Por Rhuan Fellipe Cardoso da Silva*
Contam os historiadores, que nos últimos anos de Otto von Bismarck – chanceler durante a unificação alemã do século XIX – à frente do Império Prussiano, ele teria afirmado que “um dia a grande guerra europeia virá de alguma maldita idiotice dos Bálcãs”. E, em 1914, essa “idiotice” veio.
Numa primeira análise, é difícil compreender como o assassinato do arquiduque austríaco Franz Ferdinand, em Saravejo (Bósnia), tornou-se o catalisador para a Primeira Guerra Mundial, com todas suas consequências históricas. Contudo, não querendo aprofundar-nos sobre o confronto, o que a análise do político alemão ensina até hoje é que fatos isolados, regionais ou inicialmente irrelevantes, se inseridos em contextos previamente canalizados para serem resolvidos pela via militar, podem rapidamente se desenvolver em conflitos a nível mundial com reflexos devastadores.
A partir dessa primeira tese, indagamos ao leitor: existe algum contexto político social contemporâneo favorável ao rápido escalonamento numa guerra global? E mais: se sim, qual seria, pelas palavras de Bismarck, a próxima “idiotice”? Dê uma boa olhada no seu mapa mundi e concentre seus olhos no Sudeste Asiático que você achará a resposta. Explicamos.
Após a construção de uma série de ilhas artificiais de pequena dimensão, fortalecidas pela presença de estruturas de defesa e embarcação militar sem precedente, a República Popular da China foi condenada pela Corte Permanente de Arbitragem de Haia, em 2016, a renunciar a suas pretensões territoriais na região denominada “Mar da China Meridional”, reivindicação essa que afirmava (como ainda perigosamente afirma a título de idiotice) sob o argumento de que seria detentora de ilhas e, portanto, do mar territorial na região.
Essa ação, inicialmente movida pela República das Filipinas, ganhou relevância na comunidade internacional pelo ineditismo judicial e pelo estabelecimento de parâmetros mínimos de interpretação do conceito jurídico de ilha, o que era claramente distorcido e abusado ao extremo pelo governo de Beijing, capital chinesa. Isso porque a matéria das fronteiras marítimas, atinente à Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), jamais havia sido antes apreciada por um órgão jurisdicional. A razão? Como regra geral em Direito Internacional Público, dificilmente haverá um tribunal que se declarará competente para julgar reivindicações entre dois Estados soberanos (perdoem o pleonasmo). Ou, ainda, dificilmente todos os países envolvidos aceitarão participar de um hipotético julgamento, antecipando os riscos de um veredito desfavorável.
É a “tática de perdedor”, que na sentença arbitral PCA 2013-19 (Filipinas contra China) este último adotou. Ciente da agressividade de sua expansão militar na região, bem como do completo descompasso de suas reivindicações com os tratados internacionais, o governo chinês se recusou a participar do julgamento e ainda assim foi derrotado. De forma inédita, mais uma vez, o tribunal não se intimidou frente a Beijing, e por isso reconheceu a imperatividade da suposta soberania chinesa ser negada, pelo menos no plano jurídico, naquela região que é responsável pelo maior tráfego marítimo e comercial do planeta, e também por isso altamente visada pelo Estado comunista.
Pois bem, se a China inicialmente respeitasse as normas internacionais (ou sua interpretação razoável) e intencionasse a resolução pacífica dos conflitos, muito surpreenderia se seu governo se recusasse a aplicar a decisão arbitral. Contudo, como sua diplomacia desrespeita os princípios que visam a paz mundial, seu governo se recusa a cumprir a referida decisão. E pior, não só se recusa, como tomou a derrota como sinal para intensificar a militarização do Mar da China Meridional com o envio de cada vez mais navios, pessoal e aviões para suas ilhas artificiais, que continuam a se expandir.
Não por outra razão, o presidente do Partido Comunista Chinês (PCC), Xi Jinping, se recusa a condenar a invasão russa à Ucrânia, como também busca alinhar-se politicamente a Vladimir Putin na tentativa de contestar as instituições e normas que se opõem ao uso da força como instrumento de negociação. Na questão do Mar da China Meridional, é tal o isolacionismo de Beijing que Japão, Filipinas, Malásia, Taiwan, Vietnã, Indonésia, Tailândia, Laos e Brunei, todos geograficamente interessados na disputa das ilhotas, encontram-se unanimemente unidos contra as pretensões chinesas, a despeito das pretensões unilaterais desses países.
Para se contrapor às ilhas artificiais chinesas, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), em conjunto com os países da região, tem reforçado sua presença militar por meio de novos exercícios de simulação de guerra realizados anualmente, alegando a defesa da livre-navegação. Numa mudança histórica, também, a Marinha Imperial Japonesa se viu obrigada a anunciar a construção de novas embarcações para retomar o índice de tonelagem antes alcançado apenas ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando foi obrigada a abdicar de seu potencial militar expansionista.
Toda essa ansiedade política, por fim, traz o inevitável questionamento: qual será o resultado, então, quando (pois é só uma questão de tempo se Beijing mantiver sua conduta) toda hostilidade chinesa se chocar, por acidente ou não, com as forças navais estrangeiras, cada vez mais intensas na região? Daí o cenário ideal para uma nova guerra, daí a fonte para a próxima “idiotice histórica”, capaz de ocasionar um novo conflito sem dimensões. “Um dia a grande guerra asiática virá de alguma maldita idiotice do Mar da China Meridional”.
*advogado, pós-graduando em Direito Internacional e porta-voz do movimento Democracia Sem Fronteiras
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