Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site da revista The Diplomat
Por Philip Smucker*
No início de agosto, Sooma continuava seu trabalho como assistente na divisão de crimes do Departamento de Polícia da cidade de Herat, no Afeganistão. Ela ainda tinha poucos motivos para acreditar que a luta nos arredores da cidade chegaria à sua porta. Ela relatou que trabalhava todos os dias, e seus ganhos iam para o sustento de seus cinco filhos, que ela foi forçada a criar sozinha após a morte de seu marido, um policial, no conflito, três anos antes.
O mundo de Sooma foi revirado quando as defesas de Herat ruíram em 13 de agosto e o Taleban entrou na cidade, confiscando escritórios do governo e a delegacia de polícia. Um combatente começou a ameaçá-la, explicou ela em uma entrevista. “Ele ameaçou me estuprar e matar meus filhos se eu não me casasse com ele”, disse Sooma, com a voz trêmula. “Ele persistiu e eu não tive escolha. Ele me forçou a casar em setembro com o consentimento de um mulá”.
Desde aquele dia, Sooma, que pediu para ser identificada por um pseudônimo para proteger a identidade, diz que sua vida tem sido um pesadelo. “É como se ele estivesse me estuprando todas as noites”, disse. “Estou mal e quero me matar, e faria isso se não fosse meu dever criar e proteger meus filhos”.
Dificuldades intensas, incluindo violência, há muito tempo são uma realidade vivida pelas mulheres afegãs. Em 2018, cerca de 80% de todos os suicídios afegãos envolveram mulheres tirando suas próprias vidas, muitas vezes quando não viam saída para uma dura rotina doméstica. Os relatórios da ONU consistentemente apontam que cerca de 80% das mulheres afegãs relatam abusos domésticos nas mãos de homens.
Nos últimos anos, porém, Herat havia se tornado uma relativa exceção na dureza da rotina que é padrão na vida da maioria das mulheres afegãs.
A cidade, repleta de pomares de frutas e treliças de uva, há muito é conhecida pelos afegãos como o berço da cultura. Nas últimas duas décadas, evoluiu para um centro de expressão aberta com uma cena literária próspera, onde mulheres e homens solteiros podiam sentar-se juntos para tomar chá em espaços públicos e ser ouvidos lendo seus próprios poemas em voz alta uns para os outros.
Tudo isso mudou em 13 de agosto, quando o Taleban chegou à cidade. A maioria das mulheres e meninas recuou para suas casas, mas dezenas das mulheres mais corajosas da cidade ousaram protestar contra a proibição da educação de meninas e a imposição de restrições ao seu movimento. Mulheres marchando na rua disseram que queriam “poder continuar indo para o trabalho sem a necessidade de um mahram (um membro da família do sexo masculino como acompanhante); e fazer com que as meninas acima da sexta série voltassem à escola”, de acordo com um relatório detalhado da ONG Human Rights Watch, publicado em setembro e focado em Herat.
Essas vozes logo foram abafadas. Em 7 de setembro, os combatentes do Taleban espancaram os manifestantes com pedaços de borracha e dispararam armas indiscriminadamente, matando civis antes de proibirem os protestos definitivamente.
“Várias das mulheres solteiras com quem conversamos em Herat achavam que a única maneira de sobreviver à nova realidade seria se casar para poder se movimentar pela cidade”, disse Heather Barr, codiretora da Divisão de Direitos da Mulher da Human Rights Watch.
“Agora, o Taleban, ao impedir as mulheres de trabalhar, e as meninas da 7ª à 12ª de voltar à escola, estabelece as condições ideais para a violência contra a mulher”, disse Barr, que mora em Islamabad, no Paquistão.
Ela disse que a Human Rights Watch também está tentando monitorar o fenômeno do casamento forçado desde que o Taleban chegou ao poder, mas não foi capaz de reunir evidências suficientes até o momento para dizer se o grupo extremista está tolerando a prática entre suas lideranças.
O Taleban argumentou no passado que “arranjar casamento” para viúvas como Sooma é para o bem da sociedade e das crianças que vivem com mães solteiras.
A violência doméstica no Afeganistão é causada por décadas de guerras incessantes, pobreza e uma cultura patriarcal de longa data. Em um país cuja população total se aproxima dos 40 milhões, existem cerca de dois a três milhões de viúvas. Até recentemente, o antigo governo pagava a cerca de 100 mil viúvas afegãs o equivalente a US$ 100 por mês em uma bolsa governamental para sobreviver. Isso também terminou, no entanto, com a tomada do poder pelo Taleban. Em regiões conservadoras, uma mulher afegã viúva muitas vezes é dada em um casamento arranjado ao irmão ou a um parente próximo de seu marido falecido, um movimento visto pela cultura patriarcal como proteção da “honra” tanto da viúva quanto da família, mesmo que o irmão já seja casado.
O que é mais preocupante para as mulheres afegãs e para defensores internacionais dos direitos humanos, no entanto, é reunir evidências anedóticas de que o Taleban está permitindo que seus próprios combatentes usem ameaças de violência para interpretar termos tradicionais já severos de casamento para satisfazer seus próprios desejos pessoais.
Um porta-voz do Taleban, Zabiullah Mujahid, negou as acusações de que o Taleban estava ou está forçando mulheres a se casar, insistindo que tais ações violariam as regras do Islã. Em janeiro de 2021, o enigmático líder do Taleban e ex-juiz da Sharia Haibatullah Akhundzada emitiu uma declaração instando os comandantes do grupo a renunciarem a tomar várias esposas, um fenômeno generalizado entre a liderança abastada do grupo, cujas atividades o grupo financia. Embora a religião permita aos homens muçulmanos ter até quatro esposas, se puderem tratá-las igualmente, o comunicado afirma que a prática está atraindo “críticas de nossos inimigos“.
No entanto, os pronunciamentos e negações do Taleban apresentam um caso claro de ordens para “fazer o que dizemos, não o que fazemos”. Quase todos os líderes seniores do Taleban já têm várias esposas. Na verdade, o fundador do movimento, Mullah Mohammad Omar, e seu sucessor, Mullah Mansoor, tinham três esposas. Em comparação, acredita-se que Haibatullah tenha apenas duas; no entanto, o novo vice-chefe de Estado do Taleban, Mullah Abdul Baradar, tem três esposas e casou-se com a última enquanto estava sob prisão domiciliar no Paquistão.
Ativistas dos direitos das mulheres afegãs dizem que as novas negações de abuso do Taleban são um encobrimento do que está acontecendo fora de vista. “O Taleban mudou, mas não no bom sentido”, disse Atefa Kakar, ex-funcionária da ONU que agora mora na Alemanha, cursando mestrado e defendendo as mulheres afegãs. “O Taleban ainda tem uma ideologia extremista e altamente misógina, embora esteja tentando enganar o mundo com negativas. As mulheres afegãs não acreditam no Taleban, mesmo quando enfrentam uma realidade de crescente impotência. ”
“No que diz respeito à comunidade internacional e ao que eles podem fazer para ajudar”, continuou ela, “sentimos que já fomos abandonadas. Pessoalmente, não vejo a comunidade internacional – incluindo as Nações Unidas – sendo capaz de persuadir o Taleban a mudar seus caminhos ou instituir uma política humana tanto no casamento quanto na educação ”.
Mesmo depois que o Taleban tomou grandes cidades afegãs como Herat, a chefe dos direitos humanos da ONU, Michelle Bachelet, insistiu que os direitos das mulheres e meninas afegãs seriam uma prioridade da ONU. Especificamente, Bachelet disse, “uma linha vermelha fundamental será o tratamento dado pelo Taleban às mulheres e meninas e o respeito por seus direitos à liberdade, liberdade de movimento, educação, autoexpressão e emprego, guiado pelas normas internacionais de direitos humanos. Em particular, garantir o acesso à educação secundária de qualidade para meninas será um indicador essencial de compromisso com os direitos humanos. ”Sua insistência em uma “linha vermelha” foi semelhante a declarações feitas pelo Departamento de Estado dos EUA antes da tomada de poder pelo Taleban.
Mas, mesmo que a ONU e o Conselho de Segurança tenham insistido que o Taleban deve abrir mão de suas metas atuais de educação e tratamento das mulheres, a liderança do grupo não disse se permitirá que meninas acima da sexta série voltem à escola, observou Barr.
Além disso, as mulheres afegãs estão deixando claro o que pensam sobre as promessas do Taleban. Mulheres afegãs que trabalham com a ONU no Afeganistão, muitas das quais ajudaram a monitorar os direitos humanos e assuntos políticos, estão tentando deixar o país e, em alguns casos, já o fizeram.
“Ouvi de minhas próprias ex-colegas que ainda trabalham na ONU – mulheres que nunca pensariam em deixar o Afeganistão porque têm um bom emprego e um bom salário – que estão tentando fugir do país agora com medo de que suas filhas adolescentes sejam forçada a se casar com um combatente do Taleban”, disse Kakar, que já trabalhou tanto para a missão política, UNAMA, quanto para o grupo ONU Mulheres. “Acho que querer desesperadamente deixar um excelente trabalho por um país desconhecido diz a você tudo o que você precisa saber sobre o estado de medo que assola o Afeganistão no momento devido à ascensão do Taleban.”
Os medos da família estão impulsionando a migração através das fronteiras regionais. Desde a tomada de poder pelo Taleban, membros da minoria afegã Hazara, que abraça o islamismo xiita e é desprezada pela liderança talibã, fugiram aos milhares para o Paquistão e para o Irã, embora cruzar a fronteira protegida seja extremamente perigoso. Um homem que fugiu do Afeganistão com duas irmãs disse à Deutsche Welle que havia partido porque não queria que suas irmãs se casassem com combatentes.
Perto da fronteira com o Paquistão, mas dentro do Afeganistão, Shabnam, uma estudante do ensino médio que pediu para ter apenas seu primeiro nome nesta história, disse que também foi forçada a um casamento indesejado. Um leal do Taleban na província de Parwan a atormentou, disse ela, insistindo que se seu grupo chegasse ao poder, ela teria que entregar sua virgindade a eles.
Quando o Taleban conquistou o distrito onde ela mora, “o mesmo garoto que me provocou acabou de me reivindicar como sua esposa e recebeu permissão” dos líderes locais do Taleban para fazê-lo.
*trabalhou como repórter, consultor sênior de relações públicas e professor de jornalismo no Afeganistão
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