por Anna Rangel
O presidente norte-americano Joe Biden planeja reconhecer neste sábado (24) que houve genocídio na Armênia em 1915, perpetrado pelos turcos. A data marca o dia da memória dos massacres em série, que ceifaram a vida de 1,5 milhão de armênios no contexto da dissolução do Império Otomano e da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
A informação de que Biden classificaria as atrocidades cometidas à época como genocídio, ou seja, como uma política deliberada de extermínio da população armênia, foi antecipada nesta quarta (21) pelo jornal “The New York Times“. A declaração foi uma promessa de campanha do democrata durante a corrida presidencial de 2020 e resgata o uso do termo pela primeira vez em 40 anos – o último a usá-lo foi Ronald Reagan, em 1981.
O reconhecimento vem na esteira de uma carta bipartidária, assinada por senadores de matizes ideológicos antagônicos que vão de Bernie Sanders, democrata do estado de Vermont, a Marco Rubio, republicano da Flórida. “Escrevemos hoje para pedir a você que reconheça oficialmente a verdade do Genocídio Armênio”, diz a correspondência, de 19 de março.
Entre os 29 países que reconhecem a política de perseguição dos otomanos estão Argentina, Brasil, Alemanha, Itália, Rússia, Síria, Suíça e Uruguai.
Identidade e diáspora
A admissão do genocídio é um dos pilares da política externa da Armênia contemporânea, observa o historiador Heitor Loureiro, pesquisador associado do Gepom (Grupo de Pesquisa e Estudos sobre o Oriente Médio).
“As relações entre [a Armênia e Turquia] ficaram suspensas por décadas, enquanto a Armênia foi parte da União Soviética. Em 1991, os dois países restabeleceram relações, congeladas de novo em 1993, quando a Turquia fechou suas fronteiras com a Armênia em solidariedade ao Azerbaijão na Guerra de Nagorno-Karabakh”, explica Loureiro, que estudou o genocídio em seu doutorado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista).
O chanceler armênio, Ara Aivazian, saudou a possibilidade de reconhecimento como “uma baliza moral para muitos países”. “Não é uma questão de Armênia e Turquia, mas uma obrigação de se reconhecer e condenar genocídios passados, presentes e futuros”, afirmou. Para seu contraparte turco, Mevlut Cavusoglu, “se os EUA querem danificar as relações [com a Turquia], a decisão é deles”.
Os EUA abrigam uma bem articulada comunidade armênia na Califórnia, cujos nomes mais proeminentes defendem o reconhecimento oficial do genocídio. Entre as celebridades norte-americanas que já falaram publicamente sobre o assunto estão a empresária Kim Kardashian, a cantora Cher – cujo nome de batismo é Cherilyn Sarkisian – e o músico Serj Tankian, vocalista da banda System of a Down.
“Na diáspora, o genocídio ganhou um espaço muito importante como traço fundador de uma ‘identidade armênia‘ e de algo que conecta armênios em todo o mundo em torno de um ‘ser armênio’, que passa pela rememoração do genocídio e pela luta por reconhecimento”, afirma o pesquisador.
O genocídio
A partir de 1915, o Império Otomano impôs uma política de violência e deportação forçada de armênios étnicos que viviam na porção leste da Anatólia, península que abriga a atual Turquia. Ali, a população era composta em sua maioria por muçulmanos curdos e cristãos armênios, ambos de identidade pouco identificada com os turcos.
No início da I Guerra, eram 2,5 milhões de armênios otomanos, concentrados em cidades de maioria da mesma etnia. Também havia grupos além das fronteiras imperiais, já em território controlado pela Rússia. A partir do século 19, o grupo passa a ser visto pelo governo como um possível foco de separatismo e instabilidade dentro do império. Entre 1894 e 1896, ocorrem os primeiros massacres.
Naquele contexto, o grupo denominado “Jovens Turcos” dominava a política otomana que marcou os últimos anos de decadência do império – dissolvido após o fim da I Guerra, em 1923.
Em 24 de abril de 1915, o governo ordena a prisão de 250 intelectuais e políticos armênios em Istambul, ocasião que marca o início do genocídio. Até 1923, os armênios foram considerados ameaça à segurança nacional e deportados para as regiões mais afastadas e desérticas do Império, na atual Síria.
Os poucos que sobreviviam à jornada eram abrigados em campos de concentração. Estimativas conservadoras põem na faixa de 600 mil a um milhão de armênios mortos apenas em decorrência das políticas de expulsão. As terras e propriedades armênias foram ocupadas por turcos e outros refugiados muçulmanos, e quem permaneceu foi forçado a se converter ao Islã.
À época, jornais ocidentais reportavam o que ocorria nas franjas do Império Otomano. O norte-americano “The New York Times” já manchetava em julho de 1915 “massacre no atacado” e, em novembro de 1916, uma declaração do coronel do Exército otomano Halil Bey sobre um plano turco para “exterminar a raça armênia”.
O diário nova-iorquino já classificava então os massacres dos armênios como “organizados pelo governo” e “sistemáticos”. Essa também foi a constatação de Henry Morgenthau Sr, embaixador dos EUA no Império Otomano: “uma campanha de extermínio da raça”, afirmou.
O resultado foi que, em 1922, restavam apenas 387 mil armênios dentro das fronteiras imperiais, segundo levantamento do Centro de Estudos de Genocídio e Holocausto da Universidade de Minnesota (EUA).
“As causas para o genocídio são variadas, mas passam por entender a ascensão do nacionalismo turco e a eliminação dos elementos não turcos do Império e o reassentamento de populações muçulmanas em áreas antes habitadas por armênios”, observa Loureiro. “A presença de armênios em Impérios vizinhos, o russo e o persa, serviu como desculpa para o governo otomano legitimar os morticínios, tendo como pretexto a presença de armênios em batalhões russos que lutavam contra o Império Otomano no Cáucaso.”
O genocídio jamais foi reconhecido pela Turquia, que admite amplas violações durante o período, mas afirma que não houve uma política sistemática de Estado. Apenas em 2014 o governo de Ancara ofereceu condolências formais ao povo armênio.
Saiba mais
O pesquisador Heitor Loureiro indica títulos para quem quer entender o genocídio
A um Fio da Morte: Memórias de um Sobrevivente do Genocídio Armênio
Hampartzoum Chitjian, 571 págs., R$ 40
Editora Autonomia Literária, 2019
Fé no Inferno
Santiago Nazarian, 376 págs., R$ 46,74
Companhia das Letras, 2020
A História do Embaixador Morgenthau
Henry Morgenthau, 324. págs, R$ 38,46
Paz & Terra, 2012
Genocídio armênio: negacionismo, silêncio e direitos humanos
Heitor Loureiro, Maria Luiza Tucci Carneiro e Carlos Eduardo de Abreu Boucault (org.), 364 págs., R$ 50
Editora Humanitas, 2019
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