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quinta-feira, 15 de abril de 2021

As acusações não reveladas de crimes sexuais de Samuel Klein, fundador da Casas Bahia

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A Pública conta agora a história oculta do fundador da Casas Bahia, Samuel Klein — falecido em 2014. Conhecido como “o rei do varejo”, Klein teria usado seu poder como empresário bem-sucedido para manter durante décadas um esquema de aliciamento de crianças e adolescentes para a prática de exploração sexual dentro da icônica sede da empresa, em São Caetano do Sul, além de outros locais em Santos, São Vicente, Guarujá e Angra dos Reis. Mas a história desses crimes não envolve apenas o patriarca da família Klein. Seu filho Saul Klein é hoje investigado por aliciamento e estupro de mais de 30 mulheres. Segundo o relato de fontes e dezenas de mulheres entrevistadas, há semelhanças na forma de agir de pai e filho. Os detalhes você lê a seguir.

Uma biografia oculta

Uma história de violência sexual na infância marcou para sempre a trajetória de Karina Lopes Carvalhal, hoje com 40 anos. Conforme relatou à reportagem, aos 9 anos, ela soube pelas irmãs que um grande empresário de sua cidade natal, São Caetano do Sul (SP), dava dinheiro e presentes a menores de idade que fossem à sede da empresa na av. Conde Francisco Matarazzo, número 100. À época com 12 anos, a irmã mais velha de Karina avisou que ela poderia conseguir um tênis novo se fosse até lá. Animada, ela topou. “Eu não tinha um tênis pra pôr, usava o das minhas irmãs, meus dedos eram todos tortos.” 

Karina subiu até o andar da presidência e lembra que esperou algum tempo até ser chamada ao escritório particular do dono. Quando ele surgiu, ela ficou surpresa ao ver um senhor de idade já na casa dos 70 anos, que pediu que ela se aproximasse. “Minha irmã tinha me dito: ‘Ká, não se assuste porque ele vai te dar um beijinho’. Mas ele me cumprimentou e já passou a mão nos meus peitos. Ele dizia: ‘Ah, que moça bonita. Muito linda’”, ela relembra, imitando o sotaque polonês do empresário Samuel Klein, fundador da Casas Bahia. Ao sair dali, ela conta que sentiu alívio, levando consigo uma quantia em dinheiro e um tênis da marca Bical. Era 1989.

“A gente ficava contente que tinha ganhado um tênis. Não tínhamos noção dessa situação de violência”, avalia Karina ao falar com exclusividade à Pública sobre a história de sofrimento pessoal que guardou durante tanto tempo. Ela diz que a possibilidade de conseguir outros bens materiais a fez voltar nas semanas seguintes ao encontro de Samuel.

Mas nas novas visitas, de acordo com Karina, as situações de exploração sexual ganharam escala e viraram rotina. “A segunda vez, ele já me levou pro quartinho.” Ela conta que o empresário mantinha um quarto anexo ao seu escritório, onde havia uma cama hospitalar. Era ali que ocorriam os abusos. Ainda segundo Karina, foi ali que ela foi violentada sexualmente pela primeira vez aos 9 anos.

Não demorou para que Karina largasse os estudos na Escola Professora Eda Mantoanelli, em São Caetano do Sul. “Como meu pai me batia muito, eu ia matar aula e tinha que ficar em algum lugar.” E, na rua, Karina virou dependente química de crack e fez uso da substância por uma década, até engravidar da primeira filha, aos 19 anos. 

Karina não sabe precisar, mas estima que a relação de dependência emocional e financeira por meio da exploração sexual exercida por Samuel foi de 1989 até meados dos anos 2000. “Eu vejo agora que eu não tive estudo, não tive infância, não tive meios, não tive ninguém pra cuidar de mim. Se uma pessoa tira a sua infância, seus estudos, a sua casa, você fica sem chão.” 

Karina não teria sido a única a ser aliciada e explorada sexualmente por Klein. A Pública ouviu mais de 35 fontes, entre mulheres que o acusam de crimes sexuais, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família, consultou processos judiciais e inquéritos policiais, teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos dentro da própria sede da Casas Bahia, a icônica loja no centro de São Caetano do Sul, e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e no município de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. O empresário teria organizado um esquema de recrutamento e transporte de meninas, com uso de seus helicópteros particulares, que teria contado até mesmo com a participação de seus funcionários, para festas e orgias acobertadas com pagamentos às meninas e familiares com dinheiro e produtos das lojas espalhadas pelo país. 

Foi a partir das denúncias mais recentes envolvendo o filho do patriarca da família Klein, o empresário Saul Klein, investigado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) por aliciamento e estupro de dezenas de mulheres, que a reportagem foi atrás do passado de Samuel e encontrou indícios semelhantes às práticas descritas pelo MP na investigação sobre seu filho, na qual algumas mulheres também alegam terem sido violentadas quando menores, história que contaremos adiante.

Segundo os relatos, Samuel Klein abafou os crimes firmando acordos judiciais, hoje arquivados sob sigilo nos escaninhos do Judiciário, com as denunciantes que buscaram indenizações depois de adultas. O fundador da Casas Bahia ainda teria se beneficiado da morosidade de ao menos três inquéritos criminais abertos para apurar crimes dessa natureza, nos quais se esquivou das citações judiciais, sem que fossem tomadas medidas mais enfáticas pela Polícia Civil ou pelo MP-SP, até levá-los à prescrição. Tais manobras teriam contribuído para que ele mantivesse a imagem de herói do mundo dos negócios. Até agora. 

No rastro das denúncias 

Quando morreu, em novembro de 2014, Klein deixou uma imagem quase heroica entre o empresariado e boa parte da sociedade brasileira. Sua história de vida ressoa o mito do self-made man, tão incensado no mundo corporativo. Nascido na Polônia em 1923, ele viveu a ocupação nazista em sua terra natal, foi levado ao campo de concentração de Majdanek aos 19 anos e teve a mãe e cinco irmãos assassinados no campo de Treblinka. Samuel conseguiu fugir do campo de concentração e, nos anos 1950, emigrou para o Brasil, onde começou a vender produtos de porta em porta empurrando uma charrete em São Caetano do Sul. Lá, ele fundou a primeira loja da empresa, que nas décadas seguintes se tornaria uma das maiores redes varejistas do país. Hoje, a rede é parte do conglomerado Via Varejo, grupo que tem faturamento médio anual de R$ 30 bilhões. Samuel virou nome de rua na cidade onde se estabeleceu e até hoje é visto como um dos maiores figurões do mundo dos negócios da história do Brasil. 

No rastro das denúncias, a Pública consultou sete processos cíveis e criminais em que mulheres denunciam Samuel por abusos sexuais. A reportagem teve acesso também a quatro processos de outras mulheres que afirmam ser vítimas e pedem indenização por danos morais. Além dos 11 processos consultados, a apuração revelou mais oito processos, arquivados em sigilo, com alegações de abusos sexuais contra o empresário. 

Em geral, são processos movidos por mulheres após terem atingido a maioridade. Segundo seus relatos, ao entenderem o que viveram, essas mulheres buscaram indenizações na Justiça porque não havia mais a possibilidade de Samuel responder criminalmente devido à prescrição criminal. A maioria dos casos encontrados são ações movidas por danos morais e materiais de mulheres que relatam cenas terríveis que teriam ocorrido em diferentes momentos da infância e adolescência. 

É o caso de Renata*, que no seu processo contra o empresário afirma ter sido estuprada quando tinha 16 anos. Do Rio Grande do Sul, Renata morava desde os 14 anos em São Paulo com uma modelo, que chamaremos de Daniela*. A colega de quarto era maior de idade, frequentava as residências de Samuel e teria recebido vários presentes dele, incluindo um apartamento. 

Renata contou à polícia que em outubro de 2008 foi à casa de praia do empresário em Angra dos Reis. Ela teria viajado com Samuel e seu piloto particular no helicóptero do empresário. À noite, foi chamada para uma conversa no chalé que o fundador da Casas Bahia ocupava. Do lado de fora havia aproximadamente 12 seguranças. Dentro, um enfermeiro teria acabado de aplicar uma injeção de Viagra no empresário, que na época tinha 85 anos. 

No depoimento, Renata disse que Samuel fez várias promessas de ajuda financeira, incluindo estudos em uma boa escola, apartamento e carro, em troca de sexo. Ela teria resistido. “Ele me pegou à força, rasgou minha roupa e me violentou. Não adiantava gritar. Eu chorei e fiquei sangrando direto na quarta e quinta-feira”, diz um trecho do depoimento. 

Renata contou à polícia que o mesmo enfermeiro que aplicou o estimulante sexual no empresário prestou assistência por causa do sangramento, mas ela foi mantida presa em Angra, impedida de ir ao médico e de voltar a São Paulo. Mesmo sangrando, ela teria sido novamente estuprada, dois dias depois da primeira vez. Na época, Samuel Klein reconheceu, em depoimento à Polícia Civil de São Paulo, que Renata e Daniela estiveram na casa dele em Angra dos Reis, mas disse que as moças que frequentavam sua residência de praia “jamais fossem menores de idade”.

A Pública buscou, ao longo dos últimos meses, contato com 26 mulheres que moveram processos judiciais, além de outras que não o processaram. Dez mulheres concederam entrevistas, a grande maioria sem revelar a identidade por medo de retaliação. Três entrevistadas, porém, concordaram em ter seu nome divulgados. Karina, do início da reportagem, foi uma delas. Também sua irmã, Vanessa Carvalhal, relatou como as duas teriam sido atraídas ainda crianças para o esquema de exploração sexual supostamente montado por Klein. Mas, segundo elas, não foram as únicas mulheres da família Carvalhal atingidas pelo empresário e contam que elas próprias atraíram outras mulheres ao mesmo martírio. A complexidade dessa história exigiu um capítulo à parte nesta investigação jornalística — Uma família acusa o fundador da Casas Bahia.

De origem socioeconômica vulnerável, as adolescentes geralmente ficavam sabendo por outras meninas que o empresário dava dinheiro e outros presentes, como cestas básicas, produtos da Casas Bahia, carros e até apartamentos para mulheres e menores de idade que fossem se encontrar com ele. 

Segundo os relatos, após um primeiro contato, que frequentemente já incluía abusos sexuais, elas eram selecionadas por Samuel para participar de festas do empresário em imóveis de sua propriedade. Aparecem nos relatos como palco dos crimes sexuais apartamentos no edifício Universo Palace, em Santos (SP), e na Ilha Porchat, em São Vicente (SP). Também as casas de veraneio em Guarujá (SP) e em Angra dos Reis, além de seu imóvel no condomínio de Alphaville, em Barueri (SP). 

Alguns funcionários próximos teriam participado ativamente. Segundo os relatos das mulheres, de funcionários, além dos registros nas ações judiciais, esse staff do empresário fazia a organização das viagens, recrutando menores de idade e mulheres adultas, levando cestas básicas às famílias e dividindo os grupos para transportá-las aos imóveis de Samuel. 

Nas festas, segundo os relatos, os abusos eram escancarados: ele recrutava o grupo que iria ao quarto e as submetia a sexo vaginal ou oral, muitas vezes sem uso de preservativos. Como no caso de Karina, a constante ida das adolescentes gerou dependência financeira e, segundo elas, dependência psicológica. “Parece que a gente tinha a obrigação de fazer [atos sexuais] porque ele tinha dado dinheiro no dia anterior”, diz Vanessa Carvalhal. A maioria das entrevistadas relata ter ficado por anos indo às festas e participando de sessões de exploração sexual, como sugerem as imagens — obtidas com exclusividade pela reportagem — de uma festa em que Samuel está rodeado de crianças e adolescentes em 1994. 

Testemunhas do suposto esquema

Mesmo sem nenhum contato anterior com as entrevistadas, 18 fontes confirmaram a existência de um esquema de aliciamento e abusos sexuais de Samuel durante a apuração do caso. Entre as fontes, estão seguranças, ex-funcionários, motoristas de táxi, assistentes pessoais de Samuel, advogados de mulheres que citam acordos extrajudiciais, vizinhos de prédio e lojistas que contam que Samuel oferecia produtos da empresa para as adolescentes de forma recorrente. Conforme os relatos, a liberação de dinheiro ou eletrodomésticos era centralizada pela secretária do empresário de São Caetano, mas ocorria em dezenas de filiais da Casas Bahia. 

Funcionários confirmaram os frequentes pagamentos em dinheiro e produtos às chamadas “samuquetes”, como eram apelidadas as “meninas do Samuel” — depoimentos de ex-funcionários da empresa confirmando a situação constam em condenações na Justiça do Trabalho. 

Josilene*, que foi gerente numa loja da Casas Bahia na Vila Diva, zona leste de São Paulo, entre 2005 e 2008, contou à Pública que tanto Samuel quanto Saul Klein usavam o caixa das lojas como parte dos pagamentos dessas meninas e mulheres. “De manhã tocava o telefone: ‘Aqui é da parte do dr. Samuel ou do dr. Saul, e precisa separar tanto pro final do dia’. Então a gente ia no caixa, conversava, e as caixas iam separando o que entrava em dinheiro. E no final as meninas passavam e retiravam os valores.” 

A ex-gerente conta que em 2008 presenciou essa situação com mais frequência: “Ou era na quarta ou era na quinta que elas passavam.” Eram meninas de diversas regiões. As que vinham lá eram umas três quatro por semana, na faixa aí dos 16, 17 anos. Eram menores.” 

Josilene sabia o motivo do pagamento, explica que era do conhecimento geral do corpo de funcionários, mas que nada podiam fazer. “Era constrangedor. A gente seguia ordens.” Segundo ela, “as meninas tinham direito de escolher o que elas queriam na loja. Na época, como era menina nova, pegava muito celular, som, televisão. Às vezes a mãe ia junto pra escolher”. 

Josilene chama atenção para um detalhe confirmado por diversas fontes, informação que também consta em processos na Justiça: mulheres adultas e adolescentes chegavam às lojas munidas de bilhetes, escritos supostamente por Samuel Klein, em que ele dava autorização para a retirada de produtos e dinheiro.

Em 2010, por exemplo, as Casas Bahia foi condenada em diversas ações trabalhistas movidas por funcionários de lojas no Sul do Brasil. Em sete delas, os funcionários alegaram danos morais em razão de situações vexatórias vividas no trabalho. Eles descrevem que frequentemente tinham que pagar mulheres que apareciam nas lojas cobrando dinheiro e mercadoria e que, geralmente, traziam consigo esses bilhetes com ordens de pagamento de Samuel. 

Testemunhando a favor da ex-funcionária da Casas Bahia Rosineiva Freitas da Silva, que entrou com um processo trabalhista contra a empresa, a lojista Jacqueline Souza afirmou que ela e a colega “eram obrigadas a entregar dinheiro a moças bonitas que iam na loja porque eram pessoas enviadas pelo Sr. Samuel para receber dinheiro ou mercadorias”. 

Também a ex-funcionária Suzana Morcelli, que processou a empresa, em que trabalhou entre 2004 e 2009, confirma os pagamentos. “As garotas iam às lojas e pegavam os pagamentos tanto em dinheiro vivo quanto em mercadoria. E não eram valores pequenos. Lembro de uma que falou: ‘O que vocês demoram o mês todo para receber, nós ganhamos em uma hora’”, diz em entrevista à Pública. Josilene confirma. “Na loja da Vila Diva, elas chegavam a receber 3 mil cada uma.” 

Suzana foi também testemunha de um processo trabalhista movido pela ex-colega Nária de Souza Martins em 2010. Ela confirma a informação. Em seu processo, Nária afirmou que “por diversas vezes, foi constrangida perante os demais colegas da empresa ao ter de entregar dinheiro a mulheres desconhecidas, por ordens expressas do proprietário da empresa, Sr. Samuel Klein” e “que mulheres chegavam na loja com bilhetes assinados pelo proprietário da empresa ou sem estes, e exigiam a entrega de valores altíssimos, em moeda corrente, dizendo que se a reclamante demorasse a conseguir os valores seria imediatamente despedida, pois tinham autorização expressa do Sr. Samuel Klein para tanto”. 

Segundo os relatos, o esquema era de tal forma estruturado que Samuel tinha funcionários e prestadores de serviço que trabalhavam para garantir que ele tivesse acesso a crianças e adolescentes para praticar exploração sexual. “Parece que ele vivia para isso. Ele recebia meninas várias vezes por semana, o mês inteiro”, conta à Pública um segurança que trabalhou para a família Klein por 19 anos. 

Os relatos das mulheres e de alguns ex-funcionários apontam para Lúcia Amélia Inácio, secretária pessoal que trabalhava na sede da Casas Bahia, como uma das principais organizadoras do suposto esquema. Lúcia é citada na biografia autorizada do empresário, escrita por Elias Awad, como “fiel enfermeira e responsável pelo departamento de benefícios” da Casas Bahia. 

Segundo o texto, Lúcia foi “contratada em 1973 como enfermeira da unidade médica montada por Samuel em São Caetano para atender os funcionários”. “Lúcia passou a ser a enfermeira exclusiva de Samuel, preocupando-se e cuidando de tudo — dos remédios à dieta”, diz o texto. No relato das entrevistadas e de ex-funcionários, Lúcia é apontada como a responsável por convidar as meninas escolhidas por Samuel para as viagens, fazer pagamentos e doações de cestas básicas a mulheres e familiares e até participar de algumas das festas promovidas nos imóveis de Samuel.

A Pública apurou também que o empresário teria a seu serviço duas agenciadoras na Baixada Santista. Uma delas é Káthia Lemos, apontada por ao menos seis mulheres como uma “aliciadora de meninas” do empresário. 

Em conversa com a reportagem, a comerciante de 53 anos conta que tinha 13 quando começou a trabalhar para Samuel Klein, fazendo serviços diversos. Káthia negou que fizesse agenciamento de mulheres e meninas para “o rei do varejo”. Disse que sua função era oposta: “despistar as moças” que ele não queria mais encontrar, mas que insistiam em participar dos encontros em troca de dinheiro. “Se deixasse, elas invadiam a casa dele. Era necessidade, né? Elas precisavam.”

A ex-funcionária de Samuel disse conhecer “mais de 100 mulheres, de vários estados brasileiros, que frequentavam os encontros” com o empresário. “Não tinha menor de idade”, diz. “Algumas mentiam a idade dizendo ter 18 anos para agradá-lo. Era a fantasia dele. Ele gostava de meninas novas. Tinha uma menina menor de idade que ia com a mãe, mas ele nunca tocou a mão nela.” 

Mas Káthia admitiu que o empresário tentou fazer sexo com ela própria quando ainda era adolescente. “Eu nunca deitei com ele. Um dia ele tentou, mas falei: ‘Você nunca mais faz isso. Eu tinha de 13 para 14 anos e já trabalhava pra ele. E ele nunca mais tentou nada.”

Káthia aparece em fotos no iate e na piscina da casa de Samuel em Angra dos Reis. Ela aparece também em um vídeo de uma festa de aniversário do empresário que ocorreu em 11 de novembro de 1994 em uma casa em Guarujá. Na ocasião, Samuel agradece à Káthia o esforço em organizar o evento e a “amizade” de longa data. “Eu só posso agradecer especialmente a vocês três [indicando Káthia e outros dois seguranças] por fazer essa festa maravilhosa para 150 amigas minhas”, discursa. O vídeo mostra cenas do aniversário em que é possível ver mais de 50 meninas na festa. Há cenas que mostram as meninas assistindo a uma apresentação de dança erótica, brindando o aniversário do empresário e abraçando-o dentro da piscina. O vídeo contém também um depoimento de Káthia agradecendo a amizade de Samuel. Mulheres ouvidas pela reportagem apontam que foi a agenciadora quem organizou e recrutou as meninas para a festa. 

Diante dos relatos, a reportagem procurou novamente Káthia Lemos. Por telefone, ela disse “que não iria mais falar nada”.

Trechos em VHS com áudio original obtidos com exclusividade pela Pública mostram uma festa em 1994 dedicada a Samuel Klein, organizada por Kathia Lemos e outros funcionários. A festa contou com mais de “150 amigas” do empresário

Diversos relatos obtidos pela reportagem apontam que taxistas, motoristas e as próprias mulheres também faziam parte da engrenagem de exploração sexual sistemática de adolescentes pelo fundador das Casas Bahia. Muitas mulheres relatam que ele tinha preferência por virgens e havia um estímulo financeiro para quem as trouxesse. “Quando ele perdia o interesse, a gente levava uma menina mais nova pra encantar mais ele, entendeu? Ele dava mais dinheiro pra gente, poderia pegar mais coisa: um armário, uma TV. Aí a gente estourava”, afirma Karina Carvalhal. “Eu, com 15, levei a minha irmã porque ele perdeu o interesse em mim… Aí ele me dava de tudo”, confirma a irmã de Karina, Vanessa.

Os depoimentos sugerem que Samuel aproveitava a situação vulnerável de famílias empobrecidas e se colocava como “benfeitor”, criando uma lógica que, ao misturar abusos e recompensas financeiras, prendia as vítimas ao esquema criminoso. “Tinham as meninas que sustentavam as mães com esse dinheiro, porque não tinham nada, moravam em favela”, contou uma mulher, que não quis se identificar, que teria frequentado por seis anos as propriedades do empresário e testemunhou dezenas de abusos. 

Uma ex-funcionária, que também pediu que sua identidade fosse omitida, disse à reportagem que cruzava com as “meninas do Klein” a caminho do elevador toda semana na sede em São Caetano. “Nunca vi nenhuma sozinha, iam sempre em bandos de três, acompanhadas por seguranças”, diz. A funcionária e os dois seguranças entrevistados relatam que muitos funcionários da empresa sabiam e que, apesar de gerar comentários, a situação era tratada com normalidade.

As entrevistadas e outras fontes contam ainda que o empresário era tratado por todos como homem bom e generoso, que “ajudou muita gente”. Os relatos apontam que em seu modus operandi Samuel escondia a violência de seus atos nas recompensas vultosas que oferecia, situação similar à denunciada por mulheres contra seu filho Saul Klein. 

Apesar do sofrimento, muitas delas não se davam conta da magnitude do abuso que sofriam e não viam caminhos para denunciar. Não é possível saber ao certo o número de mulheres que estiveram sujeitas ao esquema, dado que os referidos abusos teriam ocorrido por décadas e em diferentes localidades. Um dos seguranças da família exemplifica: “Teve uma vez que o Samuel passou uma semana em Angra e foi uma coisa de louco. O helicóptero ia e voltava trazendo meninas, todo dia várias vezes”. Segundo ele, nessa semana do ano de 2009 ele ajudou a desembarcar cerca de 70 garotas do helicóptero na mansão de Angra dos Reis. A aeronave, segundo o relato, seria um Agusta AW139, com capacidade para dez pessoas. Um helicóptero desse modelo foi comprado pela Casas Bahia em outubro de 2008, segundo documentação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Nos relatos, aparece também referência à quantidade de meninas presentes nas festas e na sede da empresa. “Eram umas 40 meninas, todas da minha idade”, afirma Vanessa Carvalhal, sobre a primeira “festa” com Samuel, no edifício Universo Palace, na década de 1990. “Você chegava lá e era coisa de ter seis, sete meninas esperando para entrar. Entrava uma e saía outra. A maioria era novinha, mas havia mais velhas também”, afirma outra mulher, ouvida sob anonimato, falando a respeito dos encontros na sede da Casas Bahia.

Comprando o silêncio

Em 2008, quando tinha 14 anos, Francielle Wolff Reis foi convidada por uma conhecida para visitar o famoso fundador da Casas Bahia. Como teria ocorrido com outras meninas, soube que Samuel dava lanches e presentes para as meninas que o visitavam em seu escritório em São Caetano. Não fazia ideia de que seria explorada sexualmente por ele. Hoje adulta, Francielle conta sobre o trauma que carrega. “Samuel colocou um pacote de dinheiro em cima da mesa e perguntou: ‘Você quer?’.” 

Conforme o relato, o empresário prometeu que entregaria o bolo de notas se a adolescente se submetesse a sexo com ele, à época com 85 anos. Acuada, Francielle foi levada ao quartinho anexo ao escritório do empresário na sede da Casas Bahia. Segundo consta em seu processo, com muito medo de dizer não, ela foi submetida a sexo vaginal. 

A partir desse dia, a adolescente se viu imersa em uma rotina de exploração sexual em troca de pagamentos e presentes. Francielle conta que sofria, se sentia suja, culpada, mas tinha medo de contar para a mãe e vê-la cair em depressão. Por cerca de um ano e meio, a menina teria frequentado o escritório de Samuel de duas a três vezes por semana. Ia no período da tarde, quase sempre levada pelo mesmo taxista que recebia o pagamento pelas corridas diretamente de um segurança contratado pela Casas Bahia. Em entrevista à Pública, o taxista, que falou sob sigilo, confirmou que fazia o transporte da menina e ressaltou: “Mas eu não era o único. Tinha muitos carros levando meninas lá, de tudo quanto é canto do ABC”. 

Ao longo do tempo, a mãe da garota começou a estranhar o comportamento da filha. “Percebi que tinha alguma coisa errada, de repente uma menina adolescente aparecer em casa com dinheiro, celular”, conta Amélia Pires dos Reis. 

Na época, ela se desdobrava em três empregos, trabalhando como doméstica, e acabava passando pouco tempo em casa. Mas a filha ficou tão estranha que a mãe resolveu buscar contato com Samuel Klein. Telefonou para o empresário e, segundo relata, ouviu dele que “Francielle era como uma neta que ele gostava de ajudar”. Pouco depois da ligação, Samuel mandou entregar em sua casa uma cópia de sua biografia e um DVD com uma reportagem que conta sua história de empreendedorismo. “Eu caí, pensei que ele era um homem bom, admirei ele ter superado a guerra. Nunca iria imaginar a verdade”, lamenta. 

Francielle continuou frequentando o escritório do empresário. Cinco vezes, viajou com ele e outras adolescentes para Angra dos Reis. Nessas viagens, segundo seu relato, as meninas eram submetidas a uma rotina de violências sexuais no iate em alto-mar ou no chalé da enorme propriedade cercada por seguranças armados. A Pública teve acesso a fotografias que revelam a presença de Francielle no iate que Samuel mantinha em Angra. 

Samuel repetia com a adolescente o mesmo padrão relatado por outras mulheres. Além do dinheiro, dava cupons para a retirada de produtos, como sugerem duas notas fiscais da Casas Bahia que, expedidas em nome de Francielle, somavam o valor de R$ 1.154, em maio de 2009, quando a menina tinha 15 anos. 

Quando sentia falta da menina, o empresário telefonava para a vizinha da garota, solicitava a presença de Francielle e enviava um táxi para buscá-la. Em entrevista, a vizinha Claudelice Alves de Freitas contou que recebeu cerca de seis ligações de Samuel pedindo para ver Francielle, a quem se referia como “neta”. Como relatado pela mãe, com o passar dos meses, a violência persistia e desestruturou a adolescente. No início de 2010, Amélia decidiu ir até o escritório do empresário e conversar com ele. 

“Quando eu cheguei lá, num táxi mandado por ele que levava também outra menina, acharam que eu era uma agenciadora e me levaram para a entrada lateral. No momento que entrei no elevador e vi tanta menina, me perguntei se estava em uma empresa ou numa casa de prostituição. Aí foi que entendi tudo.” Chegando Amélia ao escritório, Samuel ofereceu dinheiro para que ela não o denunciasse, contou. 

“Daí por diante a minha vida se tornou um inferno.” Ela relata que começou a ser perseguida por funcionários de Samuel, que ofereciam dinheiro e imóveis. Francielle adoeceu psicologicamente e deixou de frequentar a escola. Pouco tempo depois, a própria mãe chegou a tentar suicídio. Claudelice, a vizinha que atendia as ligações de Samuel e acudiu Amélia no dia da tentativa, resume: “A família ficou destruída”. 

Apesar dos traumas e das ligações de representantes de Samuel oferecendo dinheiro, Amélia relata que não aceitou o silêncio e foi até a Delegacia da Mulher de Carapicuíba fazer a denúncia. Ela conta também que prestou depoimento e teve seu testemunho registrado em um inquérito que não andou. “Fiquei nove horas esperando na delegacia para depor e depois nunca mais soube notícias.” A Pública tentou acesso ao inquérito supostamente originado em sua denúncia, mas o documento está arquivado sob sigilo.

“Gostava mais de menininha”

Cláudia* tinha 20 anos quando participou pela primeira vez de um jantar com Samuel na sede da Casas Bahia. Era 2008. Na época, ela estava afastada da família, que mora em Osasco, para cursar faculdade em São Paulo. Sem nenhuma ajuda financeira, o salário-mínimo que recebia no comércio era pouco para cobrir o aluguel e as despesas do curso.

“Disseram que eu ia jantar e fazer companhia, carinho nele”, conta. A proposta foi feita por um homem de cujo nome ela não se lembra. O encontro teria ocorrido no andar da presidência da loja, onde havia o quarto em que Samuel Klein passava parte do tempo. 

Ao chegarem lá, táxis trazendo as meninas e mulheres eram imediatamente direcionados para o estacionamento da presidência, onde os seguranças pessoais recebiam as pessoas. Cláudia diz que nunca fez sexo por dinheiro e que somente quando chegou no local se deu conta da natureza do encontro. “Eu fiquei em choque. Me senti encurralada. Uma vez que está lá, sente como se não tivesse mais como recuar.” 

Depois da refeição, ela contou que Samuel conversou com as participantes sobre seus interesses, estudos e dificuldades financeiras. “Era como uma seleção.” A partir da conversa, o empresário convocava suas preferidas para o quarto, e ela foi chamada. “Me senti suja, com nojo e vergonha. Saí de lá chorando. Você nunca pensa que vai fazer algo assim porque é uma situação de humilhação compartilhada com outras pessoas. Eu via outras mulheres sendo humilhadas ali. O que me atraiu foi o dinheiro, foi o que me fez voltar”, revela. 

De acordo com Cláudia, os encontros tinham método. Seguranças pessoais do empresário interceptavam os carros que conduziam as mulheres. Quem agendava as visitas e fazia os pagamentos era Lúcia Amélia, citada novamente como a responsável pela organização que incluía a interlocução com agenciadores de garotas de programa, aliciadores de menores de idade e, quando necessário, a pessoa que fazia a aplicação de injeções com estimulante sexual no empresário. 

“Algumas dessas pessoas também forneciam mulheres para o filho dele, Saul”, comenta Cláudia, que também cita Káthia Lemos como aliciadora. 

Embora fosse maior de idade, Cláudia conta que foi orientada a dizer que tinha 17 para 18 anos para atender “o estilo de Samuel, que gostava mais de menininha”. Cláudia confirma que o empresário mantinha relações sexuais com adolescentes e crianças. “Ele era pedófilo, agia como um. Gostava de meninas com o corpo menos evoluído, que era meu caso. Então ele gostou de mim. A gente tinha que ficar mentindo porque ele gostava disso.”

Depois que parou de frequentar os encontros com Samuel, Cláudia mudou de cidade e de número de telefone. Disse que nunca mais fez programas ou foi procurada por ninguém dessa época, mas que até hoje carrega marcas psicológicas. “É algo que enterrei na minha vida. Já fiz tratamento de ansiedade. Tenho dificuldades nos meus relacionamentos, de confiar. Quando você conhece o lado sombrio do ser humano, desperta a sensação de não poder confiar em ninguém. Outro trauma que me acompanha é a necessidade de ser perfeita. Porque tinha um script a ser seguido para agradar ele. Você precisava ser perfeita, ser como um robô.” 

Cláudia relata que frequentou as várias residências de Samuel por três anos. Esteve nas casas de Alphaville, Santos e Angra dos Reis, e conta que os encontros aconteciam sempre com várias mulheres adultas e com a presença de adolescentes. “Todas as casas dele tinham espécie de kits prontos para esses encontros sexuais, como gel lubrificante ao lado da cama. Muitas usavam preservativo feminino escondido porque ele não gostava.” 

Fernanda*, outra mulher que frequentou a casa do empresário em Alphaville, na mesma época, entre 2008 e 2009, confirma que era obrigatório o sexo vaginal sem preservativos. “A ajudante passava lubrificante antes e dizia que matava tudo”, lembra. Para ela, chamava atenção a quantidade de garotas levadas para a casa do empresário no condomínio luxuoso. “Era no mínimo dois carros por dia. Em um dos dias que estive lá, quando eu e um grupo de meninas estávamos indo embora, vimos que a Káthia já havia chegado de Santos com outro carro cheio de meninas. Então eram dois, três carros por dia.” 

Como ela e todas as entrevistadas sustentam, Samuel preferia meninas menores de 18 anos. “O que ele gostava era de desvirginar mocinhas. Quando ele pegava uma menininha menor, mocinha, que era virgenzinha mesmo, nossa, ele enlouquecia. Dava carro pra família, fazia qualquer coisa”, conta. “Quando eu estive no quarto, a mulher que estava preparando as meninas mandou eu me tampar porque eu tinha estrias na barriga dizendo ‘tampa se não ele vai ver que você é velha’. Detalhe que eu tinha 18 anos”, afirma Fernanda. 

Para Angra de helicóptero

A mansão do empresário no condomínio Porto Bracuhy, em Angra dos Reis, é um dos endereços mais citados pelas mulheres que relataram os abusos. 

Ivan Marcelo Neves, morador do condomínio, contou que, no início dos anos 2000, nos finais de semana, o empresário distribuía dinheiro na porta de sua casa para os moradores do entorno e convidava algumas meninas para entrarem ou passearem em seu iate. As que aceitavam recebiam a proposta de fazer sexo com ele em troca de dinheiro e presentes.

Ivan recorda que os moradores dos bairros populares, vizinhos ao condomínio, se habituaram a receber dinheiro do empresário. “Era muito incômodo e também muito explícito. O pessoal comentava: ‘Hoje é dia de festa na casa do Samuel Klein”. E a guarita ficava liberada.” 

Além de Ivan, outras duas moradoras do bairro falaram com a reportagem, mas preferiram permanecer no anonimato. “Todo mundo daqui já sabia quando ele chegava, conhecia o helicóptero”, comenta uma delas. “Era quase toda sexta-feira um pessoal indo lá. E a notícia que corria era que ele gostava de meninas bonitas e novas”, diz a outra entrevistada. 

“Ele dava dinheiro à vontade, igual água, ninguém iria denunciar ele”, conta uma das moradoras do bairro vizinho à mansão do empresário em Angra. O fluxo de pessoas, que se juntavam em filas na porta da mansão de Klein, incomodava os vizinhos. Ivan Neves conta que em meados dos anos 2000 um dos condôminos chegou a fazer um Boletim de Ocorrência, denunciando o aliciamento de menores. 

“A questão é que ele fez a creche, pagou o muro da escola e dava muito dinheiro. Isso tudo fecha os olhos das pessoas”, lamenta uma das moradoras. Segundo relatos, perto de 2004 o empresário deixou de ajudar a comunidade com cestas básicas e parou de distribuir dinheiro na porta da mansão. “Aí teve um cala boca geral na cidade”, lembra Ivan.

Além das moradoras de Angra dos Reis, segundo o relato de uma pessoa ouvida pela reportagem, Samuel levava para sua mansão na praia adolescentes aliciadas em bairros de baixa renda de outros municípios de São Paulo, como Santos, São Vicente, Guarujá, Carapicuíba, São Caetano, e até de outros estados, muitos no Sul do país. 

Uma testemunha contou, em sigilo, que as viagens para a mansão eram feitas com a promessa de passeios de iate. Regularmente, o empresário levava de quatro a cinco meninas para o heliponto na cobertura da sede da Casas Bahia em São Caetano — segundo apontam ex-funcionários, mulheres entrevistadas e registros em processos judiciais. 

De lá, partiam para a mansão, onde a rotina se resumia a fazer as refeições com ele, ficar na piscina e passear no iate, onde eram submetidas a práticas sexuais em grupo com Samuel, enquanto a embarcação estava parada em alto-mar. “Ele falava da viagem para as favoritas, como um prêmio. Imagina, para uma menina que não tinha nada, a ideia de viajar de helicóptero e andar de iate chamava atenção”, comenta uma das fontes.

Em entrevista, uma das mulheres contou que ainda adolescente viajou várias vezes para a mansão e disponibilizou à Pública fotos das viagens. Em uma das imagens, aparece abraçada ao empresário em frente ao helicóptero Agusta A09 Power, pousado em Angra, em 1999. Além de usar o heliponto da empresa, a foto indica que Samuel utilizou a aeronave da Casas Bahia para transportar meninas para sua mansão. Segundo registro da Anac, o helicóptero fotografado havia sido registrado em nome da Casas Bahia em 1998. 

Guarujá e São Vicente

Um imponente prédio “pé na areia”, na orla da Ilha Porchat, em São Vicente, litoral de São Paulo, foi um dos destinos mais frequentes de Samuel Klein no final da década de 1990. A estratégia para aproximar meninas, preferencialmente virgens, era parecida com a repetida anos depois em Angra dos Reis. Aos finais de semana, distribuía dinheiro na porta do prédio para quem aparecesse e convidava algumas meninas para comerem um lanche. Segundo José Alves Feitosa, morador do prédio, a notícia do empresário distribuindo dinheiro correu rapidamente pela vizinhança, e a pequena rua que leva ao prédio chique ficava abarrotada de pessoas sempre que o empresário estava no imóvel. 

“Vamos supor, de manhã iam umas 50 meninas. Aí ele não atendia. As bichinhas ficavam lá na fila e iam embora. Voltavam à tarde e já tinha umas 50 na fila. De noite, aquela fila tinha se multiplicado, já tinha 100”, conta uma mulher que afirma ter frequentado as propriedades de Samuel entre 1995 e 2000.

O fluxo de gente acabou constrangendo os vizinhos do imóvel de São Vicente. José Alves Feitosa, morador do prédio, que atualmente é síndico, explicou que os moradores se sentiam incomodados com as filas que se formavam na rua e a quantidade de pessoas que circulavam pelo prédio a caminho do apartamento do empresário. “Então tivemos que fazer um abaixo-assinado para tirá-lo do prédio e conseguimos.” Feitosa conta que após o abaixo-assinado Samuel deixou de frequentar o endereço. 

Novamente os relatos indicam que durante os encontros Samuel gostava de se colocar no papel de um suposto “provedor”. “Ficava falando ‘come isso, come aquilo, aproveita que pobre não come filé-mignon’. Na sequência, ele escolhia três meninas e convidava para ir pro quarto”, diz uma testemunha. Seu relato é confirmado por Karina e Vanessa Carvalhal, que também frequentaram o imóvel em São Vicente e nele, contam, sofreram vários abusos. 

“Ninguém falava sobre o que acontecia quando saía do quarto, na época as meninas eram envergonhadas. Saíam aflitas para ir no banheiro e só”, diz a testemunha, que preferiu permanecer no anonimato. “Aquelas que iam para o quarto ganhavam R$ 500 a R$ 1 mil, pagos na hora, em dinheiro. Era muito dinheiro na época”, frisa. 

Antes de utilizar o imóvel da Ilha Porchat, Samuel Klein usava rotineiramente uma casa que tinha no número 5005 em frente à praia da Enseada, em Guarujá. Karina Carvalhal conta que a casa, em um terreno grande, tinha uma construção nos fundos apelidada de “motelzinho”, em frente à piscina com a letra K gravada no fundo. Várias mulheres ouvidas pela reportagem falaram dos finais de semana que passaram submetidas a uma rotina de abusos no endereço, ainda quando menores de idade. Uma adolescente que disse ter sido violentada por Samuel em Guarujá fez uma denúncia que chegou ao Conselho Tutelar do município, gerando a abertura de um inquérito policial. 

Processos não avançam

Na Justiça, nenhum procedimento para a responsabilização de Samuel Klein por abusos contra crianças e adolescentes prosperou. Fechar acordos judiciais e evitar citação em ações em curso foi apontado como táticas da defesa do empresário para evitar o andamento de processos. 

Um advogado ouvido pela reportagem afirmou ter fechado um acordo judicial, com pacto de confidencialidade, com seis mulheres que alegaram abusos de Klein, todas menores de idade na época dos fatos. Segundo o advogado, que falou sob sigilo para não desrespeitar os termos da confidencialidade, o acordo foi exitoso porque as vítimas apresentaram fotografias e vídeos que comprovaram a situação. Ele classificou o material apresentado como “incontestável”.

Além de fotografias que mostravam adolescentes no helicóptero e nas residências de Samuel, segundo o advogado, havia vídeos mostrando abusos sexuais explícitos. “O material não é sutil. Está lá o ato sexual.” Além do vídeo que mostra cenas de sexo com uma menor de idade, o advogado relata que o material mostrava o empresário falando palavras vulgares e humilhantes para as adolescentes. “Perturbador”, classifica. Após a conferência dos arquivos, a defesa do empresário propôs um acordo que previu pagamento de indenização para as mulheres e destruição das provas. 

Além desse acordo, outros similares foram feitos, registrados na Justiça ou no âmbito extrajudicial. Em 2010, um acordo entre Vanessa Carvalhal, Karina Carvalhal e outras duas denunciantes foi firmado. Segundo as irmãs ouvidas pela reportagem, cada uma recebeu cerca de R$ 150 mil. A Pública teve acesso a documentos que indicam a veracidade do acordo.

Mas essa prática de pagar às mulheres antes de responder à citação judicial, para que os processos não tramitassem, já havia sido utilizada pelo empresário em meados de 2002. Jorge Alexandre Calazans, advogado que representou quatro vítimas de abusos sexuais, conta que estabeleceu um acordo com os advogados do empresário e as mulheres que o procuraram. “O acordo foi feito rapidamente, elas receberam o dinheiro e extinguiram o processo de indenização que tinham aberto.” Uma das mulheres afirmou que recebeu R$ 5 mil pelo acordo. 

Há dez anos, o escritório Aquino Ribeiro Advogados & Associados, localizado em Santos, no litoral de São Paulo, recebeu o primeiro relato de uma mulher que buscava orientação para a abertura de um processo judicial. Ela contou que havia sido abusada ainda adolescente, no final da década de 1990, mas procurou a Justiça contra o empresário anos mais tarde. 

Depois dela, os advogados do escritório receberam ao menos uma dezena de outros relatos de mulheres que se dizem abusadas por Klein no mesmo período. Os casos, no entanto, estavam prescritos criminalmente. Naquele momento, o prazo para prescrever uma ação penal envolvendo estupro era de 20 anos a partir da ocorrência dos fatos. No ano seguinte, com a Lei Joana Maranhão, de 2012, a contagem da prescrição de crimes sexuais contra vulneráveis passaria a ser iniciada apenas na data em que a vítima completasse 18 anos.

Os advogados optaram pelo processo cível, em que o prazo prescricional de 20 anos começava a correr a partir da maioridade. Hoje, uma vítima tem até três anos para reclamar danos indenizatórios na esfera cível — o que o advogado Antônio Sérgio de Aquino, que representa seis dessas mulheres, critica. “Até o consumidor tem uma lei de reparação mais benéfica do que uma vítima de estupro dessa natureza, porque o consumidor tem cinco anos. O Código de Defesa do Consumidor prevê cinco anos para ele postular uma reparação de danos, para processar. E uma vítima como essa tem três. Isso é uma coisa para se rever”, afirma.

Mas, mesmo na esfera cível, cinco dos seis casos levados à Justiça pelo escritório tiveram a prescrição reconhecida. Como o empresário tinha mais de 70 anos quando as mulheres decidiram buscar reparação, o tempo para viabilizar o processo caiu pela metade: dez anos. Uma das clientes de Aquino, por exemplo, relata ter sido abusada sexualmente por oito anos a partir de 1992, quando tinha 11 anos. Mas só denunciou o caso em 2012, aos 30 anos — duas décadas depois, quando a prescrição já havia sido atingida. Pela regra anterior, ela teria até os 21 anos para entrar na Justiça contra Samuel, por se tratar de uma acusação contra um idoso; já na nova regra, essa mesma vítima teria que ter denunciado os abusos até os 28 anos para conseguir dar prosseguimento à ação. “São três anos para postular algo tão grave. Como uma pessoa de 21 anos, porque hoje conta a partir dos 18, vai enfrentar um Samuel Klein?”, questiona Aquino. “Na cabeça da vítima, ela ainda fica pensando que ela pode ser culpada. Ela leva um tempo achando que a agressão, que o que ela passou, é culpa dela. Era isso que a gente queria: que ao menos tivesse uma perícia, um psicólogo ou psiquiatra que pudesse aferir por quais motivos elas não entraram na época com ação.”

Como estratégia para demonstrar o descabimento da prescrição e manter os casos ativos, ele sustenta a tese jurídica de que suas clientes, devido aos traumas dos abusos, não procuraram ajuizar ações porque estavam temporariamente incapazes. A defesa busca trabalhar com uma possibilidade jurídica, já que a legislação altera o prazo de prescrição para quem é considerado incapaz. O artigo 198 do Código Civil suspende o curso prescricional para os incapazes de exercer os direitos civis, que têm como uma de suas definições, na lei, “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”.

De todos os casos do escritório, um único ainda corre na Justiça. A ação de cunho indenizatório reúne as mesmas argumentações e tese jurídica, mas teve um ritmo de movimentação mais lento na Justiça. O caso ainda em tramitação pede, agora aos herdeiros do empresário, indenização de R$ 3 milhões por danos materiais e morais. Silvana* alega que sofreu abusos do empresário quando tinha 11 anos, em 1996. 

No julgamento do caso em primeira e em segunda instância, não foram analisados os argumentos dos advogados sobre a incapacidade das denunciantes de exercer o direito, e o direito de ação foi declarado prescrito. Agora, os advogados aguardam o processo ser digitalizado para análise dos recursos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A possibilidade de reverter o entendimento na corte parece pequena, já que a estrutura processual é bastante semelhante à de outros processos que prescreveram, mas Aquino aposta na estratégia. “Se aprovada nossa tese, o processo vai voltar à primeira instância para, então, a gente ter a oportunidade de produzir as provas e eles, as contraprovas.”

Além de fotos das adolescentes nas propriedades de Klein e relatos de próprio punho das mulheres, os advogados instruíram os processos com base em um inquérito policial aberto contra Samuel Klein em 2006 — o que mais avançou em termos investigatórios. 

A análise do inquérito traz a história de Bianca*, que relatou em depoimento na Justiça ter sido vítima de abusos sexuais e estupros cometidos por Samuel Klein quando tinha 13 anos, em 2001. O caso foi denunciado por ela em abril de 2006 ao Conselho Tutelar de Campina Grande, na Paraíba, onde passou a morar com sua mãe. 

Em uma carta escrita de próprio punho, ela, que tinha 17 anos no momento da denúncia, relata assédios sexuais e as tentativas de o empresário “acariciar” e “forçar de forma horrorizante”. “Estou aqui para denunciá-lo para que isso não venha acontecer com as demais jovens, que passaram e estão passando por isso e não tem coragem de fazer a denúncia, por medo e por constrangimento, igual eu tive.”

No texto escrito pela adolescente, ela relata também perseguição à família. “Eu não o coloquei na justiça há mais tempo pelo fato dele me ameaçar e ameaçar minha família.” “Ele tentou subornar a mim e à minha família com muito dinheiro”, denunciou na carta. Segundo depoimento do pai de Bianca, que consta no inquérito policial, ao qual a Pública teve acesso, seguranças de Samuel Klein teriam oferecido R$ 50 mil e a secretária do empresário, R$ 10 mil, para a família silenciar sobre o ocorrido. 

No relato, o pai da adolescente afirma que chegou a pensar em falar com o empresário quando soube dos abusos contra a filha, mas que foi aconselhado por amigos e familiares a “não se meter” com ele, já que se tratava de uma “pessoa rica e poderosa”. Além dele, outras cinco testemunhas prestaram depoimento. 

Em 2011, o juiz Valdir Ricardo, da 1ª Vara de Justiça de Guarujá, julgou extinta a punibilidade de Samuel Klein e determinou o arquivamento do inquérito contra o empresário. 

Antes da decisão final do magistrado, o MP-SP reconheceu os indícios dos abusos, mas recomendou ao juiz o arquivamento dos autos pela simples impossibilidade de responsabilização criminal: “Em que pese os diversos depoimentos indicarem a ocorrência de abusos sexuais praticados pelo investigado em desfavor da ofendida, mesmo que tais relatos estivessem cabalmente demonstrados nos autos, verifica-se que ocorrera a prescrição da pretensão punitiva em abstrato em relação a qualquer tipo penal em que a conduta de Samuel venha a ser enquadrada”, escreveu o promotor de justiça Antônio Benedito Ribeiro Pinto Júnior. 

No caso, há o registro de uma tática recorrente da defesa de Klein: evitar a intimação para as oitivas, que é o momento em que o ofendido pode ser ouvido no curso do inquérito, até o esgotamento do prazo. No inquérito que investigou abusos contra Bianca, as tentativas de ouvir Klein na investigação ocorreram durante três anos, de agosto de 2006 a dezembro de 2009. 

As autoridades policiais buscaram Samuel Klein por diversas vezes na sede da empresa e em seus endereços residenciais, sem sucesso. O empresário, por meio de sua defesa, apresentou atestados médicos e pediu que a oitiva ocorresse em São Caetano do Sul, mas nunca atendeu as autoridades policiais. Nem ele nem suas testemunhas. Não houve nenhuma ação mais enfática da Polícia Civil ou do MP-SP. 

A mesma estratégia foi observada no processo de Francielle Reis, que relatou ter sofrido abusos recorrentes entre 2008 e 2010, quando tinha 14 e 15 anos, na sede da Casas Bahia. Francielle conta que, após a denúncia feita na Delegacia da Mulher de Carapicuíba ter se mostrado infrutífera no final de 2010, em 2013 tomar coragem para iniciar uma ação de indenização por danos morais contra Samuel, na qual anexou fotos no iate do empresário quando era adolescente e outros documentos. O processo patinou por anos, mas Samuel faleceu sem ao menos ter sido citado pela Justiça. Em 2017, três anos após a morte do “rei do varejo”, uma oficial de justiça conseguiu citar o herdeiro de Samuel, o filho mais velho, Michael Klein. O processo ainda tramita na Justiça. 

Em fevereiro de 2021, a juíza do caso proferiu uma sentença negando à Francielle a indenização pedida. Em sua decisão, acatou os argumentos da defesa, que argumentava que Klein estava acamado desde 2006, estando impossibilitado de praticar os abusos denunciados por Francielle. 

A Pública, no entanto, apurou que nesse período Samuel participou de eventos públicos, parecendo esbanjar boa saúde. Inaugurou, por exemplo, ao lado do ex-presidente Lula, um novo depósito da empresa em maio de 2006. A revista IstoÉ Gente registrou, em novembro de 2007, a participação do patriarca no lançamento da quinta edição da Super Casas Bahia, evento da empresa no Anhembi, em São Paulo. Em maio de 2010, foi enaltecido por sua saúde física pela colunista Sonia Racy: “Além de absolutamente ativo, Samuel Klein praticamente mora na sede [da Casas Bahia] em São Caetano do Sul. Além de um quarto montado, se exercita diariamente em um corredor”. 

No ano seguinte, 2011, Samuel conduziu uma palestra de mais de 40 minutos em um evento organizado por escolas judaicas. Deborah Kotujansky Rejwan, estudante que participou da palestra, contou à reportagem que Samuel se locomovia e falava com facilidade no evento. “Era um senhorzinho que parecia estar muito bem para a sua idade”, diz. No mesmo ano, o empresário participou de uma assembleia geral de sócios da empresa Habile Segurança e Vigilância, ligada à família Klein.

Em março de 2021, os advogados de Francielle recorreram da sentença da primeira instância, argumentando que o empresário não estava acamado. O processo está em vias de ser analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. A mãe da menina resume: “Eu não quero dinheiro com essa ação. No fundo, eu quero mostrar que, nesse país, pobre também tem direito”. 

Samuel Klein foi investigado também em um inquérito aberto em outubro de 2008 na Delegacia de Defesa da Mulher de Santos. O caso virou uma ação penal que tramitou na 1ª Vara Criminal da cidade, e Samuel foi investigado por crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. O caso só foi arquivado devido à morte do empresário, seis anos mais tarde.

Tal pai, tal filho?

Luana*, hoje com 26 anos, conta que, quando assistiu ao Fantástico em dezembro do ano passado, reviveu um dos piores momentos de sua vida, aos 18 anos. “Me assusta ainda lembrar disso.” Ela se refere à figura de Saul Klein, um dos herdeiros e filho de Samuel Klein, que foi tema de reportagem do jornalístico da Globo devido a uma investigação motivada por mais de 30 mulheres que o acusam de crimes sexuais como estupro.

Conhecido no meio do futebol por investimentos em clubes como São Caetano e Ferroviária, Saul também foi, nas últimas eleições municipais, candidato a vice-prefeito do município do grande ABC, a cidade onde se instalou a primeira loja da Casas Bahia, que, fundada pelo patriarca do clã, viria a se tornar não só uma das maiores empresas varejistas do país, como também uma das que mais anunciam na mídia brasileira. 

“Quando passou o caso na televisão, eu não consegui compreender quem era de imediato. Só fui reconhecer quando mostrou o vídeo dele, e a gente conhecia ele como ‘Zinho’, não como Saul”, relembra Luana. 

Ela explica que veio a São Paulo em 2014 atraída por um anúncio de desfile de sapatos internacionais que encontrou no Facebook. Ao chegar ao aeroporto, foi recepcionada por um motorista que a levou, com outra mulher, ao Flat Sequoia, em Alphaville, na Grande São Paulo. Ambas estavam ali pela primeira vez. “Fui enganada. Descobri que era algo com o filho do chefe da Casas Bahia só depois.”

Um ex-funcionário do Flat Sequoia que trabalhou no local por mais de dez anos relatou à Pública que Saul mantinha dois apartamentos no local onde esteve Luana. “As meninas eram proibidas de sair e de manter qualquer contato com outras pessoas.” “Uma delas certa vez me falou que ele queria fazer sexo anal à força.” 

O cachê de R$ 3 mil e a pressão psicológica que sentiu das pessoas do staff do empresário fizeram Luana ficar para um teste, realizado em outro local, relata. “Tive que me despir para ele, me exibir, estava atordoada, mas ele escolheu a outra moça que estava comigo naquela hora, que era essa goiana que veio no carro comigo.” 

Ela conta que viu Saul fazer sexo anal sem preservativo com a colega. “Ela saiu do quarto chorando, porque ele a machucou muito.” Luana recorda que dias depois esteve numa festa na mansão de Saul, em outra região de Alphaville, com a presença de 20 mulheres, de sexta-feira até domingo. “A gente acordava, tomava café com ele, descia pra academia, ia na piscina e à noite tinha festas temáticas.” 

Segundo ela, todas as noites três mulheres eram selecionadas para o quarto de Saul em sua mansão. “No sábado, quando fui selecionada pra subir no quarto com ele, comecei a passar mal, ficar enjoada, pela bebida que tinha ingerido durante o dia, mas fui.”

As pessoas do staff de Saul perguntaram se ela estava grávida. “Me falaram que, caso eu achasse que estivesse grávida, eu não poderia sair até retirar o bebê. Se fosse dele ou não, teria que tirar. Falei que não, que estava passando mal por conta da bebida. Mesmo assim, fui obrigada a fazer um teste de gravidez ali mesmo.” 

Ao subir ao quarto, Luana foi avisada de que não podia olhar para o rosto do empresário nem falar como adulta. “A gente tinha que falar com voz e jeito de criança. Tínhamos que mentir a idade, como se nós tivéssemos 15 anos.”

Passar mal, ela diz, a salvou do ato sexual que não queria. “Não deu, estava mal. E uma das garotas, a mais velha no esquema, mandou eu ir dormir no chão do banheiro até o dia seguinte, enquanto ela e outra garota novata como eu, seguiam com ele na cama.”

A mulher que a mandou dormir no banheiro revelaria no dia seguinte que, caso ela tivesse saído do quarto, poderia ter sido punida pelo staff de Saul, mas não disse qual seria a punição. “Essa mulher é muito antiga lá, mas tinha acabado de fazer 18 anos. Até ela mesmo falou que ele [Saul] a havia ajudado a construir uma casa.” 

Luana diz que não é garota de programa e que não faz parte das mais de 30 mulheres que atualmente acusam Saul na Justiça e são defendidas pelo escritório Gabriela Souza Advocacia Para Mulheres, do Rio Grande do Sul.

Na defesa de suas clientes, Gabriela argumenta que existe um histórico transgeracional de violências sexuais dos Klein. “Saul Klein recebeu uma educação baseada na exploração sexual das mulheres, com o pior exemplo em casa. E, usando o poder social que o dinheiro lhe beneficia, replicou e especializou o modus operandi paterno para cometer as mais diversas atrocidades.” 

Em coletiva de imprensa no início do mês passado, após decisão judicial que tirou de suas clientes uma medida protetiva contra Saul (o passaporte do empresário foi devolvido pela Justiça e ele não estava mais impedido de contatar as mulheres que o denunciam), a advogada afirmou que o caso tem semelhanças com diversos outros que se tornaram públicos. 

Ela cita, especialmente, o caso que ganhou repercussão internacional, em que o bilionário Jeffrey Epstein, norte-americano amigo de Donald Trump, usou todo o seu poder econômico e social para, ao longo de décadas, cometer violências sexuais, em um sistema reconhecido como uma pirâmide sexual, história contada em série da Netflix. “As semelhanças não são apenas no modus operandi do predador sexual, mas também no foco de sua defesa e no modo como o Judiciário reage a situações como esta.”

A defesa de Saul Klein, feita pelo escritório André Boiani e Azevedo, alega na Justiça que o empresário gostaria de ser o “daddy de todos os daddys, do qual todas as babies gostariam de ser babies”, em referência a uma suposta relação de “sugar daddy” que o empresário manteria com as denunciantes — o termo se refere a homens mais velhos que têm o fetiche de sustentar financeiramente mulheres mais novas em troca de afeto e/ou relações sexuais.

A defesa do empresário disse à Pública (leia a nota na íntegra) que o investigado está “sendo vítima de um grupo organizado que se uniu com o único objetivo de enriquecer ilicitamente às custas dele, através da realização de ameaças e da apresentação de acusações falsas em âmbito judicial, policial e midiático”. 

Ainda segundo a defesa de Saul Klein, o investigado “jamais manteve relações sexuais não consentidas. Ele também nunca admitiu a presença de menores de idade em seus eventos, tendo sempre sido esse tema pauta de sua agenda de responsabilidade como anfitrião”. 

Para a defesa do empresário, “várias dessas pessoas já conseguiram se aproveitar dele em outras oportunidades, causando-lhe prejuízo milionário, e estavam acostumadas a essa situação”. Diz ainda a defesa: “Quando perceberam que esse tempo acabou, passaram a difamá-lo publicamente. Ele sente profunda indignação diante desse quadro, mas se defenderá com toda a tranquilidade, pois tem absoluta confiança na Polícia, no MP-SP e no Poder Judiciário, que já atestaram sua inocência em investigação anterior e certamente o inocentarão mais uma vez”. 

Já a defesa das denunciantes diz que, na realidade, Saul “tem prazer em violentar mulheres” e que ele “é a personificação do patriarcado em tudo aquilo que há de mais nocivo às mulheres. Talvez o título adequado a Saul seja ‘o predador de todos os predadores’”, registrou Gabriela ao recorrer da decisão de retirada da medida protetiva de suas clientes.

Meninas não escolhem ser exploradas 

Tanto casos de abuso quanto de exploração sexual de crianças e adolescentes são violências punidas pela legislação brasileira. Ter relação sexual com menor de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, com pena de oito a quinze anos de reclusão. Se a vítima tiver entre 14 e 18 anos e o ato envolver algum tipo de troca — que pode ser dinheiro ou outra recompensa, como um brinquedo, uma roupa ou até comida —, ficará caracterizado o crime de exploração sexual de criança ou adolescente. Nesses casos, as penas vão de quatro a dez anos de prisão. 

Mas, apesar dos mecanismos legais para reprimir esses crimes, os dados oficiais mostram que a violência sexual no Brasil é uma questão estrutural e que casos como os descritos nesta reportagem ocorrem com uma frequência estarrecedora. 

Apenas no segundo semestre de 2020, o Disque 100, serviço brasileiro que recebe denúncias sobre violações de direitos humanos, registrou 921 denúncias de exploração sexual e 3.346 denúncias de abuso sexual físico contra crianças e adolescentes. A dimensão da tragédia é, na verdade, muito maior, considerando a estimativa de que apenas 10% das situações de abusos e de exploração sexual infantojuvenil são notificadas.

Discursos morais, preconceitos, machismo e falta de acolhimento silenciam vítimas de violência sexual, que muitas vezes são culpabilizadas enquanto seus agressores seguem impunes, diz a socióloga Graça Gadelha, especialista em direitos infantojuvenis. Ela analisa que a sociedade tende a culpar mais as vítimas e suas famílias do que responsabilizar a falta de políticas públicas, por exemplo. “As desigualdades sociais são impulsionadoras de violações de direitos, que por vezes se iniciam na infância”, comenta. 

A pobreza e a vulnerabilidade social são os principais fatores que levam crianças e adolescentes para esquemas de exploração sexual, segundo Graça. “Existem ainda outras questões culturais, de contextos sociofamiliares, de situações de abandono — inclusive por parte de políticas públicas, como acesso ao ensino, a serviços de saúde, ao lazer, à cultura. São vários aspectos que confluem para a entrada precoce de meninos e meninas em situações de violência sexual”, analisa. 

E, para os meninos e meninas que estão sendo explorados sexualmente, é muito difícil romper o ciclo de violência, diz a procuradora do estado de São Paulo e doutora em direito penal Ana Zomer. “Elas precisam romper várias barreiras, inclusive psicológicas. Infelizmente, não é incomum que a vítima seja desmerecida quando vai fazer a denúncia e/ou procura serviços onde deveria ser acolhida”, comenta.

Considerar que um menino ou uma menina escolheu estar em situação de exploração sexual é ignorar os contextos de múltiplas vulnerabilidade dessas pessoas. “É um pensamento perverso. Muitas são atraídas por propostas sedutoras. Dizem que vão proporcionar uma carreira de modelo, por exemplo. Algumas só descobrem do que se trata quando não existe mais volta.”

Essas promessas atraentes, citadas pela procuradora, podem ser feitas por um intermediário, que age como agenciador em situações de exploração. “Se fica comprovado o envolvimento, essa pessoa também responde criminalmente”, explica Itamar Gonçalves, gerente da Childhood Brasil. “Caso os crimes aconteçam em um estabelecimento comercial, o dono pode responder e a unidade pode ser fechada”, complementa. 

Gonçalves explica que crianças e adolescentes exploradas sexualmente podem acabar introduzindo outros meninos e meninas nos esquemas criminosos. “Isso porque são estimuladas a trazerem a irmã, parentes, amigas e amigos para aumentar os ganhos. Em outras vezes, levam alguém como tentativa de ajudar financeiramente, retribuir um favor ou para se sentirem mais seguras, não ficarem sozinhas nas situações”, explica. Mas nesses casos as vítimas não podem ser responsabilizadas. “O papel do aliciador é do adulto que está se aproveitando da situação. Infelizmente, porque temos uma Justiça machista, a atuação de um adulto que se beneficia e/ou articula esse tipo de situação é muitas vezes normalizada.”

Apenas no primeiro semestre do ano passado, aconteceram 25.469 estupros no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro da Violência. Desse total, 17.287 foram estupros de vulneráveis. Em 2019, 57,9% das 66.123 vítimas de estupro tinham no máximo 13 anos. Dentro desse percentual, a maioria tinha entre 10 e 13 anos. Mais de 18% tinham apenas entre 5 e 9 anos. 

Em sua maioria, as vítimas de estupro e de estupros de vulneráveis são do sexo feminino (85,7%). No caso dos meninos, esse tipo de violência acontece com maior frequência aos 4 anos, enquanto, entre as meninas, aos 13. Os autores são quase sempre conhecidos da família (84,1% dos casos) ou pessoas de confiança.

“São pais, parentes, amigos próximos. Algumas silenciam para evitar rupturas familiares. E, quando falam, são desacreditadas por familiares, às vezes a própria mãe”, comenta a procuradora e criminalista Ana Zomer. 

A rede de acolhimento é falha. “É comum que vítimas de estupro sejam indagadas sobre que roupa estavam usando no momento do crime, como se isso justificasse a violência. Esse tipo de tratamento faz com que elas carreguem um sentimento de culpa muito grande, que as mantém presas em ciclos de violência”, explica Ana. 

“Faltam tratamentos de saúde, prevenção para DSTs [doenças sexualmente transmissíveis], atendimento psicológico. Quando se trata de crianças e adolescentes, em sua maioria elas não têm acesso a oportunidades que poderiam favorecê-las. Ou seja, sofrem a violência e continuam sendo vítimas de uma série de situações danosas”, adiciona a socióloga Graça Gadelha. 

Outro Lado

A reportagem procurou Lúcia Amélia Inácio, apontada como secretária pessoal de Klein na Casas Bahia, que teria sido responsável pelo aliciamento e pagamento de meninas — segundo as denúncias. Buscamos contato em quatro telefones diferentes, na portaria de sua residência e notificando o interesse em ouvi-la. Até a publicação desta reportagem, não recebemos nenhum retorno.

Também foi procurado o escritório Faria Advogados e Consultores de Empresas, que já representou Samuel Klein quando ele era vivo e no espólio do patriarca, em processos de indenização por danos morais contra o empresário. Por telefone, um dos sócios, João da Costa Faria, afirmou que “não quer falar sobre esses assuntos” e que não representa mais Samuel. 

Em relação ao processo movido por Francielle Wolff Reis, que alega ter sofrido abusos sexuais do empresário quando tinha entre 14 e 15 anos, Faria declarou que “se trata de uma estelionatária, alguém que não tem o que fazer e está desrespeitando a memória do Samuel”. Foram enviadas por e-mail perguntas ao escritório, e por sete dias a reportagem permaneceu à disposição para receber as respostas. Até a publicação, não houve outras manifestações. 

A reportagem buscou ouvir também o advogado João Rossetti, que, segundo denunciantes e áudio gravado por elas (com a voz dela, dizem), afirmaram ter feito acordos de indenização financeira com mulheres que alegam ter sido abusadas por Samuel, em 2010. Por telefone, Rossetti disse que não se manifestará além do que consta nos processos, pois não representa mais Samuel Klein. 

Michael Klein, filho e braço-direito de Samuel Klein na gestão da Casas Bahia até 2010 e acionista majoritário da Via Varejo, também foi procurado. Por meio de sua assessoria, informou que não se manifestará sobre as perguntas da reportagem. 

A Via Varejo, empresa que controla a marca Casas Bahia, respondeu em nota reproduzida integralmente abaixo. 

“Esclarecemos que a família Klein nunca exerceu qualquer papel de controle na Via Varejo, holding constituída em 2011 para gerir as marcas Casas Bahia, Pontofrio, Extra.com.br e Bartira. A holding, que até agosto de 2019 fazia parte do Grupo Pão de Açúcar, é hoje uma corporação independente, sem bloco controlador, como pode ser conferido no link. Dessa forma, não comentamos sobre casos que possam ter ocorrido em período anterior ao da atual gestão da empresa.

A Via Varejo é muito clara em seus valores e princípios de conduta. Repudiamos veementemente todo e qualquer tipo de assédio, práticas ilegais e atos discriminatórios em nossas dependências, incluindo nossa sede administrativa e nossas lojas. Nosso código de ética e conduta, distribuído para todos os nossos colaboradores, é o guia que regula todas as ações da empresa, sendo sua aplicação acompanhada por auditorias independentes.

Somos ainda signatários de diversos acordos e compromissos que oferecem parâmetros institucionais para nossas estratégias de responsabilidade corporativa, como, por exemplo: Princípios de Empoderamento das Mulheres, elaborado pela ONU Mulheres; Coalizão Empresarial de Luta pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, liderado pela Avon, ONU Mulheres e Fundação Dom Cabral; Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de Gênero, liderado pelo Instituto Ethos, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e Institute for Human Rights and Business (IHRB), com apoio do Movimento Mulher 360 e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).”

*os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas ou para proteger nomes de fontes consultadas nos processos



source https://apublica.org/2021/04/as-acusacoes-nao-reveladas-de-crimes-sexuais-de-samuel-klein-fundador-da-casas-bahia/

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