Muitos russos não receberam bem a decisão do presidente Vladimir Putin de convocar cerca de 300 mil cidadãos para reforçar as forças armadas na guerra na Ucrânia. A mobilização parcial levou milhares de reservistas a fugir do país. Entre os que ficaram, a ideia de aceitar a convocação não é unanimidade, e protestos populares passaram a ser registrados em todos os cantos. Para driblar esse problema, o Kremlin tem oferecido um bom salário e outras vantagens financeiras aos novos combatentes, de acordo com a rede Radio Free Europe (RFE).
Os soldados assinam contrato profissional com as forças armadas, e a remuneração é atraente: entre 135 mil (R$ 12,7 mil) e 200 mil rublos (R$ 18,8 mil) por mês, valor que é quase três vezes superior à média nacional, de acordo com dados do Alfa Bank, de Moscou.
Fora o salário elevado, o governo debate mudanças na legislação para fornecer outros benefícios, tendo aprovado o congelamento do pagamento de dívidas. Ele vale para hipotecas e empréstimos contraídos por recrutas e seus familiares imediatos. E se estende até 30 dias depois do fim da mobilização.
No caso de soldados mortos ou feridos gravemente, as dívidas serão perdoadas. Chegou a se propor o perdão de todas as dívidas dos combatentes, mas o vice-ministro das Finanças Aleksei Moiseyev contestou a ideia, sob a justificativa de que os salários já são “bastante altos”.
“Precisamos adotar a lei mais rapidamente para que as pessoas possam realizar com calma suas tarefas de combate”, disse Anatoly Aksakov, presidente do comitê de mercados financeiros da câmara baixa do parlamento russo.
Antes, o governo já havia determinado que o emprego dos recrutas precisa estar garantido, com direito de voltar ao trabalho até três meses após o fim do serviço militar. Porém, a perda de funcionários afeta duramente as empresas, que não sabem como sobreviver sem mão de obra e com os custos trabalhistas acumulados. No caso dos funcionários mortos em combate, a substituição em muitos casos pode levar anos devido à falta de treinamento.
Assim, muitas companhias têm orientado seus funcionários sobre como agir para tentar evitar o serviço militar. Um funcionário de um grande banco russo diz que ele e os colegas foram orientados a trabalhar remotamente, mas não na casa na qual estão registrados. Assim conseguiriam driblar os responsáveis pela convocação. Já uma empresa do setor de jogos fretou um avião para tirar do país cem funcionários e seus familiares.
Protestos populares
A decisão de oferecer incentivos financeiros em troca do serviço militar surge em meio ao aumento dos protestos no país. Isso porque a mobilização militar parcial, anunciada por Putin no dia 20 de setembro, colocou a Rússia em ebulição de uma forma que a própria guerra não havia conseguido fazer.
Nos últimos dias, uma nova onda de protestos populares varreu o país, algo que não se via desde que a legislação nacional foi endurecida para silenciar os dissidentes, em março. Também teve início um êxodo de cidadãos, em sua enorme maioria homens fugindo do alistamento para nações vizinhas. E até mesmo aliados passaram a contestar o governo.
Somente na primeira semana que sucedeu o anúncio da mobilização, a ONG OVD-Info, que monitora a repressão estatal na Rússia, registrou quase 2,5 mil detenções em protestos populares contra a decisão do Kremlin. E a entidade alerta que o número real tende a ser bem maior, vez que divulga apenas os dados referentes a nomes que conseguiu confirmar, com base em listas fornecidas pelas autoridades, e que recebeu autorização para divulgar.
Em todo o país, voltaram a ser comuns as cenas de policiais usando a força para deter manifestantes nas ruas, algo que não vinha acontecendo nos meses anteriores. Na Sibéria, autoridades locais relataram que um oficial de recrutamento foi gravemente ferido a bala por um manifestante que também incendiou o escritório onde atuava o funcionário do governo. Episódio parecido ocorreu na cidade de Uryupinsk, na região de Volgogrado, onde um coquetel molotov atingiu um centro de recrutamento.
Muitos cidadãos em idade de recrutamento optaram por deixar o país, com relatos de fronteiras lotadas em países vizinhos como Geórgia, Mongólia e Cazaquistão. Voos da Rússia para Armênia, Turquia e Azerbaijão, países que fazem fronteira com o território russo e não exigem visto de entrada, rapidamente se esgotaram.
Críticas de aliados
Mesmo importantes figuras pró-Kremlin têm encontrado motivos para condenar a mobilização. Não pelo que ela é, mas pela forma como vendo sendo feita. Caso de Margarita Simonyan, editora-chefe da emissora estatal RT (antiga Russia Today), que contestou a péssima logística, com cidadãos acima dos 40 anos recebendo cartas de convocação, sendo que a lei permite apenas a convocação daqueles até os 35.
“Eles estão enfurecendo as pessoas, como se de propósito, como se por despeito”, disse Simonyan sobre as autoridades por trás do projeto, segundo a Radio Free Europe.
Críticas também partiram de políticos governistas, como a legisladora Valentina Matviyenko, presidente do Conselho da Federação da Rússia. Através do Telegram, ela contestou o fato de que muitos homens inelegíveis têm sido convocados. “Esses excessos são absolutamente inaceitáveis. E considero absolutamente certo que estejam provocando uma forte reação na sociedade”, escreveu.
Vyacheslav Volodin, presidente da Duma do Estado, confirmou que “reclamações estão sendo recebidas” e igualmente cobrou uma ação. “Se um erro é cometido, é necessário corrigi-lo”, disse ele. “As autoridades em todos os níveis devem entender suas responsabilidades”.
O governo admitiu os problemas. “De fato, há casos em que o decreto (de mobilização) foi violado. Em algumas regiões, os governadores estão trabalhando ativamente para corrigir a situação”, disse o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov.
Projeções pessimistas
Tantos problemas têm levado especialistas a afirmar que o recrutamento dificilmente ajudará a Rússia a vencer a guerra. Michael Kofman, analista militar e chefe do programa de estudos da Rússia no think tank norte-americano CNA, afirmou que a decisão de Putin “pode estender a capacidade russa de sustentar esta guerra, mas não muda a trajetória e o resultado geral”.
Rob Lee, especialista do programa para a Eurásia do Instituto de Pesquisa em Política Externa dos EUA, concorda: “Ainda acho que a Ucrânia tem muitas vantagens daqui para frente”, disse ele, que igualmente vê a mobilização como uma mera oportunidade de resolver “por alguns meses” o problema russo da falta de mão de obra militar.
Em uma série de posts no Twitter, Mark Hertling, ex-comandante do exército dos EUA na Europa, listou obstáculos que talvez as forças armadas russas não consigam superar. Entre elas, a falta de vontade dos reservistas. “Colocar ‘novatos’ em uma linha de frente que foi atacada, tem o moral baixo e que não quer estar lá pressagia mais desastre para a Rússia. De cair o queixo. Um novo sinal de fraqueza da Rússia”.
Esse aspecto é reforçado por Rob Lee. “Esta guerra será cada vez mais travada por voluntários do lado ucraniano que estão motivados e com moral. Do lado russo, veremos uma parcela cada vez maior de pessoas que não querem estar lá”, disse o especialista.
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