Copiando estratégia usada por Donald Trump em 2020, o partido do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus correligionários investiram na busca por fiscais de urnas para as eleições presidenciais de 2022.
O então candidato à reeleição foi um dos que se engajou na campanha: “você lá no local de votação vai ficar de olho, vai ficar ligado em tudo que acontece lá dentro. Ajude o nosso Brasil!”, disse em vídeo publicado nas redes do partido em 21 de outubro. O Partido Liberal (PL) lançou o site fiscaisdobolsonaro.com.br, no qual pessoas interessadas poderiam se inscrever para ser “os olhos e o coração do presidente na sua seção eleitoral”, como explicou uma das peças publicitárias. “Precisamos de você. Pela segurança eleitoral, pelo bem do Brasil!”, publicou o PL em outro post, também no dia 21.
Como resultado, o PL cadastrou centenas de fiscais para atuar no dia das eleições acompanhando o trabalho dos mesários, dentro e fora do país.
A estratégia fazia parte de uma intensa campanha para descredibilizar as eleições e a democracia e estava associada à disseminação de fake news sobre a segurança das urnas, como a Agência Pública já demonstrou.
Assim, aqueles que deveriam zelar pelo sistema eleitoral na verdade espalharam mentiras sobre a segurança das urnas eletrônicas e pediram um golpe de Estado. Alguns ainda compartilharam diversas fotos e vídeos do dia em que os prédios dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário foram invadidos em Brasília.
A responsabilidade pelo cadastramento e atuação dessas pessoas no exterior é da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP). A reportagem acessou via Lei de Acesso à Informação um telegrama que afirma que ela foi escolhida pelo PL para tal missão, que internacionalizou a campanha copiada do manual trumpista.
No dia 28 de outubro de 2022, a Secretaria de Estado de Relações Exteriores (SERE), subordinada ao Itamaraty, enviou o telegrama a consulados em vários países informando que “a coligação ‘Pelo Bem do Brasil’ indicou o nome de Carla Zambelli Salgado de Oliveira como autoridade credenciadora para expedição das credenciais de seus fiscais e delegados”.
O telegrama indicava que o PL já havia encaminhado uma lista com 196 nomes de “indivíduos já credenciados para atuar na fiscalização” em 18 países, entre eles, Bélgica, Canadá, Espanha, Estados Unidos da América, Itália, Portugal e Reino Unido.
Nas vésperas do segundo turno, Zambelli fez várias publicações chamando voluntários. “Olá, patriotas do Brasil e de fora do Brasil, esse vídeo é pra você que quer nos ajudar no dia da eleição, no dia 30. Entre no site fiscaisdobolsonaro.com.br e cadastre o seu nome ali”, disse a deputada federal Carla Zambelli em vídeo publicado no Facebook no dia 28 de outubro.
A deputada também explicou que os cadastros recebidos pelo site seriam avaliados pelo partido, que selecionaria os representantes do presidente nas seções.
“A gente vai fazer uma moderação desse cadastro, vamos verificar se você, nas suas redes sociais, é uma pessoa isenta. Saibam que 30% dos cadastros tinha gente lulista lá. Mas fica tranquilo, a gente está com o IP de todo mundo, e aqueles que eventualmente passarem pelo nosso crivo e tentarem tumultuar a eleição no dia 30, fiquem tranquilos também, a gente vai processar você pelo PL e no Ministério Público Federal. Isso é crime”, disse a deputada em postagem do dia 28 de outubro.
Pelo contrário, como a apuração da Pública revela, o partido permitiu que várias pessoas que publicavam frequentemente informações falsas sobre o sistema eleitoral assumissem a função de fiscalizar as seções.
Algumas publicações feitas pela deputada condicionavam a segurança do processo eleitoral à presença dos fiscais nas seções eleitorais. “Faça sua inscrição e nos ajude a fazer uma eleição cada vez mais limpa e transparente”, dizia postagem de 23 de outubro de 2022. Ela disse ainda que os fiscais deveriam estar na seção eleitoral desde antes do início do horário de votação e até depois do fechamento da urna, para “garantir a lisura”.
A presença de fiscais está prevista na lei eleitoral, desde que cumpridas algumas regras, como o credenciamento prévio e presença de no máximo dois fiscais de cada coligação por seção eleitoral. Entretanto, advogados eleitorais identificaram um movimento diferente do usual nas últimas eleições, no qual os fiscais eram chamados com base em teorias da conspiração que previam que haveria algum tipo de fraude, como explicaram especialistas à Pública. Na época, a reportagem identificou que mentiras sobre a segurança do sistema eleitoral foram usadas por candidatos como incentivo à adesão de voluntários.
Mentiras sobre fraude nas eleições e atos golpistas
De acordo com o levantamento da Pública, ao menos 38 pessoas que atuaram na fiscalização das seções eleitorais em nome do partido de Bolsonaro compartilharam publicações com algum tipo de desinformação — sobre a covid-19, as urnas eletrônicas, os atos golpistas, entre outros.
O ataque ao sistema eleitoral foi o mais comum. Os fiscais postaram que o resultado das urnas não seria confiável, pois poderia ser alterado, e repetiram o lema bolsonarista que pede o acesso ao “código fonte” das urnas, o mesmo que apareceu em faixas durante a invasão dos prédios públicos em 8 de janeiro. A Justiça Eleitoral já explicou que não é capaz de alterar os votos contabilizados pelas urnas e que o código fonte foi inspecionado pelos partidos, universidades públicas e Forças Armadas.
Fiscal em Roma, Thirsá Rita Rossi Tirapelle compartilhou uma publicação afirmando que “Lula não foi eleito pelo povo. Ele foi escolhido e eleito pelo STF [Supremo Tribunal Federal] e TSE [Tribunal Superior Eleitoral]. O vídeo publicado por Thirsá foi compartilhado também por outra fiscal, Paula Fernanda Munhoz, que atuou em Miami, e pelo próprio ex-presidente, mas é desinformativo. Thirsá fez ainda outros quatro posts que foram identificados pelo Facebook como falsos.
Já Roberto Quintes, que foi fiscal na Bélgica, publicou um vídeo no qual um homem afirma que a Justiça Eleitoral atuou “para que eu e você votássemos em um candidato e possivelmente as urnas elegessem outro”. O vídeo não foi identificado pelas redes como falso, embora seja fake news. Quintes também compartilhou um vídeo supostamente de uma rede de televisão inglesa que falava sobre a existência de uma fraude na eleição brasileira, o que é mentira.
Misael Backhaus, que trabalhou em Madri; Degiane Almeida, que atuou em Bruxelas; e Raquel Waechter, que representou o partido de Bolsonaro em Paris são alguns dos fiscais que compartilharam imagem da bandeira do Brasil em preto e branco com os dizeres #BrazilWasStolen — o lema em inglês foi utilizado no Brasil e no exterior para dizer que as eleições foram fraudadas. Em alguns casos o conteúdo foi identificado pelas redes e marcado como falso, em outros não. O conteúdo foi checado pelo PolitiFact.
Além da disseminação de informações falsas, também houve o compartilhamento de mentiras sobre as invasões aos prédios públicos em Brasília no início de janeiro. Um dos exemplos vem de Raquênia Moreira, que também foi fiscal na Bélgica, na capital Bruxelas. No seu perfil no Facebook, ela disseminou desinformação sobre os atentados do dia 8. Em uma das publicações, ela repostou um vídeo afirmando que os atos de vandalismo partiram de infiltrados.
O vídeo mostrava imagens de um vândalo quebrando o relógio de Dom João VI, alegando que o objeto marcava 12:20, horário em que os atos ainda não tinham começado. O Estadão Verifica mostrou que o horário marcado não é prova de infiltrados, já que o relógio não funciona há alguns anos. Um dia antes, Raquênia já havia feito outra postagem apontando um integrante do MST como o responsável pela destruição do relógio. Na ocasião ela escreveu que “O terr*rist4 do MST foi contr4t4do para quebr4r tudo antes que os Patriotas chegassem. #ForaLula #ForaXandaoDoPCC #LulaGenocida”. Também é fake news.
Em retorno, a assessoria da deputada Carla Zambelli afirmou que os fiscais foram analisados e cadastrados pelo PL. Sobre a indicação para ser a responsável pelos fiscais no exterior, disse que “colocou-se à disposição para ajudar e o PL a chamou para esse apoio”. Ela conta que não repassou nenhum tipo de instrução aos fiscais e que isso ficou a cargo do partido. Questionada sobre a disseminação de mentiras sobre o sistema eleitoral por parte dos fiscais, disse que “não pode ser (sic) responsabilizar por atos cometidos por outras pessoas”.
Zambelli também afirmou que “não tem como saber se todos os fiscais de urna no exterior estavam com crachás assinados por ela”. De acordo com o telegrama que a Pública acessou, a deputada foi indicada pelo PL como “autoridade credenciadora”, o que significa que os crachás deveriam levar sua assinatura. Ainda assim, ela afirmou que “os crachás assinados obedeciam às normas do TSE e a impressão/envio era responsabilidade do partido”. Leia na íntegra.
Fiscais que organizaram atos golpistas formam rede de apoio a Bolsonaro no exterior
A atuação política das pessoas escolhidas pelo PL como fiscais não está restrita às redes. A Pública identificou que vários dos que se voluntariaram para trabalhar no dia das eleições são organizadores de grupos bolsonaristas no exterior ou articuladores de atos que foram às ruas nas capitais de diferentes países para pedir intervenção militar.
Um dos exemplos é Luciana Mazzaro da Costa Martins, que trabalhou como fiscal no campus da Valencia College, na cidade de Orlando, na Flórida. Em seu Instagram, Luciana se descreve como coordenadora do “Yes Brazil USA”, grupo que organizou dois encontros com Jair Bolsonaro (PL) nas últimas semanas e tem mais de 32 mil seguidores no Instagram. Bolsonaro está nos Estados Unidos desde o fim do ano passado. O Yes Brazil USA levou o ex-presidente ao encontro de apoiadores em Orlando, em 31 de janeiro; e em Boca Raton, em 11 de fevereiro.
O grupo já compartilhou ao menos 8 informações identificadas pelo Instagram como falsas em seu perfil na rede — entre elas, uma que afirma que pessoas morreram depois de serem levadas a prestar depoimento após a invasão de 8 de janeiro. A informação foi checada pela Reuters. O Instagram do grupo chegou a ser impedido de fazer lives e a conta do Twitter de Luciana (@Lumazzaro47) está suspensa por ter violado as regras da rede.
No encontro também estavam presentes o pastor Wesley Ros, que tentou se eleger deputado federal por São Paulo ano passado a convite de Bolsonaro, além dos influenciadores Paulo Figueiredo Martins e Allan dos Santos — o último está foragido da justiça, já que recebeu ordem de prisão em âmbito do inquérito das Fake News. O grupo coordenado por Luciana também já promoveu eventos com o Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e Bia Kicis (PL-DF).
Além de Luciana, ao menos outro fiscal voluntário esteve no ato em Orlando e tirou fotos com Jair Bolsonaro: Daniel Marins. Marins é pastor e compartilhou em seu Facebook posts que afirmam que as eleições brasileiras foram roubadas, o que é mentira. Ele atuou como fiscal no mesmo local que Luciana, mas em uma seção diferente.
No Instagram, Luciana Mazzaro também postou fotos em manifestação golpista promovida pelo Yes Brazil USA no dia 3 de novembro em Orlando. Ela segurava uma placa onde estava escrita a informação falsa de que houve fraudes nas últimas eleições.
Em 10 de fevereiro, o Yes Brazil USA promoveu uma reunião fechada com Jair Bolsonaro em parceria com o Patriotas na Bélgica, outro grupo coordenado por pessoas que foram fiscais do PL nas últimas eleições. O grupo Patriotas na Espanha, também organizado por um fiscal, também já se utilizou da ajuda do Yes Brazil USA para se comunicar com o ex-presidente no dia 11, durante o evento em Boca Raton.
O fundador do grupo belga é Wesley Lisboa, que foi fiscal no Consulado-Geral do Brasil em Bruxelas. A primeira postagem no Instagram do grupo se deu no dia 26 de novembro de 2022. Logo depois, o perfil, que tem apenas 279 seguidores, passou a postar fotos de bolsonaristas em manifestações na capital da Bélgica segurando cartazes com as afirmações mentirosas de que houve fraude nas eleições.
Em ao menos duas vezes, o perfil teve suas publicações identificadas pelo Instagram como falsas — uma delas propagou a narrativa mentirosa de que o ativista e líder comunitário Raull Santiago é ligado ao crime organizado.
Alguns fiscais brasileiros na Bélgica também postaram fotos nos atos, como Mônica Alves e Degiane Almeida, que também atuaram no Consulado-Geral do Brasil em Bruxelas.
Natã Backhaus Rodrigues também é um dos fiscais que organizou grupos bolsonaristas. Ele foi fiscal na Casa do Brasil, em Madri, capital do país. Backhaus é um dos representantes do grupo “Patriotas na Espanha”, que organiza manifestações e encontros de bolsonaristas pelo país, principalmente em Barcelona e Madri.
No dia 06 de novembro de 2022, Natã compartilhou em seu perfil no Facebook uma foto com a frase “Brazil Was Stolen”. O grupo publicou fotos em manifestações nos dias 20 e 23 de novembro e 19 de dezembro.
No Instagram, o perfil do grupo conta com mais de 14 mil seguidores, divulgando encontros e promovendo lives com convidados. Em um dos posts, uma das organizadoras aparece ao lado de Zambelli, que estava fazendo uma “missão especial” na Europa em dezembro. A deputada deu uma entrevista na TV Espanhola exaltando as manifestações pedindo intervenção federal após os resultados das eleições.
Como uma liderança do Patriotas na Espanha, Natã participa de lives com bolsonaristas que articulam movimentos em outros países da Europa. Em uma das lives ele aparece ao lado de uma organizadora da Liga Conservadora Brasil-Alemanha e do humorista Bismark, do Canal Hipócritas.
No evento organizado pela Yes Brazil USA na Flórida, Natã aparece em um vídeo agradecendo o ex-presidente por “despertar o povo conservador de direita”. Douglas Andrade, outro representante do Patriotas na Espanha, estava no evento e aparece abraçado com Bolsonaro em uma foto.
Já Marcelino de Lima Pereira, também do Patriotas na Espanha, foi fiscal em Barcelona. Em seu perfil no Facebook, postou fotos em protestos com cartazes pedindo intervenção militar e insinuando que houve fraude nas eleições. Além disso, chamou eleitores que votaram em Bolsonaro em supostas seções onde o ex-presidente não teria recebido votos para fazerem uma denúncia. O post pede para que as pessoas entrem em contato com o e-mail do jurídico de Carla Zambelli.
Além dos citados, fiscais que atuaram em países como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha também postaram fotos em atos golpistas.
A Pública entrou em contato pelo Facebook com todos os fiscais citados, mas eles não retornaram. O PL não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. Respostas enviadas após a publicação serão adicionadas ao texto.
source https://apublica.org/2023/02/fiscais-de-urna-indicados-pelo-pl-no-exterior-postaram-fake-news-e-apoiaram-atos-golpistas/
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