Foi por meio de uma prima que Vanessa Carvalhal soube que Samuel Klein distribuía dinheiro na sede da Casas Bahia. Na época, ela morava no bairro de Santa Paula, em São Caetano do Sul (SP), município onde está sediada a empresa, e se impressionou com a notícia. Klein e a Casas Bahia são até hoje uma espécie de patrimônio da cidade do ABC paulista. Ela conta que pensou se tratar de um simples ato de caridade. Decidiu acompanhar a prima até a empresa quando tinha apenas 12 anos. Subiu até o andar da presidência e aguardou para falar com o lendário empresário. “Ele se apresentou, me deu um selinho, apalpou o meu peito, a minha bunda. Depois ele jogou um dinheiro em cima da mesa, perguntou onde eu morava e pediu para eu ir embora”, relembra Vanessa em entrevista à Pública. Ela conta que foi embora sem entender muito bem o que havia acontecido.
Àquela altura, Vanessa ainda não entendia que estava vivendo a primeira de uma série de situações de violência sexual que se estenderia da sua pré-adolescência ao início da vida adulta, em um período que durou mais de dez anos. Ainda segundo seu relato, esse foi seu primeiro contato com o esquema de recrutamento, violência e exploração sexual de crianças e adolescentes que teria sido comandado por Samuel Klein durante décadas, descritos na primeira reportagem deste especial — Pai e filho investigados por agressões sexuais.
Os episódios de exploração sexual geralmente começavam, assim como ocorreu com Vanessa, na própria sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul. Da forma como apurado pela reportagem por meio de entrevistas, análise de documentos, imagens, vídeos, investigações e processos, Samuel oferecia dinheiro e presentes para atrair garotas menores de idade em situação de vulnerabilidade socioeconômica, que então eram submetidas a situações cada vez mais graves de exploração sexual. Após os contatos na sede, eram chamadas para participar de festas e orgias em imóveis do empresário. O esquema contava com funcionários próximos de Samuel, que organizavam as viagens e festas e faziam pagamentos às meninas e familiares, inclusive por meio de produtos da Casas Bahia.
Assim como ocorreu com outras meninas, segundo depoimentos dados à reportagem, Vanessa viu as situações de violência sexual escalarem a partir do segundo encontro com Samuel.
“[No primeiro dia] Ele pediu: ‘Volta aqui na quarta-feira’”, disse Vanessa, imitando o sotaque polonês de Samuel. “Eu voltei. Foi aí que aconteceu e eu fui pro quartinho com ele”, afirma. O quartinho era um anexo mantido por Samuel ao lado de sua sala, na sede da Casas Bahia. Segundo as entrevistadas ouvidas pela reportagem, lá havia uma cama hospitalar. E foi nela que Vanessa, uma menina virgem de apenas 12 anos, conta ter sido violentada sexualmente por Klein, à época aproximadamente sessenta anos mais velho. “E aí depois não parou mais, né? Comecei a ir lá toda semana, quase todos os dias pra pegar o dinheiro. Tinha vezes que nem tinha relação sexual, ele só dava o dinheiro”, lembra. Ela diz que passou a ir ao local acompanhada de um grupo de “cinco ou seis” amigas, algo que, segundo ela, era incentivado financeiramente por Samuel Klein. E que frequentemente via outras meninas à espera de serem recebidas pelo empresário.
A história contada por Vanessa segue o roteiro das histórias de outras adolescentes e mulheres que teriam sido envolvidas no arranjo de Samuel Klein. Ela ganha contornos mais trágicos, porém, porque ela foi apenas uma das quatro meninas (hoje mulheres adultas) da família Carvalhal atraídas ao esquema. Duas delas concordaram em falar revelando sua identidade. As histórias de Vanessa e sua irmã Karina ajudam a dimensionar os prejuízos físicos e psicológicos causados pela violência sexual que alegam ter sofrido e também trazem à luz os métodos do esquema do empresário.
Samuel teria chamado a filha de 6 anos de uma de suas vítimas
A primeira viagem de Vanessa foi para Santos, no litoral sul de São Paulo, entre 1989 e 1990. Ela inventou uma desculpa para a avó, com quem morava, e foi com uma amiga ao litoral paulista. “Eu comecei a ir primeiro no Universo Palace”, relembra. O Universo Palace é um edifício à beira-mar localizado no bairro de José Menino, em Santos (SP), onde Samuel possuía alguns apartamentos.
Ela diz ter se impressionado com a quantidade de garotas que encontrou no prédio em sua primeira viagem. “Eram muitas, muitas meninas. Cerca de 40, todas da minha idade. Ele tinha uma lancha, não tinha o iate ainda. A gente atravessava a rua do Universo Palace de mãos dadas, pegava aquele bote e ia um pouco de meninas de cada vez para entrar na lancha dele. Quando chegava na lancha, ele parava em alto-mar e falava pras meninas qual ia pro quarto no convés da lancha com ele e passávamos horas lá. Eram sempre quatro a cinco meninas, uma em cada canto do corpo dele”, relata. Na mesma viagem, ela conta ter ficado assustada porque foi a primeira vez que viu o empresário nu. “Ele entrou numa banheira que eu estava dentro com as minhas amigas. Aí você vê mesmo a merda que você fez e não tem mais como voltar e já era. Ele saiu de lá, tomou banho, foi pro quarto e chamou a gente. Era estranho porque você tinha que se misturar com outras meninas que você nem conhecia, não tinha intimidade. E era aquela coisa, uma no peito, uma na boca…” Ela interrompe o relato com uma interjeição de nojo. “E você não podia sair. Tinha que ficar da sexta até o domingo, sem sair. Era triste, eu chorava lá dentro.”
“Mas, quando eu voltei, me acostumei com aquilo. Era a mesma coisa que acontecia com o escritório. Aquilo passa a fazer parte da vida. A partir daí, ele ligava pra mim nos fins de semana: ‘Ah, não, eu quero Vanessa esse fim de semana’. Ele falava isso e eu sentia que tinha que ir”, afirma Vanessa Carvalhal, hoje com 46 anos. Ainda na infância, ela diz que se sentia constrangida a aceitar os convites por causa dos presentes constantes em dinheiro e produtos da Casas Bahia que recebia do empresário e também por laços emocionais que foram se criando. “Parece que a gente tem um sentimento de dívida com ele, sabe? Um sentimento de gratidão. É estranho”, reflete.
Anos mais tarde, Samuel adquiriu uma casa no canto da praia da Enseada, já próximo à estrada da praia de Pernambuco e ao morro da Península, em uma localidade conhecida como Tortuga.
Lá, segundo os relatos das irmãs Carvalhal e de outras mulheres ouvidas pela reportagem, as festas passaram a contar com episódios de violência sexual cada vez mais graves. Na casa à beira-mar, Samuel promovia festas temáticas. O recrutamento das meninas e o transporte ficavam a cargo de uma assistente pessoal do fundador da Casas Bahia, Lúcia Amélia Inácio, contratada por ele como enfermeira nos anos 1970 e depois deslocada ao posto de braço-direito de Samuel, citada, inclusive, em sua biografia autorizada. Segundo as mulheres ouvidas, Lúcia procurava as meninas em casa, por telefone ou pessoalmente para contatá-las quando Samuel desejasse, e fazia pagamentos regulares de cestas básicas, dinheiro, ou vales assinados para que as meninas retirassem produtos nas lojas de Klein. Ainda segundo os relatos, Lúcia cuidava também do transporte das meninas, organizando as que iam à praia de ônibus ou no carro de Samuel, e montava as listas de presença que ficavam com os seguranças na porta dos imóveis do empresário.
Mas, segundo Vanessa, o papel de Lúcia ia além. “Ele [Samuel] fazia desfiles com as meninas lá na casa do Tortuga, e a Lúcia era jurada. Depois ele dava geladeira, microondas [para quem ganhava]”, revela. Segundo o relato das irmãs, Samuel fornecia os biquínis às meninas convidadas para a sua casa em Guarujá e as colocava para desfilar em volta da piscina. O empresário observava e julgava o desfile, ao lado de Lúcia, e as campeãs geralmente recebiam presentes mais valiosos, como geladeiras e outros eletrodomésticos. Segundo Vanessa, aquilo insuflava o sentimento de competição entre as meninas. “Era uma disputa que você não acredita”, relembra. Há relatos que afirmam que Samuel por vezes distribuía dinheiro na porta da casa de Guarujá e acabava recrutando ali mesmo as meninas que se aproximavam.
Segundo relatos, após momentos como esses, Samuel levava as meninas a um cômodo no fundo da casa que ele apelidava de “motelzinho” e repetia as sessões de abuso sexual em grupo com as garotas, muitas das quais menores de idade, como Vanessa. O tal “motelzinho” foi citado por outras mulheres em relatos e declarações de próprio punho juntados a processos judiciais e inquéritos criminais aos quais a Pública teve acesso. Vanessa chegou a levar sua irmã do meio à mesma casa. Ela não quis dar entrevista, mas confirmou à reportagem as mesmas práticas atribuídas a Samuel pelas irmãs. A prima de Vanessa, que a levou para conhecer Samuel, também não quis dar entrevista.
No entanto, as piores situações, segundo Vanessa, ocorreram em outro imóvel de Samuel Klein, localizado no município de Angra dos Reis. Ela conta que muitas meninas partiam de helicóptero da sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, o que é corroborado por ex-funcionários da empresa.
“Lá era nojento, era sujo. Ele começou a avacalhar”, relembra Vanessa. Ela relata que nas festas em Angra já havia bebidas alcoólicas, o que era mais raro de ver nas festas anteriores, e que começou a crescer muito a rotatividade das mulheres e meninas no quarto do empresário na casa e no iate. “A gente tomava o café da manhã e saía cedo de iate. Íamos de seis a oito meninas no iate e aí ele pedia para parar em alto-mar, escolhia quatro meninas lá mesmo para ir para um quarto no iate. As mais novas iam primeiro. As mais velhas iam no fim. Eu já era das mais velhas [com 15 anos], então, quando você chegava, o quarto já tava nojento, podre. O cheiro era insuportável. Depois de tudo, ele dormia. E eu queria virar Jesus Cristo para sair andando pela água. Porque ele dormia ali e a gente tinha que ficar esperando, sem comer nada. Lembro de ficar só tomando suco Del Valle”, relembra Vanessa. Ela diz que o empresário chegava a distribuir remédios para enjoo para algumas meninas.
Vanessa conta que passou cinco anos ininterruptos indo às festas nos imóveis de Samuel e comparecendo à sede da Casas Bahia. Interrompeu os contatos quando engravidou de um namorado, aos 17 anos. “Eu fui lá falar que eu estava grávida do namoradinho da época, o pai da minha filha, que arrumei aqui na praia”, diz, durante a entrevista concedida em Praia Grande (SP). “Ele [Samuel] perguntou se eu queria tirar [abortar], disse que ia procurar. Aí eu falei que não. E ele: ‘Então você não precisa voltar mais’. Aí eu fiquei um bom tempo sem ir. E depois ele me chamou de volta. Eu tinha uns 23, 24 anos”, conta. Ela diz que dois episódios a fizeram abandonar as visitas ao empresário. Em um deles, em uma visita ao apartamento de Klein na Ilha Porchat, em São Vicente, viu uma menina sentada à mesa com ele que aparentava ter a idade de sua filha, “uma menina de 6 anos”, segundo ela.
O estopim final também foi relacionado à sua filha. “Ele me procurou para eu levar a minha filha [às festas]”, afirma. Vanessa conta que estava trabalhando em uma unidade da Casas Bahia do Jardim Ocean, bairro de Praia Grande, em um emprego arranjado pelo dono da rede. Ela já estava, na época, procurando advogados para pedir indenização ao empresário por danos morais. “Quando eu tava trabalhando na Casas Bahia, entre 2007 e 2009, ele ligou pedindo para eu levar a minha filha [de 6 anos] para ele. Se eu levasse e não entrasse na causa junto com elas [as demais envolvidas no processo judicial], ele me prometeu um cargo de gerente ou na auditoria”, relata. Ela recusou e acionou o empresário na Justiça, onde conseguiu uma indenização financeira, como veremos adiante.
Mas o drama da família Carvalhal ainda teria outro capítulo: o da irmã caçula de Vanessa, Karina Carvalhal.
Abusada aos 9 anos, Karina se tornou dependente química
Karina conta que conheceu a violência sexual ainda mais nova que Vanessa, aos 9 anos. Assim como a irmã, ela relatou à reportagem que sofreu seu primeiro abuso sexual na sede da empresa. As visitas a Samuel levaram a menina a abandonar os estudos na Escola Estadual Eda Mantoanelli, no bairro Santa Maria, em São Caetano do Sul, ainda na terceira série, como mostra o seu histórico escolar. Para ir à Casas Bahia ou às festas de Samuel, Karina tinha que matar aula, mas não podia voltar para casa. “Como meu pai me batia muito, eu ia matar aula e tinha que ficar em algum lugar”, conta a mulher de 40 anos, que hoje trabalha como frentista em um posto de gasolina. Sem escolha, acabou ficando na rua para matar o horário da aula após as visitas a Samuel Klein. E foi nesses intervalos que ela se tornou usuária de crack e dependente química por dez anos. “Ia lá buscar dinheiro com ele [Samuel] pra ficar usando crack”, relata.
A partir de então, Karina conta que o ciclo de violência se repetiu nos mesmos locais em que ia acompanhada das irmãs: a sede da empresa e os imóveis no litoral paulista e em Angra dos Reis. “Eu ia duas, até três vezes na semana lá. Depende da situação em que eu estava. Às vezes, eu estava drogada e queria dinheiro. Às vezes, eu estava com fome e também ia. Ele gostava bastante de mim, acho que é porque eu era mais nova. Ele gostava de virgenzinhas. Era o nosso caso”, conta. “Enquanto a gente era novinha, menininha, perdendo a virgindade com ele, ele nunca usou camisinha. Depois que a gente ficou mais velha ele passou a usar.” Ela repete, ao lado da irmã, os mesmos relatos de violência sexual. E diz que ainda aos 9 anos esteve submetida a sessões de sexo grupal com o empresário polonês, no mesmo padrão. “Eram quatro a cinco meninas, uma em cada canto do corpo dele”, resume.
Karina relata que passou um total de dez anos comparecendo às sessões de exploração sexual promovidas por Samuel Klein. “Fui dos 9 até os 19 anos, até eu engravidar. Eu engravidei na rua e cheguei lá pra pedir ajuda depois. Aí ele me cortou. Ele passou a me ligar, depois que eu me casei”, afirma. A gravidez marcou o fim das visitas a Samuel e também o abandono do crack. A relação com Samuel criou forte dependência financeira, já que durante toda a adolescência a menina se sustentou com o dinheiro que ganhou do empresário e com alguns presentes posteriores. Sem estudos, não desenvolveu a trajetória profissional que desejava.
A permanência de uma condição de vulnerabilidade faz com que as vítimas continuem presas a esquemas de violência sexual, explica Graça Gadelha, socióloga e especialista em direitos da infância. “Não é uma escolha nem uma decisão delas. É uma contingência de vida”, afirma. Ela diz ainda que a vulnerabilidade das vítimas nem sempre se resume à questão financeira. “Existem vários fatores que atraem meninas para esquemas de exploração sexual, não apenas a pobreza e o apelo das recompensas financeiras. É preciso analisar contextos familiares, sem culpabilizar as famílias, fatores culturais e sociais, situações de abandono também pelas políticas públicas e pelo Estado. Na maior parte das vezes, esses fatores se acumulam.”
Os episódios de violência abalaram a família Carvalhal. Karina se ressente da morte precoce do pai, o taxista Geraldo Lopes Carvalhal Júnior. Quando soube que as três filhas haviam sido exploradas sexualmente, o pai desenvolveu um vício em bebidas alcoólicas. Ao ver os presentes que as filhas traziam para casa, como cestas básicas e produtos da Casas Bahia, ele passou a agredi-las fisicamente ao cobrar explicações da origem dos presentes. “Agora que tenho filho, vejo o que ele passou com três meninas. Ele se matou praticamente. Ele enfartou com 49 anos, começou a beber muito, ficou indignado. Ele dizia: ‘Minhas meninas, minhas meninas’ e colocava a mão na cabeça.” Ela diz que o pai tentou agredir funcionárias de Samuel Klein que, segundo seu relato, participaram do esquema e invadir a sede da empresa para cobrar satisfações, mas não teve sucesso.
Karina conta que acabou levando outras meninas. “Quando você levava mais meninas, ele ficava mais bonzinho. Quando ele perdia o interesse, a gente levava uma menina mais nova pra encantar mais ele, entendeu? Ele dava mais dinheiro pra gente, poderia pegar mais coisas: um armário, uma TV. Aí a gente estourava”, diz Karina.
Mesmo que as meninas fossem envolvidas de certo modo na manutenção do ciclo de exploração, é importante ressaltar que “todas eram vítimas”, afirma a socióloga Graça Gadelha. “Não se pode atribuir culpa porque elas eram induzidas a trazerem outras meninas por medo ou por pressão”, diz. Graça alerta ainda para as dinâmicas dos casos de violência sexual, sempre muito semelhantes. “As mulheres deixam de ser pessoas para se tornarem mercadorias, meros objetos nas mãos de homens poderosos.”
O drama da família Carvalhal também atingiu uma vizinha. Ela concedeu entrevista sem revelar sua identidade.
“Eu disse que era virgem e ele: ‘Samuel adora menina virgem’”
Maria* não sabe precisar o ano em que conheceu Samuel Klein. Diz somente que foi entre 1991 e 1992, quando tinha “uns 11, 12 anos”. Em uma declaração de próprio punho, escrita para um processo judicial, ela diz que o ano era 1991. “Lembro que ele me perguntou se eu era virgem, eu disse que era e ele: ‘Samuel adora menina virgem’”, recorda. “Ele acariciou meu rosto, meu cabelo, colocou a mão no meu peito e falou: ‘Já tem peitinho, já tem peitinho’. Eu me recordo que ele chamou outra moça que estava lá e, enquanto ele acariciava, ele pedia para a moça chupar o peito dele. Eu fiquei sentada no colo dele, tudo nesse mesmo dia.” Maria conta que a cena aconteceu no mesmo quarto ao lado do escritório de Samuel Klein citado por outras mulheres entrevistadas pela reportagem. Em outras visitas à sede da rede varejista, Maria sempre encontrava outras meninas esperando para serem recebidas pelo dono da empresa. “A gente chegava lá e era coisa de ter seis, sete meninas [esperando].”
Após cerca de dois meses visitando a sede da Casas Bahia regularmente, Maria foi chamada para ir para a praia pelo próprio Samuel Klein. “Ele disse: ‘Vamos, menina, para a praia?’. Eu disse que não sabia como ir, tentei arrumar uma desculpa. Ele ofereceu o dinheiro do ônibus, ou a gente poderia ir com o motorista também, se a gente não tivesse como ir.” De carro, ela conta que foi levada até o apartamento de Samuel no edifício Universo Palace. “Era um apartamento grande com vários quartos. Não lembro se era separado por idade, mas tinha um pouco [de meninas] em cada quarto. Aí foi o meu primeiro contato mais íntimo com ele. Eu ainda era virgem na época. Ali começou a brincadeira com as mãos nas partes íntimas. Eu falava pra ele que doía. Muitas vezes ele estava fazendo as coisas comigo, mas tinha mais duas, três no mesmo quarto. Era um harém”, relembra. “Rolava de tudo. Na hora que ele tava praticando o ato, eu simplesmente fechava o olho e fazia de conta que eu estava sentindo prazer, porque eu não queria ver”, relata.
Ela diz que se sentiu atraída pelo dinheiro, que usava para comprar “coisas bobas” como canetinhas, um “shampoo cheiroso” ou o “primeiro desodorante roll-on”, mas conta que já chegou a ajudar os pais com as quantias dadas por Samuel, além de ter recebido produtos da Casas Bahia. “Foi muito rápido. A primeira vez você se assusta, a segunda também, mas aí a forma que as coisas eram conduzidas, os presentes, você via outras meninas e, quando você ia ver, você já tava lá”, diz. “Eu acabei levando uma prima minha. Da mesma forma que eu fui atraída, eu levei uma prima. Hoje eu tenho consciência de como tudo começou: ‘Ah, você não tem uma amiguinha? Traz uma amiguinha diferente que eu te dou um presentinho. Não esquece de trazer ela, já vou te dar um adiantamento agora’. Aí ele dava dinheiro.”
Depois do Universo Palace, Maria também foi a outros imóveis do empresário, como o apartamento na Ilha Porchat, em São Vicente, e a casa de Guarujá, à beira da praia da Enseada. Ela conta que, nesse imóvel, viu as situações de abuso sexual aumentarem. Foi lá que, em 1994, ela viu Samuel organizar uma festa do Havaí. “Nesse dia tinha ônibus esperando para entrar na casa [de Guarujá], ônibus de meninas indo pra festa. Muitas meninas”, relata. Ela diz que Samuel forneceu as fantasias havaianas naquele dia. A Pública teve acesso a um registro em vídeo da festa havaiana ocorrida em 1994. As irmãs Carvalhal reconheceram a prima presente nas filmagens.
Maria confirma que na casa de Guarujá eram promovidos concursos em que as meninas presentes desfilavam de biquíni para Samuel e que as mais bem avaliadas recebiam recompensas em dinheiro e eram levadas para o “motelzinho”.
A pior lembrança de Maria também é da casa de Angra dos Reis. “Saímos de helicóptero da sede de São Caetano e fomos até a casa. Me lembro de um quarto muito grande. Aquele dia, ele escolheu ficar comigo o tempo inteiro. Aconteceu de tudo. Era eu e mais três meninas que eu conheci lá”, recorda. Ela diz que a sessão seguiu o padrão de ocasiões anteriores: as meninas espalharam-se pelo corpo de Samuel e iam obedecendo aos comandos dele. Um fato, porém, a marcou: foi a primeira vez que a sessão incluiu a penetração vaginal. Anos mais tarde, já adolescente, ela se lembrou desse dia quando teve a primeira relação sexual com um namorado. “Me marcou muito porque eu não senti dor, não senti nada [com o namorado]. Me lembrei muito daquelas situações e comecei a sentir nojo. Já vi uma menina vomitar [com o Samuel]. Era um monte de menina fazendo coisas ao mesmo tempo. Aquilo começou a me dar nojo”, relembra.
Os episódios deixaram marcas: foram cerca de cinco anos de visitas frequentes a Samuel. Hoje na casa dos 40 anos, já mãe, Maria conta que faz acompanhamento psicológico por conta de uma depressão. Diz que teve que lidar por anos com a queda de cabelo causada por crises de alopecia areata, doença autoimune muitas vezes desencadeada por estresse. Relata que teve muitas dificuldades nas relações sexuais posteriores com outros parceiros e que foi chamada de prostituta por pessoas próximas que sabiam dos presentes em dinheiro de Samuel. “Eu trabalho pra caramba. Uma vez comprei um carro e tive que ouvir de um ex-marido que era presente do Samuel. Tenho quarenta anos e carrego essa culpa até hoje. Principalmente porque a gente acabava praticando indiretamente a mesma coisa, levando outras meninas.”
Grande parte das pessoas que sofrem violência sexual na infância e adolescência permanece presa em um ciclo de violações de direitos que segue até a vida adulta, explica a socióloga Graça Gadelha. “Elas sofrem sucessivas violências que nunca são minimizadas, nem pela escola nem por políticas de assistência social ou pelo sistema de saúde.”
Fotos, documentos e áudios
Karina e Vanessa Carvalhal mostraram materiais que podem comprovar seus relatos. Há um álbum de fotos com Samuel Klein ao lado delas e de outras meninas tanto em sua casa, em Angra dos Reis, como em seu iate. Algumas fotos revelam as meninas abraçadas a Samuel e deitadas em seu iate. Outras mostram as meninas dentro de um ônibus indo viajar e na casa do empresário em Guarujá. Também há declarações de próprio punho delas e de outras mulheres e testemunhas relatando as situações de abuso.
Já adultas, as irmãs acabaram se tornando, assim como outras mulheres, dependentes de Samuel e continuaram a buscar auxílio financeiro com o empresário. Como não conseguiram desenvolver carreiras profissionais, elas contam que algumas das jovens acabaram em situação de prostituição na zona portuária de Santos. As irmãs mostraram à reportagem transferências de carros, vales de doações de cestas básicas da Casas Bahia e até um cheque de R$ 5 mil assinado por Samuel Klein e destinado a Karina.
Outros documentos mostram gravações em áudio feitas na sede da Casas Bahia e no escritório do antigo advogado de Samuel Klein, João Rosetti Riva. As conversas apontam para negociações em dinheiro entre as irmãs Carvalhal e o staff de Klein.
Em uma das conversas, a irmã do meio de Karina e Vanessa questiona o advogado a respeito dos termos de um acordo financeiro feito antes do processo judicial e faz algumas reivindicações. O advogado nega dizendo: “Põe uma coisa na sua cabeça. Eu não teria que fazer acordo nenhum com vocês, eu fiz um acordo pra ajudar vocês. Por isso que foi feito. Porque seu Samuel cometeu erros ao prestigiar sua irmã [Vanessa] no começo”. A irmã do meio retruca: “Doutor João, você não tá entendendo. Ele não prestigiou a Vanessa ano passado. Ele prestigia todas nós desde que a gente tem 12 anos”, referindo-se aos presentes e pagamentos dados pelo empresário em decorrência dos episódios de exploração sexual. O advogado responde: “Mas acabou, acabou. Você tem que entender que acabou”. Em outros momentos, o advogado reconhece novamente o acordo. Dirigindo-se à irmã de Karina e Vanessa, ele diz: “Eu fiz o acordo da sua irmã [Vanessa], não tive problema nenhum. Com você e com a Karina estou tendo problemas”. Em outro momento da conversa, o advogado pontua à interlocutora: “Você fez um acordo comigo, era pra enterrar lá. Não era pra você ficar me ligando”.
Já em outra conversa, na sede da Casas Bahia, a outra irmã de Vanessa e Karina dialoga com Lúcia Amélia Inácio, assistente pessoal de Samuel Klein. Karina está presente, mas não fala muito. “Lúcia, vim aqui te pedir de novo pra você falar com o advogado, você pode?”, diz a irmã do meio. Lúcia responde: “Agora não dá”. “Ele desmarca com a gente, a hora que a gente vem falar com ele, ele fala que não sabe. O carro da Karina eles não pagaram, agora veio uma cobrança”, responde a irmã. “Quem tá pagando?”, questiona Lúcia. “O Samuel”, respondem as duas irmãs quase em uníssono. “Ahn? Samuel pagando carro?”, questiona Lúcia. “Tá pagando o meu, o dela [Karina] e o da Vanessa”, responde a irmã. “Lúcia, e as cestas básicas ele [Samuel] não vai dar mesmo mais pra gente?”, questiona a irmã. “Eu vou voltar a falar com ele”, responde Lúcia. Tomando consciência da situação de violência, elas resolveram procurar advogados para entrar na Justiça. À época, Samuel já contava com a prescrição em âmbito criminal. Tentaram então partir para a reparação na área cível, em uma ação por danos morais. Quando soube da possibilidade de a história ser publicizada, o empresário fez um acordo judicial. A Pública teve acesso a documentos que atestam a existência do acordo e o pagamento de um valor em dinheiro às mulheres e advogados.
Samuel fez acordos também em outros processos judiciais. Em contato com a reportagem, um advogado que participou de negociações semelhantes e que concedeu entrevista sem se identificar, deu alguns detalhes. “O material não é assim, olha, sutilmente parece algo. Não. Está lá o ato sexual [do empresário com as meninas]”, relata. Ele diz ter sido procurado por mulheres que mostraram provas das festas na casa de Samuel e conseguiu um acordo judicial com o empresário, que estaria arquivado sob sigilo na justiça de Santos (SP).
As irmãs contam que ainda carregam o sofrimento dos abusos vividos na infância. “Isso nos prejudica até hoje”, resume Vanessa. Mesmo com o acordo judicial, elas ainda almejam buscar na Justiça algum tipo de reparação pelas situações de violência sexual que relataram.
Outro Lado
A reportagem procurou Lúcia Amélia Inácio, apontada como secretária pessoal de Klein na Casas Bahia, que teria sido responsável pelo aliciamento e pagamento de meninas — segundo as denúncias. Buscamos contato em quatro telefones diferentes, na portaria de sua residência e notificando o interesse em ouvi-la. Até a publicação desta reportagem, não recebemos nenhum retorno.
Também foi procurado o escritório Faria Advogados e Consultores de Empresas, que já representou Samuel Klein quando ele era vivo e no espólio do patriarca, em processos de indenização por danos morais contra o empresário. Por telefone, um dos sócios, João da Costa Faria, afirmou que “não quer falar sobre esses assuntos” e que não representa mais Samuel.
Em relação ao processo movido por Francielle Wolff Reis, que alega ter sofrido abusos sexuais do empresário quando tinha entre 14 e 15 anos, Faria declarou que “se trata de uma estelionatária, alguém que não tem o que fazer e está desrespeitando a memória do Samuel”. Foram enviadas por e-mail perguntas ao escritório, e por sete dias a reportagem permaneceu à disposição para receber as respostas. Até a publicação, não houve outras manifestações.
A reportagem buscou ouvir também o advogado João Rossetti, que, segundo denunciantes e áudio gravado por elas (com a voz dela, dizem), afirmaram ter feito acordos de indenização financeira com mulheres que alegam ter sido abusadas por Samuel, em 2010. Por telefone, Rossetti disse que não se manifestará além do que consta nos processos, pois não representa mais Samuel Klein.
Michael Klein, filho e braço-direito de Samuel Klein na gestão da Casas Bahia até 2010 e acionista majoritário da Via Varejo, também foi procurado. Por meio de sua assessoria, informou que não se manifestará sobre as perguntas da reportagem.
A Via Varejo, empresa que controla a marca Casas Bahia, respondeu em nota reproduzida integralmente abaixo.
“Esclarecemos que a família Klein nunca exerceu qualquer papel de controle na Via Varejo, holding constituída em 2011 para gerir as marcas Casas Bahia, Pontofrio, Extra.com.br e Bartira. A holding, que até agosto de 2019 fazia parte do Grupo Pão de Açúcar, é hoje uma corporação independente, sem bloco controlador, como pode ser conferido no link. Dessa forma, não comentamos sobre casos que possam ter ocorrido em período anterior ao da atual gestão da empresa.
A Via Varejo é muito clara em seus valores e princípios de conduta. Repudiamos veementemente todo e qualquer tipo de assédio, práticas ilegais e atos discriminatórios em nossas dependências, incluindo nossa sede administrativa e nossas lojas. Nosso código de ética e conduta, distribuído para todos os nossos colaboradores, é o guia que regula todas as ações da empresa, sendo sua aplicação acompanhada por auditorias independentes.
Somos ainda signatários de diversos acordos e compromissos que oferecem parâmetros institucionais para nossas estratégias de responsabilidade corporativa, como, por exemplo: Princípios de Empoderamento das Mulheres, elaborado pela ONU Mulheres; Coalizão Empresarial de Luta pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, liderado pela Avon, ONU Mulheres e Fundação Dom Cabral; Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de Gênero, liderado pelo Instituto Ethos, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e Institute for Human Rights and Business (IHRB), com apoio do Movimento Mulher 360 e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).”
*os nomes foram trocados a pedido das entrevistadas ou para proteger nomes de fontes consultadas nos processos
source https://apublica.org/2021/04/__trashed-3/
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