Por André Amaral
Uma guerra que não é chamada de… guerra. Na Rússia, é proibido chamar o conflito em andamento na Ucrânia desde 24 de fevereiro pelo nome. No lugar, a imprensa teve que adotar um eufemismo definido por Vladimir Putin: “operação militar especial”. Não satisfeito, o presidente determinou punições severas para os meios de comunicação que não seguirem uma linha editorial estatal. São tempos de silenciamento ainda mais duro dos profissionais de imprensa do país.
Estão terminantemente proibidos quaisquer relatos de bombardeios russos a cidades ucranianas e baixas civis, bem como textos que usem expressões como “ataque”, “invasão” ou “declaração de guerra”. E jornalistas que não dançarem conforme a “kalinka” (música folclórica local) podem ser expulsos do baile.A nova lei assinada no início de março impõe duras punições àqueles que divulgarem notícias sobre a guerra consideradas “falsas” pelo governo russo. A punição àqueles que desrespeitarem a medida é de até dez anos de prisão. Em casos que a Justiça considere terem gerado “consequências sérias”, a punição sobe para até 15 anos.
Porém, a ferramenta de censura do Kremlin para reprimir a oposição e silenciar os meios de comunicação não alinhados com o governo não alcança parte da mídia independente, principalmente a que foi buscar refúgio fora do país. Contornando a censura de várias maneiras, ela leva aos cidadãos russos acesso vital a fatos sobre a guerra que não são relatados pela imprensa estatal, como a Channel One, Rossiya 1, NTV – da gigante de energia Gazprom – e o canal de notícias a cabo Rossiya 24.
Entre os veículos “exilados” que mais condenam os atos do regime de Putin está o Meduza, que abrange informações sobre todas as ex-repúblicas da extinta União Soviética, detalha o site O Bastidor. A publicação não acatou as regras nem mudou o tom quanto às ações das tropas russas dentro do país vizinho. A atitude desafiadora ocorre pelo fato de o veículo estar registrado na Letônia, fora do controle do Estado russo.
Já um dos tradicionais pilares de resistência da imprensa livre, o jornal Novaya Gazeta jogou temporariamente a toalha e decidiu suspender as atividades. Pelo menos até que as ofensivas em solo ucraniano cessem, segundo a direção. Criado logo após a dissolução da União Soviética, em 1991, a publicação foca em reportagens investigativas e combativas à corrupção das elites russas e do Kremlin.
O anúncio sobre a paralisação a versão doméstica veio do editor do jornal independente,
Dmitry Muratov, vencedor do prêmio Nobel da Paz em outubro por “defender a liberdade de expressão na Rússia sob condições cada vez mais desafiadoras”. Em uma das suas edições derradeiras, o Novaya Gazeta trouxe uma arte de capa com referências sombrias, que mostrava a silhueta de bailarinos tendo ao fundo uma explosão em forma de cogumelo (geralmente associada a explosões nucleares). A legenda foi, no mínimo, corajosa: “Uma edição da Novaya concebida em conformidade com todas as novas regras do código criminal da Rússia”.À rede Radio Free Europe, Muratov justificou que suspendeu as operações após receber avisos oficiais. Segundo ele, o jornal foi notificado duas vezes pelo Roskomnadzor, órgão regulador de internet e dos meios de comunicação, que pretendia fechá-lo por meio de ação judicial.
“Depois disso, estamos interrompendo o lançamento do jornal no site, nas redes (sociais) e no papel, até o final da “operação especial no território da Ucrânia'”, disse o jornal em comunicado no dia 28 de março. A alternativa foi lançar uma versão europeia, em russo e inglês, produzida fora da Rússia por jornalistas exilados, que vai circular ao menos enquanto a edição doméstica estiver parada.
‘Não existe mais jornalismo na Rússia’
Em entrevista à rede Voice of America (VOA), o jornalista russo Nadezhda Prusenkova falou sobre a atmosfera de trabalho no país.
“Trabalho no Novaya Gazeta há bastante tempo e agora é provavelmente o momento mais difícil de toda a história do Novaya Gazeta. A última edição que publicamos foi a mais difícil de montar, tanto técnica quanto moralmente”, relatou.
Ele também deu um panorama sobre a situação da categoria após a implementação da nova lei de Putin sobre “fake news“.
“Quando a lei sobre notícias falsas entrou em vigor, quase 30 meios de comunicação foram bloqueados, fechados ou destruídos. O jornalismo se perdeu na Rússia. Simplesmente não existe mais. Jornalismo independente, pelo menos”, lamentou.
Há pouco mais de um ano, em março de 2021, a redação do jornal em Moscou foi alvo de um suposto ataque químico, ocorrido logo após o jornal notificar que três organizações não-governamentais entraram com um processo contra a empresa de “segurança privada” Wagner Group, acusada de implantar mercenários na Síria.
Diversos outros meios de comunicação russos também escolheram parar as prensas em vez de enfrentar a mão-de-ferro da censura. Entre os que lacraram suas portas estão veículos como Ekho Moskvy (Eco de Moscou) e a TV Rain, conhecidos por serem vozes pró-independência em relação ao regime. O Kremlin também bloqueou vários meios de comunicação estrangeiros.
A censura não parece atingir uma fatia significativa da população russa, que parece levar fé no governo e não estar preocupada com o contraponto e a verdade factual trazida pelo jornalismo independente. Pesquisas estatais mostram que a maioria dos russos
– mais de 70% – apoia a “operação militar especial” do Kremlin, segundo a rede NPR. Para os analistas, isso é um reflexo da incapacidade do público em geral de analisar a enxurrada de propaganda.“A maioria das pessoas não busca a verdade. Elas não vão em busca de fatos ou verdade. Elas continuam com sua vida diária”, diz Sergey Radchenko, historiador da Guerra Fria na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. “Então, elas estão procurando subconscientemente algum tipo de desculpa e compram essa narrativa que está sendo oferecida a eles”.
Mídias sociais sitiadas
A censura russa também repercutiu em bloqueio parcial do acesso ao Facebook, Twitter, Instagram e a diversos outros sites informativos locais e estrangeiros no país. A ação é mais um capítulo da repressão imposta por Moscou às vozes dissonantes durante a guerra na Ucrânia.
O TikTok também proibiu temporariamente os usuários na Rússia de enviarem novos conteúdos.
Já o YouTube e o aplicativo de mensagens Telegram, bastante usados por fontes de propaganda estatal, ainda estão disponíveis e são amplamente utilizados no país.A lei sobre “notícias falsas”, que entrou em vigor no dia de 4 de março, surgiu após anos de crescente pressão do governo sobre os meios de comunicação, enquanto pesquisas mostraram que a maioria dos russos (64%) recebe suas notícias da televisão estatal.
As lentes russas
A visão de mundo mostrada pelos órgãos estatais russos é uma alternativa do Kremlin às narrativas ocidentais, segundo artigo da rede NPR. Nessa cosmovisão geopolítica particular, praticamente todos os eventos globais são pautados pelos interesses russos: Putin é um peso-pesado político inigualável na arena global, “e as nações do mundo rotineiramente procuram em Moscou soluções para as crises internacionais mais prolongadas”, diz o texto.
Em todas as redes, combatentes ucranianos são definidos como “terroristas” e “rebeldes”, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) é o “mestre ultramarino” da Ucrânia e os foguetes russos atingem apenas alvos militares, enquanto as tropas da ex-república soviética usam hospitais e prédios residenciais como cobertura.
Um exemplo da cobertura russa pode ser visto no Vesti Nedeli, principal programa dominical que aborda notícias da semana no canal Rossiya 1. O jornalístico foi recentemente líder de audiência ao retratar as alegações de Putin sobre sobre a ação de “nazistas ucranianos conduzindo uma campanha de genocídio” na região de Donbass, no leste da Ucrânia.
“Está claro agora que, se nossas tropas não tivessem entrado, Donbass teria sido varrida da face da Terra”, disse
o apresentador Dmitry Kiselyov.O presidente dos EUA, Joe Biden, é figura cativa na mídia estatal russa. Um popular talk show costuma reproduzir comentários anti-Biden feitos pelo ex-presidente Donald Trump e pelo apresentador da Fox News Tucker Carlson. Ambos citam, entre outras coisas, “pedidos crescentes” pelo impeachment do líder norte-americano, dizendo que ele culpa a Rússia por seus problemas domésticos.
Nesse cenário, a mídia estatal russa entrou na mira das nações ocidentais. A Alemanha lidera a empreitada, após proibir as transmissões do canal em alemão da emissora russa RT. Luxemburgo seguiu o mesmo caminho, e a França abriu investigação para avaliar o comportamento da empresa. Dois estudos atrelam a emissora, bem como a agência estatal de notícias Sputnik, à inteligência da Rússia, liderando uma campanha de desinformação focada não somente em fortalecer a imagem do Kremlin, mas também em desestabilizar governos alinhados com Washington.
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