Um queixa criminal apresentada na Alemanha por um grupo de direitos humanos, que representa 16 cidadãos de Mianmar, acusa de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade os líderes militares que governam o país asiático desde o golpe de Estado de fevereiro de 2021. As informações são da agência Associated Press (AP).
Ines Peterson, porta-voz do Ministério Público Federal da Alemanha, confirmou o recebimento da queixa feita pela ONG Fortify Rights. O órgão agora vai avaliar o caso para decidir se formaliza uma acusação à Justiça alemã, o que daria início a um longo processo judicial. Entre os autores da ação há membros de várias minorias étnicas, incluindo estudantes, acadêmicos, agricultores, ex-líderes comunitários e até donas de casa, todos vítimas da brutalidade do governo.
O grupo de direitos humanos usou o conceito da jurisdição universal para formalizar a queixa criminal, algo que já havia sido feito da mesma maneira na Argentina e na Turquia. No caso da Alemanha, pesa ainda mais o fato de que tribunais locais habitualmente julgam casos envolvendo criminosos de guerra, como membros do Estado islâmico (EI) que participaram do genocídio dos yazidis no Iraque.
Em situações de atrocidades em massa, quando a gravidade da ofensa representa um crime contra toda a comunidade internacional, o princípio da jurisdição universal permite ações legais independentemente da localização ou da nacionalidade das partes, segundo Matthew Smith, diretor executivo e cofundador da Fortify Rights.
“Uma investigação e posterior julgamento desses crimes sob a lei alemã serviria para punir aqueles que cometeram os crimes mais graves, prevenir futuros crimes cometidos por perpetradores em Mianmar e sinalizar para outros possíveis perpetradores em Mianmar e em outros lugares que a responsabilidade por crimes atrozes não pode ser evitado”, disse a ONG em um comunicado.
De acordo com a entidade, a queixa criminal apresenta “evidências substanciais mostrando que altos funcionários da junta militar que exerciam responsabilidade superior sobre subordinados que cometeram crimes, ou sabiam dos crimes de seus subordinados, falharam em tomar qualquer ação para impedir que os crimes acontecessem e para punir os perpetradores”.
Além da prisão dos autores da atrocidades, os autores pedem ao governo alemão que abra uma “investigação estrutural” para apurar os abusos cometidos pela junta em Mianmar, o que poderia levar à documentação de outros casos não abraçados pela queixa.
“Os militares de Mianmar têm violado direitos em todo o país, e as evidências que conseguimos coletar mostram que existe um padrão de abusos e violações perpetrados pela junta sistematicamente contra civis em grande escala”, disse disse Pavani Nagaraja Bhat, integrante da Fortify Rights.
Os rohingya
Entre as minorias representadas na ação, destaca-se a dos rohingya, um grupo étnico muçulmano minoritário de Mianmar. Embora vivam nos Estados de Rahkine e Chin, no oeste do país, não têm direito à cidadania e são perseguidos pelas autoridades locais, com relatos de assassinatos, estupros e outros abusos.
Investigações indicam que os militares birmaneses foram responsáveis por atrocidades que incluem mutilações, crucificações, queima e afogamento de crianças, numa ação deliberada de “limpeza étnica” hoje classificada globalmente como genocídio. Ativistas de direitos humanos pressionam há tempos por esforços internacionais para responsabilizar Mianmar por crimes contra a humanidade.
Diante desse cenário, cerca de 750 mil membros da minoria fugiram para Bangladesh desde 2017, sendo abrigados em precários campos para refugiados como o de Cox’s Bazar, o mais superlotado do mundo.
Outros 600 mil rohingyas continuam em Mianmar, vivendo sob as leis opressivas do governo militar que comanda o país. A perseguição é tão violenta que tornou-se habitual as pessoas lotarem embarcações rumo a Bangladesh, embora as condições que os esperam no destino sejam terríveis e o trajeto até lá seja extremamente perigoso.
Dois anos de ditadura
A ação surge quando o golpe de Estado de 1º de fevereiro de 2021 em Mianmar está prestes a completar dois anos. Desde então, o país enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar, uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020, já causou a morte de mais de 2,8 mil pessoas, segundo a ONG Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos (AAPP).
Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro, então, a junta militar, que já havia impedido o partido de assumir o poder antes, derrubou e prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, que posteriormente foi julgada e sentenciada a 33 anos de prisão.
País isolado
O golpe deu início a protestos no país, respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais. A AAPP afirma que mais de 17 mil pessoas já foram presas, invariavelmente sem indiciamento ou julgamento, e muitas famílias continuam à procura de parentes desaparecidos. Jornalistas e ativistas são atacados deliberadamente, e serviços de internet têm sido interrompidos.
A violência dos militares levou ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta a junta a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o estado de direito”.
A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2021 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.
Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.
O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.
A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, bem tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.
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