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quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Sem fiscalização, agrotóxico vira arma para violência doméstica

Sem fiscalização, agrotóxico vira arma para violência doméstica_capa

Agrotóxicos foram usados como armas em 305 casos de tentativa de envenenamento com pesticidas na última década, de acordo com dados do Sistema de Agravos de Notificação (Sinan). Em 77% dos casos a violência ocorreu dentro de casa.

O levantamento exclusivo da Agência Pública e Repórter Brasil revela um desvio no uso dos produtos agrícolas, que estão sendo utilizados para matar e ameaçar pessoas. Houve 32 homicídios com os produtos nesse período. 

Os dados do Ministério da Saúde foram obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) e mostraram ainda que o agrotóxico mais usado nos casos de violência está banido no país desde 2012. Trata-se do Aldicarbe, popularmente conhecido como chumbinho e usado ilegalmente como veneno de ratos. Além dele, mais 22 tipos de agrotóxicos foram usados para a prática de agressões, como os herbicidas Glifosato (15%) e Picloram (14%), substâncias permitidas no Brasil, mas altamente tóxicas. 

O perfil das vítimas não foge ao que se tem observado nos últimos anos em relação às mortes violentas no Brasil: pessoas pretas e pardas, jovens e que não chegaram a completar o ensino fundamental. 

Os dados estão longe de representar a realidade. Além de problemas no processo de  notificação — já que muitos casos são confundidos com suicídios — a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima que para cada caso notificado de intoxicação, existem outros 50 não computados. 

Especialistas consultados pela reportagem avaliam que muitos casos não chegam à polícia, pois não são registrados como violência ou tentativa de homicídio. 

Outro grande problema é que a falta de controle nas vendas dos agrotóxicos facilita o acesso e impede de rastrear o comprador. E no caso dos produtos proibidos como o Aldicarbe, que seguem sendo vendidos ilegalmente no Brasil, é ainda pior.  

“Os dados levantam vários debates urgentes, mas principalmente a ausência de um sistema de controle  destes receituários agronômicos, que permitiria rastrear quem comprou, vendeu e receitou o produto. Assim como identificar o passivo de substâncias proibidas existentes no país. No caso do Aldicarbe, será mesmo que o que tem sido consumido é mesmo a substância ou alguma outra mistura”, analisa a pesquisadora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Karen Friedrich. 

No universo das intoxicações causadas por violência, o uso de agrotóxicos agrícolas é a segunda causa mais recorrente, com 32% dos casos. Os raticidas vêm em primeiro lugar (52%). Ao longo de 10 anos anos, o Sinan registrou 962 casos no total.  Não estão inclusos os registros com uso de medicação. 

Aldicarbe no centro de duas tragédias 

Banido no Brasil há quase uma década, o Aldicarbe ainda continua deixando vítimas. O agrotóxico foi retirado do mercado justamente pelo uso irregular e indiscriminado como agente abortivo e em tentativas de homicídio e de suicídio. No documento de banimento do produto, a Anvisa declarou que o Aldicarbe havia se tornado um “grave problema de saúde pública, de amplitude nacional, dada a facilidade que se tem a seu acesso, particularmente nos centros urbanos”. O documento ainda diz que até a época do banimento, cerca de 100 pessoas morriam envenenadas por aldicarbe a cada ano apenas no estado do Rio de Janeiro. 

De acordo com o Sinan, pelo menos 116 morreram envenenadas por Aldicarbe entre 2013 e 2019. 

Um desses casos ocorreu no Ceará em 2014. Cristiane Renata Coelho Severino foi condenada a 32 anos de prisão em regime fechado por ter envenenado o filho, uma criança autista de 8 anos. De acordo com a investigação da polícia civil, ela colocou Aldicarbe em uma mamadeira com sorvete de morango e deu à criança. Cristiane também foi acusada de tentar matar o ex-marido, o tenente do Exército Brasileiro Francilewdo Severino, que sobreviveu ao envenenamento após ficar por duas semanas em coma. 

Cristiane está presa desde 2015. Procurada, a família da vítima preferiu não comentar o caso. 

Em 2019, o Aldicarbe também esteve no centro de outra investigação criminal, desta vez em Brasília. O professor Charles de Albuquerque Silva, de 50 anos, morreu envenenado pelo agrotóxico. Em áudio enviado a um amigo antes de falecer, Charles alegou que uma colega de trabalho o teria envenenado com suco de uva durante uma reunião na escola onde trabalhavam. Após a reunião, ele passou mal e foi encaminhado ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Morreu após quatro dias internado. 

Exames realizados por equipes dos institutos de Medicina Legal (IML) identificaram resíduos de Aldicarbe no corpo do docente. Em outro áudio, Charles disse ao mesmo amigo que iria denunciar um esquema de desvio de dinheiro na escola em que trabalhava e da qual foi diretor por oito anos. Com isso, a Polícia Civil começou a investigar a possibilidade de homicídio, mas controversas no caso enfraqueceram a hipótese, como a inexistência de traços de suco de uva nas roupas do professor, falta de testemunhas, e a não comprovação da denúncia de desvio na escola. Foi investigada também a hipótese de suicídio. No final de junho, o Ministério Público do Distrito Federal pediu o arquivamento do processo por não ter sido “demonstrada a existência de crime doloso contra a vida”. 

O pesticida Aldicarbe foi proibido no Brasil pelo uso indiscriminado como agente abortivo e em tentativas de homicídio

Acesso fácil aos venenos e vulnerabilidade social 

Para a socióloga Ana Paula Portela, especialista em violência, essas agressões, embora raras se comparadas com os demais tipos de violência doméstica, são facilitadas quando se tem disponíveis meios baratos, simples e mortais. É o caso do chumbinho, embora ilegal, facilmente encontrado nos camêlos e mercadinhos de bairro em todo o Brasil. “O meio não precisa ser legalizado para que esses crimes ocorram. Sabe-se que em cenários de muita precariedade, baixíssimo acesso a informações, escolaridade e serviços, a solução violenta de conflitos é facilitada e legitimada”, analisa a socióloga.

De acordo com a Lei dos Agrotóxicos, a fiscalização do comércio desses produtos é de competência dos órgãos estaduais de agricultura. Após a aprovação do registro de um agrotóxico pelo Ministério da Agricultura, Ibama e Anvisa, a empresa que pretende comercializar o produto precisa ainda se registrar nos órgãos de agricultura estaduais. Já o consumidor é obrigado a apresentar o receituário agronômico emitido por profissional legalmente habilitado para comprar um agrotóxico. 

Ao cruzar os dados destes casos com o Índice Brasileiro de Privação (IBP), desenvolvido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e que analisa as condições de desigualdade por setor censitário, municípios e estado, identificamos que das 193 cidades que registraram casos de violência por envenenamento, 60% estão classificadas com nível alto ou muito alto de privação, ou seja, cidades onde as condições de acesso da população a educação, nível de renda e condições de moradia são precárias.

Em uma escala que vai de 1 a 5, onde a menor medida significa baixas condições de privação, enquanto que as categorias mais elevadas representam altos níveis de desigualdade social, 60% das cidades com casos de violência por envenenamento possuem IBP alto ou muito alto. 

Embora a maioria dos casos tenha ocorrido nas zonas urbanas das cidades, apenas nove capitais estão entre as 193 cidades que registraram esse tipo de violência. A incidência maior está em cidades com menos de 100 mil habitantes e localizadas longe das grandes metrópoles. 

“Os municípios mais vulneráveis são os mais atingidos”, analisa a epidemiologista e vice-coordenadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz), Maria Yuri Ichiara. “Há ainda possíveis problemas de saúde, condições psicológicas e materiais que podem estar levando essas pessoas a cometer determinados tipos de violência”.

“Os municípios mais vulneráveis são os mais atingidos” analisa a epidemiologista Maria Yuri Ichiara

Recife lidera

Recife é a cidade com maior registro de casos de violência por envenenamento, com 24, e a quarta com maior incidência deste tipo de violência, com 1 caso a cada 100 mil/habitantes — fica atrás apenas de Jataí (GO), Iguatu (CE) e Vitória (ES). De acordo com o Relatório de Comercialização de Agrotóxicos do Ibama de 2019, Pernambuco é apenas o 16º estado que mais utiliza pesticidas no país, com os pesticidas 2,4-D e Glifosato na liderança. 

Segundo a Agência de Fiscalização Agropecuária do Estado de Pernambuco (Adagro), responsável por fiscalizar a revenda de agrotóxicos, o uso inadequado dos produtos é considerado crime e gera punição tanto para o comerciante que vende o agrotóxico quanto para o usuário que o compra. “É lavrado o auto de infração com o termo de apreensão e os produtos são encaminhados a delegacia para abertura de inquérito contra a saúde pública. A equipe pode solicitar ainda a interdição temporária do estabelecimento, com multa inicial de R$ 500 a R$ 5.000”, informou o órgão. 

Porém, a fiscalização no comércio informal só ocorre em casos de denúncias, recebidos pela ouvidoria do órgão. O procedimento é seguido pela maioria das Vigilâncias Sanitárias e dos órgãos de fiscalização federal, como Mapa e Ibama. 

De acordo com a Adagro, foram feitas mais de mil fiscalizações em Pernambuco de uso e comércio de agrotóxicos em 2019, e quase a metade ocorreram em propriedades rurais. 

Dos 24 casos de Recife, apenas dois não ocorreram em casa. Em todos os envenenamentos que conseguimos mapear a substância, pois várias células não continham informações, o Aldicarbe foi a única registrada.A principal faixa etária das vítimas é entre 20 e 53 anos (10 ocorrências) sendo 50% homens e 50% mulheres. Dentre os registros que ocorreram dentro das residências, uma das vítimas era uma menina de 4 anos de idade, que morreu envenenada em abril de 2018.



source https://apublica.org/2021/01/sem-fiscalizacao-agrotoxico-vira-arma-para-violencia-domestica/

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