Um ataque aéreo realizado pelas forças armadas de Mianmar matou cerca de cem pessoas nesta terça-feira na região de Sagaing, no norte do país. Testemunhas dizem que mulheres e crianças são maioria entre as vítimas do bombardeio, segundo informações da rede Radio Free Asia (RFA).
De acordo com as fontes, é difícil estabelecer o número exato de vítimas fatais devido à violência do ataque, que deixou os corpos mutilados. “Vi os corpos de quatro a seis crianças que foram lançadas a cerca de 30 metros do prédio”, disse um morador da área.
Nay Zin Latt, membro do agora extinto partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês), vencedor das eleições presidenciais de 2020 que motivaram um golpe de Estado no ano seguinte, disse que o ataque foi aberto por um jato da força aérea birmanesa que disparou duas bombas contra a multidão. Na sequência, um helicóptero disparou tiros de metralhadora.
“Havia um grupo de moradores locais que estavam discutindo como lidar com questões sociais na comunidade”, disse Lat, relatando que mais de 800 pessoas participavam do evento. “Elas foram bombardeadas pelo ar e alvejadas sem parar com metralhadoras. O ataque durou cerca de 15 minutos”.
O bombardeio ocorreu durante a inauguração de um novo escritório do Governo de Unidade Nacional (NUG, na sigla em inglês), movimento de resistência que estabeleceu um regime paralelo para enfrentar os militares no poder desde o golpe.
Duwa Lashi La, líder do NUG e autodenominado presidente em exercício de Mianmar, usou sua conta no Facebook para condenar a violência da junta. “Hoje lamentamos a perda desses cidadãos de Mianmar e nos solidarizamos com suas famílias. Eram homens, mulheres e crianças que não representavam nenhuma ameaça para os militares de Mianmar”, disse ele.
Em setembro de 2021, o movimento de resistência declarou uma “guerra defensiva” contra a junta. Na ocasião, Lashi La convocou um levante popular contra o governo encabeçado pelo general Min Aung Hlaing e anunciou a criação de grupos armados que chama de “forças de defesa do povo” para enfrentar as forças armadas.
O fortalecimento da resistência gerou uma dura resposta dos militares, que investem sobretudo em ataques aéreos. Embora os alvos do governo sejam os rebeldes, os civis são igualmente vitimados.
A ONG tailandesa Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos (AAPP), que guarda um criterioso registro das mortes causadas pelos militares, confirmou até agora 3.239 vítimas fatais da violenta repressão estatal em Mianmar. Destas, 144 mortes ocorreram em ataques aéreos.
Embargo de armas
A fim de tentar conter o poder de fogo da força aérea birmanesa, a Anistia Internacional publicou em novembro do ano passado um relatório pedindo a interrupção da cadeia de suprimentos que permite a chegada do combustível para abastecer as aeronaves militares.
“Esses ataques aéreos devastaram famílias, aterrorizaram civis, mataram e mutilaram vítimas. Mas, se os aviões não podem reabastecer, eles não podem voar e causar estragos”, disse a secretária-geral da Anistia, Agnès Callamard.
As tentativas de encerrar o fornecimento de armas à junta, porém, têm falhado. Prova disso surgiu em 15 de dezembro de 2022, durante uma celebração do 75º aniversário da força aérea de Mianmar. Nos festejos, os militares apresentaram novos caças e helicópteros comprados de Rússia, China e Paquistão.
A ONG Human Rights Watch (HRW) diz que mais de 40 países, a maioria do Ocidente, decretaram embargos de armas contra Mianmar. No entanto, segundo o analista político e militar birmanês Hla Kyaw Zaw, “obter uma adesão mais ampla é improvável, dados os interesses concorrentes dos países”.
Hla mostra pouca esperança de que os embargos tenham efeito prático na proteção dos civis. “Mesmo que a China e a Rússia não vendessem armas aos militares de Mianmar, alguns países ocidentais o fariam”, disse ele, acrescentando que “os países do mundo nunca teriam a mesma opinião sobre quaisquer questões”.
Por que isso importa?
Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.
Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.
As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.
A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.
Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.
O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.
A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.
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