espanha, Dinamarca, Suécia e Itália expulsaram mais de 80 indivíduos acuados de usar as funções diplomáticas para acobertar o fato de servirem à inteligência russa. O mais recente caso foi o da Macedônia do Norte, com seis expulsões.
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