No dia 1o de dezembro de 2022, o estudante Luiz Miguel Matias Caje dos Santos, de 11 anos de idade, acordou cedo, foi até a cozinha e, antes mesmo de fazer a primeira refeição do dia, riscou a data do calendário que estava pendurado próximo a pia. Animado e ansioso para comemorar o Natal, o garoto não via o momento de chegar a hora mais esperada — meia-noite do dia 24. “Todas as manhãs meu filho vinha aqui [aponta para parede vazia] e riscava a data esperando logo chegar a noite de Natal. Pra ele não chegou”, lamenta a diarista Ana Clécia, 36 anos, mãe de Miguel e de seus dois irmãos.
O lamento de Clécia tem uma causa: a morte do filho no dia 24 de dezembro, às 23h, quando foi atingido por um disparo de arma de fogo enquanto passeava de motocicleta com o primo. O suspeito de ter efetuado o disparo é o policial Oziro Nonato de Oliveira, 48, conhecido na região como “Noca”. Oliveira atua no 32° Batalhão da Polícia Militar de São Paulo, responsável pela região de Suzano. O caso é investigado pela Polícia Civil em inquérito instaurado pelo Setor de Homicídios de Mogi das Cruzes e vem sendo acompanhado pela Corregedoria da Polícia Militar e pela Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo.
“Nesse dia só dava ele”, lembra a mãe
No dia em que Luiz Miguel foi atingido pelo disparo, Ana saiu de casa às 5h da manhã, percorreu cerca de 40 quilômetros até a região do Brás, no centro de São Paulo, para comprar o “tal look” que ele queria usar na véspera do Natal — um agasalho da marca Nike, todo preto. “Quando cheguei em casa, por volta de 12h, ele ficou superfeliz”, conta.
Naquela tarde, mãe e filho foram até o mercado comprar os produtos para fazer a ceia e ter um Natal em família. Quando voltaram, Clécia foi preparar os alimentos enquanto o garoto ia buscar a churrasqueira que o vizinho havia emprestado. O restante da tarde se divertiu com os primos e amigos na rua em frente de casa. “Ele estava brincando com todo mundo, correndo atrás do meu filho de seis anos e de outro menininho que tem aqui no quintal. Nesse dia só dava ele. Eu até estranhei”, lembra.
A disposição que Luiz Miguel apresentava naquele dia foi o motivo pelo qual a mãe estranhou o comportamento do filho. “Ele não era de ficar na rua. Só vivia aqui deitado, lá dentro [do quarto] ou na casa da tia dele — ele a amava —, mas sempre com joguinho no celular. Eu que tomava o celular dele. O negócio dele era mais casa. Eu que colocava ele pra brincar na rua, pra ele sair um pouco do joguinho.”
O jeito tranquilo do menino também é ressaltado pelo pai como uma característica peculiar do filho. Ele aponta para o irmão mais velho de Luiz Miguel, com 13 anos, e diz: “Olha para o meu mais velho. Dá pra ver que ele é sossegado. Imagina o irmão dele, que era mais novo. Miguel era muito mais”, desabafa o pedreiro Alessandro dos Santos, 36.
No dia em que o filho foi morto, Alessandro trabalhou até às 17h30 para garantir a alimentação da família nos dias seguintes. “Eu fui trabalhar para poder conseguir uma roupa para ele, pra ter uma ceia. Eu tive que trabalhar no Natal, ia trabalhar na semana do Ano Novo para não faltar nada a eles”, diz.
Sentado no sofá em que o filho costumava passar as tardes deitado jogando no celular, Alessandro começou a se lembrar das vezes em que levava Luiz Miguel para fazer companhia a ele no trabalho. “Ele sempre foi meio preguiçosinho. Quando ele estava de férias, eu levava ele para fazer companhia a mim. Colocava ele pra passar um rejunte, buscar uma ferramenta, ajudar na limpeza, pegar uma água, e a gente ficava ali conversando”, lembra.
“Nós só estávamos esperando dar meia-noite pra todo mundo se abraçar”
Além de Luiz Miguel, Alexandre dos Santos, 23, seu primo, estava muito empolgado com o Natal. Havia uma semana ele tinha comprado uma motocicleta usada, e aquele final de semana seria o momento ideal para ele curtir a sua conquista mais recente.
No dia 24, Alexandre saiu com o pai para comprar as roupas que usaria naquela noite. Retornou para casa por volta de 16h, lavou a motocicleta, a guardou no estreito quintal e foi se produzir para aguardar o momento da virada do dia.
Por volta das 19h, os familiares e vizinhos começaram a se reunir na frente da casa. Alexandre colocou a motocicleta na rua e começou a levar os primos para dar uma volta no entorno. Todos estavam empolgados com a aquisição do parente e alguns queriam compartilhar o momento, principalmente as crianças. Vizinhos, primos e primas, nas primeiras horas da noite, se revezavam entre brincar, conversar, interagir e dar uma volta na garupa da moto.
Entre uma volta e outra, o tempo passou e chegou a hora de todos se reunirem para comer. Era cerca de 21h30 quando a família de Luiz Miguel começou a ceia, a confraternização em família. “A janta da gente foi cedo. A gente não curte muito Natal e Ano Novo. Então, começamos a comer cedo. Nós só estávamos esperando dar meia-noite pra todo mundo se abraçar e cada um seguir a sua vida”, conta Ana Clécia.
Em cinco minutos, “o moleque se foi”
De barriga cheia e bem-dispostos, Luiz Miguel e os primos voltaram a brincar em frente ao portão. O garoto passou a tirar fotos com amigos e familiares, já vestido com o seu novo look, fazendo várias poses.
“Ele me chamou para tirar foto de Natal. Eu não curto muito, não fui, estava com uma sensação ruim, uma angústia, mas eu pensei que era cansaço, porque eu tinha saído às 5h. Cheguei a passar mal, achei que era por conta de algum problema de saúde, baixa imunidade, mas não, era o que ia acontecer a ele”, afirma a mãe.
Muito empolgado, Luiz Miguel brincava de estourar bombinhas com os primos e irmãos. Ana e parte da família estavam reunidas em frente ao portão quando o menino pediu que a mãe buscasse a sobremesa para ele. Assim que Ana entrou, Alexandre chegou com a moto, dizendo que iria estacionar o veículo e jantar — era por volta de 22h50. Foi quando Luiz Miguel reivindicou a vez de dar a sua volta na garupa do primo alegando que todos haviam andado, menos ele.
Com fome e cansado, o primo inicialmente se recusou a sair com o garoto, no entanto Luiz Miguel persistiu e subiu na garupa. Alexandre soltou o freio, engatou a marcha, desceu a rua, virou à direita, em seguida à esquerda, e entrou na rua Serra do Mar, quando três motos passaram por ele e continuaram juntos na mesma direção. Alguns metros à frente, na altura do número 304, os meninos viram dois homens entrarem na via, pararem os motoqueiros e começarem uma discussão.
Avaliando que daria para contornar o grupo que batia boca à sua frente e seguir o caminho, Alexandre conta ter se aproximado das pessoas que discutiam, quando dois desconhecidos vieram em sua direção. “Fui passar com minha [moto], veio um rapaz de vermelho, com um objeto na mão pra vir parar nóis, só que nóis desviou pra moto não pegar nele, porque ele entrou bem na frente. Nessa hora, ele tentou agredir nóis e nóis foi pra frente. Nisso, já veio outro correndo, que foi o policial, que veio correndo. Nóis andou só um pouquinho mais pra frente e foi na hora que nóis ouviu o disparo. Um pouco mais pra frente, o Miguel começou a falar que tinha levado um tiro, que tinha levado um tiro. O rapaz da outra moto falou que ele estava sangrando. Foi a hora que eu parei e coloquei ele no colo”, lembra.
Para Ana, tudo foi muito rápido e difícil de assimilar. “Ele pediu a sobremesa, eu entrei, peguei as colheres, comecei a organizar. Meu marido chegou e pediu um pedaço de carne. Só foi o tempo de dar a carne pra ele e escutei a moto derrapando. Aí o menino falou: ‘O menino que estava na moto com o Pipo [apelido do Alexandre] tomou um tiro’. Eu pensei, de certa forma aliviada: ‘Os meus estão aqui’. Aí Gabriel falou assim: ‘Mãe, foi o Miguel’. Eu falei: ‘Você tá louco? Olha, o seu irmão aqui’. E aí eu apontei para onde ele estava e ele não estava lá… o moleque se foi”, lamenta.
“Quando eu peguei meu filho, já peguei morto”
O pai de Luiz Miguel estava na sala de casa quando ouviu uma moto freando bruscamente em frente ao seu portão e, em seguida, um rapaz dizendo que “o menino que estava com o Pipo havia levado um tiro”, conta Alessandro.
Imediatamente, o pai começou a procurar o filho no lugar em que brincava havia poucos minutos e não o encontrou. Então subiu na moto e foi em direção ao local. Lá se deparou com o sobrinho segurando Luiz Miguel nos braços e pedindo por socorro. “Quando cheguei, ele não estava com sinal de vida. Ele estava morto, mas eu peguei, coloquei ele em cima da moto, levei até a casa de um sobrinho. Lá tinha um carro e levamos ele até o [Hospital] Santa Marcelina”, relata.
Alessandro conta que em menos de cinco minutos, após ter dado entrada no hospital, a médica deu a notícia de que Luiz Miguel tinha falecido. “Eu já sabia que ele não estava com vida. Mas fiquei na esperança que ele estivesse com algum sinal vital. Levei ele na fé de manter meu filho vivo, porque muitas pessoas passaram na rua e negaram qualquer tipo de socorro. Teve um que falou que não queria sujar o carro e não prestou socorro pro meu filho. Ele perdeu muito sangue, foi uma bala que atravessou das costas pro pescoço e pegou as artérias e foi fatal”, disse.
O laudo da perícia apontou que o tiro foi disparado a curta distância, que a bala entrou pelo lado esquerdo das costas, saiu na região do pescoço, causando hemorragia e a anemia aguda que causou a morte do menino.
Tanto Alessandro quanto Ana têm necessitado de medicamentos para dormir. Para a família está cada vez mais difícil continuar na mesma casa e suportar o que aconteceu. “Eu acho que eu aceitaria se fosse um acidente, um tipo de doença, uma dengue, uma covid-19. Ele só vivia aqui deitado ou na casa da tia que ele amava. Mas sempre com joguinho no celular. Eu que colocava ele pra brincar na rua, pra ele sair um pouco do joguinho. No dia que ele resolve dar essa volta, acontece isso e ainda querem incriminar ele como ladrão? Não tem nem cabimento. Eu e o pai cuidamos tanto, mas tanto, sempre com medo de algum bandido, roubo, essas coisas. E isso aconteceu com um policial”, lamenta Ana.
“Pistola teria falhado ao apertar o gatilho”, disse PM ao Copom
De acordo com o relato dos policiais que atenderam a ocorrência, logo após a morte de Luiz Miguel, eles receberam a informação, via COPOM (Centro de Operações da Polícia Militar) que o policial “Noca” estava fazendo contato com a central para comunicar que a sua esposa havia sido vítima de tentativa de roubo no mesmo local. Segundo o relato, durante a abordagem, diversos motoqueiros passaram a fazer barulhos, gritando “perdeu, perdeu, acelerando as motocicletas, provocando estalos dos escapamentos, e que este policial ‘Noca’ sacou a sua arma, mas não soube informar se chegou a efetuar disparo, pois a pistola teria falhado ao apertar o gatilho”, conforme consta no Boletim de Ocorrência.
No depoimento prestado na delegacia, Oliveira negou ter efetuado o disparo. Segundo o agente, naquela noite ele havia acabado de chegar à casa da filha quando viu a esposa, que estava a pé, ser cercada por grupo de uns dez motociclistas e foi até eles, “sacou da arma, uma pistola da Polícia Militar, calibre .40, mas os motociclistas saíram do local e não chegou a efetuar nenhum disparo com arma de fogo”.
Ainda de acordo com o PM, mesmo sem ter feito o disparo, ele saiu do local temendo represálias e fez contato com o Copom, via 190, comunicando o que havia ocorrido e, quando retornou, ficou sabendo que uma pessoa tinha sido baleada.
Outro lado
A Agência Pública questionou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) e a assessoria da Polícia Militar se o policial investigado foi afastado do cargo; sobre o resultado do exame residuográfico, que procura vestígio de metais, como chumbo e cobre, nas mãos; se foi encontrada alguma imagem de câmera de segurança no local e sobre o horário em que o agente entrou em contato com o 190 para comunicar que a esposa havia sofrido a tentativa de roubo.
A assessoria da PM não respondeu e a SSP enviou uma nota: “O caso é investigado por meio de inquérito policial instaurado pelo Setor de Homicídios de Mogi das Cruzes. Na ocasião, o policial militar foi encaminhado à delegacia, onde prestou depoimento e teve a sua arma apreendida. Foram solicitados exames junto ao Instituto de Criminalística (IC) e Instituto Médico Legal (IML). A autoridade policial aguarda pelo resultado dos laudos periciais para análises e esclarecimento dos fatos. A Corregedoria da PM acompanha o caso. Detalhes serão preservados para garantir a autonomia do trabalho policial”.
source https://apublica.org/2023/01/o-dia-que-miguel-ansiava-chegar/
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