Este conteúdo foi publicado originalmente no Opeu (Observatório Político dos Estados Unidos)
por Solange Reis, doutora em Ciência Política pela Unicamp e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu)
A convite do presidente Joe Biden, o Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad) realizou sua primeira conferência com a presença de chefes de Estado para discutir “O Espírito do Quad“. O grupo já fez várias reuniões de nível ministerial, mas nunca entre os presidentes e primeiros-ministros dos países integrantes. Desta vez, além de Biden, integraram o encontro os primeiros-ministros de Austrália, Índia e Japão, respectivamente, Scott Morrison, Narendra Modi e Yoshihide Suga.
Ao ser turbinado com a presença das mais altas lideranças nacionais, o encontro do último dia 12 de março indica que a região Indo-Pacífico terá prioridade no atual governo americano. Outra perspectiva é a de que o informal Quad venha a ser institucionalizado no futuro próximo. Seguiria o caminho do Diálogo Estratégico Trilateral (TSD, na sigla em inglês), que reúne Estados Unidos, Austrália e Japão. Estabelecido informalmente no início dos anos 2000, o TSD é hoje uma instituição com diferentes níveis ministeriais.
Além do ineditismo de juntar o topo do escalão político, a última reunião do Quad merece destaque por ser um dos primeiros eventos multilaterais do governo Biden. Entre outros temas, sua pauta incluiu questões de segurança regional, comércio, mudança climática e diplomacia de vacina.
A amplitude temática mostra que o novo governo americano entendeu que as necessidades regionais vão muito além de demonstrar oposição militar à China. Além disso, o “upgrade” no Quad confirma o que a equipe do democrata vem se esforçando para ressaltar: sem as alianças, os Estados Unidos não continuarão a ser a maior potência global. Esse é um grande ponto de diferença com o governo de Donald Trump.
Diplomacia de vacinas
O Quad surgiu como esforço de ajuda humanitária, em 2004, após o maior tsunami registrado na história mundial devastar o litoral de alguns países no Oceano Índico. Em 2007, foi transformado em fórum para discussão de temas estratégicos regionais. Coincidentemente, ou nem tanto assim, sua evolução acompanhou a projeção da China como potência econômica e militar.
À medida que a China cresceu, aumentaram os problemas geopolíticos na região e os desafios para o domínio continuado dos Estados Unidos no Pacífico. Vender uma imagem de si como garantidor final de segurança não já não bastava para manter as alianças necessárias para contestar a ascendência chinesa. Embora alguns países tenham atritos concretos com a China, ou temam vir a tê-los no futuro, suas relações com Pequim trazem benefícios em outros aspectos, como os econômicos, financeiros e culturais.
Esses novos desafios, e seus dilemas intrínsecos, explicam a abrangência da declaração conjunta do último encontro do Quad. “Hoje, nos comprometemos a responder aos impactos econômicos e sanitários da Covid-19, combater a mudança climática e enfrentar desafios comuns, inclusive no espaço cibernético, tecnologias críticas, contraterrorismo, investimento em infraestrutura de qualidade, assistência humanitária e alívio de desastres, bem como em domínios marítimos”.
A proposta imediata e mais concreta do grupo é desenvolver agora uma estratégia de vacinação em países pobres da região. Para além da motivação humanitária, o objetivo é reduzir a influência da China nesse aspecto. Pequim prometeu doar 500 milhões de doses para mais de 45 países, e parte disso já foi entregue para Indonésia, Filipinas e Malásia. O plano do Quad é distribuir cerca de 1 bilhão de vacinas para países no Sudeste Asiático até 2022. Para isso, Japão e Estados Unidos financiarão a produção de vacinas Johnson & Johnson na Índia, enquanto a Austrália ficará responsável pela logística regional. Segundo a agência Reuters, vacinas da Novavax, outra empresa americana, também serão produzidas na Índia.
Mini-OTAN
Para além da diplomacia de vacinas, existe a preocupação com o chamado “poder duro” chinês. Desde que surgiu, em 2004, o Quad evoluiu para ser uma organização informal de cooperação militar. A partir de 2017, seus membros passaram a realizar exercícios militares, individual ou conjuntamente, na região dos oceanos Índico e Pacífico. No ano passado, fizeram os primeiros desses treinamentos com a presença dos quatro integrantes. Sem dúvida, um show de força para intimidar Pequim.
Oficialmente, o Quad não identifica tal rivalidade e segue com a retórica de que seu objetivo é meramente defender a livre navegação nos mares. Para os chineses, a história é outra, e o alvo do grupo, bem definido. O quarteto teria como objetivo neutralizar a China geopoliticamente e impedir que o país exerça sua soberania. De fato, o Quad tem focalizado, sobretudo, o Mar do Sul da China, onde acontecem as principais disputas territoriais entre os governos chinês e de outros países.
Não é incomum encontrar analistas que chamem o Quad de Otan da Ásia, Nova Otan, ou Mini-Otan. Os apelidos ainda são um exagero, mas a ideia de formar uma aliança do Pacífico já foi aventada no próprio Quad. Em 2017, o então ministro das Relações Exteriores do Japão, Taro Kono, propôs fazer do grupo uma aliança formal. Algo parecido pensou Mike Pompeo, último secretário de Estado no governo Trump e um declarado opositor da China.
Entre o sonho e a realidade, há obstáculos. Diferentemente da Europa Ocidental, que tinha baixo contato comercial e financeiro com a União Soviética quando da criação da Otan, muitos países asiáticos hoje mantêm estreitas relações econômico-financeiras com a China. Um exemplo é a Coreia do Sul, que recusou o convite de Trump para transformar o quarteto em quinteto.
Falcão Biden
O primeiro encontro executivo do Quad foi a segunda quebra de padrão por parte de Biden em termos de participação. Recentemente, o democrata também foi o primeiro presidente americano a tomar parte da Conferência de Segurança de Munique (MSC), um evento realizado desde a década de 1960, anualmente, para tratar de assuntos da OTAN e de segurança internacional.
Sua decisão de convocar o Quad traz vários simbolismos. O primeiro reforça que, independentemente do partido que ocupar a Casa Branca, a China será vista como o maior desafio estratégico dos Estados Unidos na atualidade. No dia 3 de março, o secretário de Estado Anthony Blinken discursou na Casa Branca sobre política externa, conferindo um destaque negativo à China. “Vários países apresentam sérios desafios para nós, incluindo Rússia, Irã, Coreia do Norte. E existem crises graves com as quais temos que lidar, inclusive no Iêmen, Etiópia e Mianmar. Mas o desafio que a China nos apresenta é diferente. A China é o único país com o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para desafiar seriamente o sistema internacional estável e aberto”, disse Blinken.
A mensagem foi direcionada aos estrangeiros, mas também ao público doméstico. De acordo com uma pesquisa do Pew Research Institute, nove em cada dez americanos consideram a China como rival, ou inimiga, e não como parceira. Há outra razão para jogar duro agora. A mesma pesquisa indica que apenas 53% da população consideram Biden capaz de tratar a China com a coragem apropriada. Esse percentual cai drasticamente, para 19%, entre os eleitores do Partido Republicano. Nem que seja apenas na retórica, quando se trata de China, Biden terá que ser mais falcão do que pomba.
Europa no banco
Embora o presidente tenha participado da MSC juntamente com altas lideranças europeias, como Angela Merkel, Emmanuel Macron e Boris Johnson, a abrangência daquele encontro contrasta com o recorte fino do Quad. A MSC é um evento organizado em torno das relações transatlânticas e, de tão relevante, passou a incluir outros países, como China e Rússia, bem como representante de sociedade civis. ONGs, empresas e até empresários, como Bill Gates, são frequentadores tradicionais.
A reunião do Quad também teve uma temática variada desta vez, mas seu escopo limitado a poucos membros deve ser lido nas entrelinhas. Ao convocar uma discussão en petit comité com suas contrapartes nesse grupo, e não com os aliados transatlânticos, Biden confere relevância ao quarteto e deixa evidente que sua prioridade é a região do Indo-Pacífico, e não a Europa. Nas palavras da secretária de Imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, o fato de Biden ter feito desse evento um de seus primeiros multilaterais mostra a importância da cooperação com os aliados na região.
Para os europeus, o evento do Quad também teve muita relevância, mas por razões opostas. Depois de anos fustigados pelos ataques verbais de Trump, os países europeus deram boas-vindas a Biden. A percepção é, no entanto, a de que a conjuntura internacional atual requer não confiar mais incondicionalmente nos Estados Unidos como garantidor de segurança. Pois mesmo um presidente multilateralista na Casa Branca não pode ignorar as pressões internas para mudança de foco estratégico.
Além disso, dada a elevada votação recebida por Trump, os europeus sabem que o sentimento nacionalista que o elegeu em 2016 não desapareceu com a recente derrota. Tudo isso faz com que a União Europeia pense mais seriamente do que nunca sobre autonomia estratégica, um plano que a promoção do Quad vem apenas reforçar.
Pivô asiático
A China como foco estratégico não é nenhuma novidade e tampouco deverá mudar muito em relação ao que fizeram os sucessores de Biden. Há anos, o Pentágono emite relatórios anuais sobre o que considera ser o risco chinês. Foi na presidência de Barack Obama, ao lado de quem Biden atuou como vice-presidente, que o governo americano lançou a estratégia conhecida como “pivô para Ásia”.
Essa também é uma preocupação dos aliados incondicionais dos Estados Unidos, como é o caso da Austrália e do Japão, embora menos da Índia. O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, enalteceu a intenção de Biden de levar o Quad para um nível mais elevado. “O Indo-Pacífico é nosso. É onde os australianos vivem”, disse Morrison.
A Austrália se contorce em um dilema de difícil solução. Como manter a aliança estratégica com os Estados Unidos para protegê-la de uma eventual agressividade chinesa – assim como no passado foi contra o Japão –, quando a economia australiana depende vitalmente da China? Em menor medida, é uma questão que também está colocada para a Índia. Ambos os países se equilibram entre o apoio estratégico à potência situacionista e os interesses econômicos que surgem com a potência contestadora da ordem mundial. Nos últimos meses, a balança pendeu favoravelmente para os Estados Unidos. China e Índia acirraram os atritos geopolíticos entre si, e a Austrália priorizou paranoias de segurança nacional em detrimento da economia.
Biden viu aí a oportunidade para catapultar o Quad e reforçar o pivô asiático. Ponto para o democrata, que agora deveria fazer sua própria lição de casa. De acordo com a declaração conjunta do quarteto, um objetivo é “priorizar o papel do direito internacional no domínio marítimo, particularmente conforme refletido na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS)”. O detalhe é que os Estados Unidos não são signatários do tratado UNCLOS, que encontra forte resistência no Partido Republicano e entre muitos militares. Com a frágil maioria do Senado nas mãos do desempate pela vice-presidenta, Kamala Harris, Biden tampouco tem grandes chances de superar tamanha contradição. Afinal, não há garantias de que todos os senadores democratas ratificariam o tratado.
Basta ligar os pontos, portanto, para saber os contornos do que será sua política externa. Como diria uma expressão comum no Sudeste Asiático, “Same, same! But different!” (Igual, igual. Mas diferente!).
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