Este conteúdo foi publicado originalmente pelo think tank Jamestown Foundation
por Pavel K. Baev, cientista político e professor do Prio (Instituto de Pesquisa de Paz Oslo), na Noruega
A escalada na repressão contra manifestações de descontentamento na Rússia inevitavelmente resulta em uma maior influência dos serviços especiais e da polícia, com frequência descritos como os siloviki (literalmente, os portadores do poder). Esse simples fato foi mais evidenciado quando o Kremlin julgou necessário discordar de um artigo recente no “Financial Times” que elabora a transformação do regime de Vladimir Putin em um Estado policial.
Dmitry Peskov, o veterano porta-voz do presidente Putin, achou oportuno lamentar o suposto declínio da competência profissional na “mídia anglo-saxã” horas depois da publicação do artigo, inevitavelmente lançando significativamente maior atenção russa ao artigo.
O tópico levantado pelo “FT” certamente não é novo, e o papel -chave de personalidades como Alexander Bortnikov, diretor do FSB (Serviços de Segurança Federal), ou Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança, em destravar repressão doméstica já é examinado regularmente em comentários russos. Mas o Kremlin em geral nunca comenta sobre os trabalhos extremamente secretos da administração presidencial ou em relações dentro do restrito círculo mais próximo de sócios ou da corte mais ampla de auxiliares e subordinados.
Por isso, a autoreveladora desaprovação da última sexta pode parecer se encaixar no bem estabelecido padrão de negação do Kremlin. De fato, apenas alguns dias antes, Peskov já havia negado que serviços especiais russos estavam conduzindo uma campanha para descreditar vacinas ocidentrais contra o novo coronavírus. Moscou mantém essa negação mesmo ante crimes russos estabelecidos e irrefutáveis, como a destruição do voo de passageiros MH17 sobre a zona de guerra de Donbas [na Ucrânia], em 17 de julho de 2014, ou sua interferência nas eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos.
Na maioria dos casos, porém, as manifestações de repúdio de Moscou tentam distanciar a Rússia de operações malfadadas por parte de seus serviços especiais, como o envenenamento em 2018 de Sergei Skripal e sua filha Yulia no Reino Unido, ou o mais recente, em agosto de 2020, envenenamento de Alexei Navalny – ambos aparentemente pelo agente nervoso mortal novichok. Não se pode estabelecer como fato que Putin ordenou essas operações, mas, ao avalizar essas declarações, ele efetivamente responsabiliza-se pelas tentativas de assassinato.
A rejeição, por parte do escritório presidencial russo, do principal argumento do texto do FT é diferente porque não se refere a uma operação específica ou a um fato em particular, mas a uma hipótese analítica baseada em em conversas com fontes não nomeadas no Kremlin. É essa revelação de discórdia dentro dos membros da corte que aparentemente irritou Putin, que notadamente lê apenas resumos do noticiário que auxiliares deixam em sua mesa. A rapidez desse desnecessário desmentido, portanto, mostra que a intensidade das disputas por influência e acesso dentro das elites do Kremlin já vai além das pelejas habituais.
Muitos burocratas da vasta administração presidencial têm boa razão para se ressentir das intrigas autoindulgentes dos altos siloviki. Um caso recente foi seu esforço para explorar a ignorância de Putin sobre o funcionamento da internet para expandir a censura estatal sobre as redes sociais e fechar mídias eletrônicas “subversivas“.
Contudo, a atual inabilidade dos serviços especiais russos de estabelecer um eficaz bloqueio, à moda da China, do alcance ocidental ao espaço de informação russo e checar a proliferação de conteúdo independente diz muito. A capacidade russa de executar cyber ataques pode ser impressionante, mas, em assuntos domésticos, asserções feitas em alto volume são frequentemente seguidas por erros desconcertantes. A título de ilustração, a tentativa de “disciplinar” o Twitter diminuindo sua circulação entre usuários russos no início da março resultou em crashes de diversas propriedades oficiais da internet, que incluem o site do Kremlin.
Tamanha inépcia pode irritar alguns dos auxiliares de Putin que têm conhecimento da imprensa, mas muitos deles têm uma preocupação maior: sanções. A adição mais recente ao pacote em expansão das sanções dos EUA e da União Europeia miram não apenas os chefes dos serviços especiais mas burocratas-chave como Sergei Kiriyenko, o vice-chefe da administração presidencial. Um maior endurecimento e ajustamento do regime de sanções ocidental é muito esperado, uma vez que continuam as investigações de novos crimes “híbridos” pela Rússia, incluindo cyberataques, o que deve aumentar a lista de “civis” punidos.
O Kremlin faz o que pode para demonstrar que as sanções não funcionam, e tenta amplificar cada sinal de discordância interna no Ocidente sobre o impacto das sanções planejadas sobre diálogos futuros (por mais estremecidos que estejam) com a Rússia. Mesmo assim, os beneficiários do regime de Putin não encontram muitas garantias de que assim seja.
A principal defesa é garantir que as sanções atinjam a classe média russa e não apenas os super ricos, mas, para esses últimos, outra parte do problema é que os siloviki têm aumentado seu controle sobre os principais fluxos financeiros do país. Putin ainda confia em profissionais como Elvira Nabiullina, a chefe do Banco Central. Mas os principais agentes do regime tendem a tratar esses economistas como “especialistas da burguesia” – os atuais sucessores dos funcionários que dirigiram a chamada Nova Política Econômica, de vida curta, há cem anos.
Enquanto isso, a expansão da repressão traz mudanças na cúpula da FSB como a promoção de Sergei Korolev, até então o chefe da diretoria de segurança econômica, para ser o principal vice-diretor do serviço de segurança interna russo. Korolev tem vasta experiência na lida com grupos criminosos, o que o auxiliou em sua abordagem para implementar diretrizes econômicas.
Putin também entende as técnicas do crime organizado e da lavagem de dinheiro muito mais do que a complexidade da política macroeconômica ou as tendências do mercado de energia global em direção aos recursos renováveis, o que limita o uso da Gazprom [estatal russa do setor de petróleo e gás] como ferramenta política.
Os serviços especiais executam suas agressivas ações da forma como melhor lhes aprouver, por exemplo invadindo um fórum de ativistas municipais em Moscou, como fizeram no último dia 13 de março. E o papel de Putin em tudo isso é necessariamente reduzido a garantir a “legitimidade” dessa repressão. Ele pode ficar irritado com essa irrelevância de facto, mas a metástase da má governança que ele pôs em prática há um ano ao revisar a Constituição e retirar os limites para seu reinado não podem ser postas em xeque por meio da negação.
Tradução por Anna Rangel
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