Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site The Atlantic
Por Michael Schuman
A primeira vez que a China sediou os Jogos Olímpicos foi um momento de esperança e promessa. Os Jogos de Verão de 2008 em Beijing provaram ser uma festa de apresentação de uma China emergente – rica, influente, tecnologicamente avançada e, acima de tudo, cada vez mais aberta ao exterior. Claro, os abusos dos direitos humanos do regime comunista levaram a protestos na época, como agora. Mas a comunidade internacional deixou de lado essas diferenças para participar do que aos Jogos Olímpicos deveriam ser: uma celebração do esporte global e do companheirismo. A China estava se juntando ao mundo, e o mundo a acolheu.
Os mais recentes Jogos Olímpicos em Beijing, que começam na sexta-feira (40, contam uma história mais sombria. Com a pandemia de coronavírus ainda se espalhando pelo planeta, Beijing, compreensivelmente, teve que isolar os Jogos de Inverno do mundo. Os poucos viajantes de entrada permitidos, principalmente os participantes dos eventos, estão sendo fechados em uma bolha, suas interações com o resto do país limitadas por uma tempestade de restrições.
No entanto, os controles parecem simbólicos da nova atitude da China em relação ao mundo: tensa, temerosa e até dominadora. A China de 2022 não é a China de 2008, e os Jogos Olímpicos estão deixando isso muito claro.
Em 2008, os Jogos de Verão pareciam abrir uma janela para um futuro otimista, no qual a China era parceira dos Estados Unidos em uma comunidade global integrada. Aqui estava um governo comunista que não pretendia derrubar a ordem mundial liderada pelos EUA (como a União Soviética pretendia), mas se enredando nela. Aqueles Jogos pareciam um triunfo da política de engajamento de Washington com a China. Ativistas interromperam o revezamento da tocha para protestar contra os maus tratos de Beijing aos tibetanos. Mas isso não impediu que o então presidente George W. Bush participasse dos Jogos e se reunisse com o principal líder da China na época, Hu Jintao. A China, como os Jogos Olímpicos pareciam destacar, estava se movendo na direção “certa”: em direção a uma sociedade mais liberal.
Esses Jogos de Inverno, ao contrário, revelam uma China insular em oposição à atual ordem mundial. Nos últimos 14 anos, a China ganhou poder, riqueza e ambição – tudo com certeza estará em exibição nas próximas semanas. Mas com isso veio o aumento do nacionalismo e da intolerância. Essa China deseja ditar os termos de suas relações com outras nações, para garantir que seus interesses predominem. É exatamente assim que está gerenciando os Jogos de Inverno. O mundo não é tão bem-vindo na China hoje como era em 2008.
Nem a China é tão bem-vinda no mundo. À medida que a política externa da China se torna combativa e seus abusos de direitos humanos pioram – como é mais evidente na detenção em massa de minorias uigures na região oeste de Xinjiang –, os EUA e muitos outros países passaram a ver a China como seu principal adversário estratégico. Desta vez, os apelos para boicotar os Jogos eram altos demais para serem ignorados. O governo Biden proibiu representantes do governo de participar do evento.
Em retrospectiva, 2008 parece ter sido o auge da abertura da China comunista, enquanto 2022 sinaliza que a porta do país está se fechando – não totalmente, mas o suficiente para fazer com que passar por ela seja um aperto desconfortável. Essa porta está sendo fechada por uma liderança chinesa menos confiante e interessada na integração e empurrada por potências estrangeiras mais apreensivas com as intenções da China. Esses Jogos podem mostrar que a ascensão da China não encapsula mais o espírito olímpico, mas o coloca em perigo.
Como todas as sociedades, a China passou por períodos de abertura e isolacionismo. O auge da dinastia Tang (618-907), por exemplo, estava entre as eras mais vibrantes culturalmente e também internacionalmente da China. A moda da Ásia Central estava em alta com a multidão medieval e a capital do império, Chang’an, deleitava-se com iguarias exóticas e luxos importados de horizontes distantes. Estrangeiros podiam ser encontrados em toda a sociedade Tang, desde os becos mais humildes até os lugares mais elevados da corte imperial. Um grande literário Tang tornou-se poético sobre os encantos excitantes de uma garota de bar “ocidental”, que “ri com o sopro da primavera / dança em um vestido de gaze!”.
Em contraste, os imperadores da dinastia Ming (1368-1644) não apenas construíram a Grande Muralha, mas tentaram, sem sucesso, proibir todo o comércio marítimo privado, em parte para reduzir a interação da população com estrangeiros, que a corte considerava um risco à segurança. Quando os comerciantes portugueses começaram a se estabelecer em Macau, os Ming construíram outro muro, este atravessando o estreito pescoço da península, para manter os recém-chegados engarrafados e, se necessário, privados de alimentos.
O ciclo histórico parece estar se repetindo agora. No final da década de 1970, o líder supremo do país, Deng Xiaoping, diagnosticou que a pobreza e o atraso tecnológico da China eram consequências da “política de portas fechadas” perseguida por Mao Tsé-Tung, o fundador da República Popular. Deng embarcou em um programa de “reforma e abertura”, uma frase que alcançou o status de mantra religioso na política chinesa. Com a “abertura” veio a torrente de dinheiro estrangeiro, tecnologia estrangeira e habilidades estrangeiras que ajudaram a transformar a economia na segunda maior do mundo. E, com o tempo, ideias estrangeiras também surgiram – incluindo, mais recentemente, fenômenos como Harry Potter e #MeToo, que alteraram a sociedade chinesa. A liderança da China não ficou entusiasmada com algumas dessas ideias, como os conceitos ocidentais de liberdades civis, que podem ser politicamente perigosos. Desde o início da era da internet, o governo ergueu o Grande Firewall para controlar quais informações penetravam no país digitalmente. Mas, em 2008, a China aceitava mais o mundo exterior do que em qualquer outro momento da era comunista.
Desde então, o pêndulo voltou a girar. Embora o presidente Xi Jinping ainda prometa regularmente mais “abertura”, ele está projetando uma virada para dentro, impulsionado por uma combinação contraditória de confiança crescente e insegurança persistente. Por um lado, Xi parece mais convencido do que nunca da superioridade do sistema político e social da China e tem trabalhado para protegê-lo de influências estrangeiras corruptoras. Por outro lado, a política externa mais agressiva de Xi também expôs vulnerabilidades que ele está tentando eliminar.
Essas são em grande parte econômicas. Os controles de exportação e sanções que Washington impôs à China nos últimos anos prejudicaram importantes empresas chinesas, como a fabricante de telecomunicações Huawei, e destacaram o quão dependente a economia permanece de tecnologia importada e outros insumos cruciais. Para um nacionalista como Xi, isso simplesmente não serve. Ele direcionou a economia para a “autossuficiência”, uma visão quase autárquica para promover a produção chinesa de tudo o que o país exigir e substituir as importações por alternativas caseiras. “Precisamos reformular nossas cadeias industriais, intensificando a inovação tecnológica e a substituição de importações em geral”, comentou Xi uma vez. “Devemos construir cadeias de produção e fornecimento domésticas, controláveis, seguras e confiáveis em áreas e elos vitais para nossa segurança nacional, para que sejam autossuficientes em momentos críticos”. O governo intensificou seu foco no desenvolvimento de setores de ponta com ajuda e proteção do Estado. Por exemplo, em semicondutores, um importante item de importação, o governo está investindo centenas de bilhões de dólares em empresas locais de chips com o objetivo de suprir 70% das necessidades do país até 2025 (embora a China não chegue nem perto).
Se for bem-sucedida, a iniciativa de Xi pode diminuir o papel de seu país na economia global. As empresas e consumidores chineses se tornariam menos importantes como fonte de vendas e lucros para os parceiros comerciais da China. Meia década atrás, as empresas chinesas estavam ansiosas para “tornarem-se globais”. Agora, nem tanto. De acordo com dados do American Enterprise Institute, o investimento externo de empresas chinesas vem diminuindo desde o pico atingido em 2017. Embora provavelmente se recupere de uma queda adicional induzida pela pandemia, é improvável um renascimento sustentado, a menos que Xi alivie seu controle sobre empresas privadas e liberalize a economia da China para acomodar empresas estrangeiras – e não há sinal de nenhuma dessas mudanças. Os empréstimos dos bancos estatais da China a países emergentes, que se tornaram uma grande força no desenvolvimento global, também caíram acentuadamente nos últimos anos. Ruchir Sharma, especialista em investimentos em mercados emergentes, observou recentemente que a importância da China para o crescimento econômico global já vem diminuindo há vários anos e cita as ambições de autossuficiência do país, o envelhecimento da população e uma série de outros fatores como razões para essa tendência – que pode continuar. “A China pode não importar tanto quanto antes”, escreveu ele.
A China também está bloqueando muitos outros aspectos da sociedade. A censura estatal da mídia digital continua a se intensificar à medida que Xi tenta obter maior controle sobre as informações. O Yahoo encerrou seus serviços na China no ano passado, juntando-se à longa lista de empresas globais de internet incapazes de operar dentro do Grande Firewall; o LinkedIn também recuou e introduziu um aplicativo de busca de emprego específico da China cujos usuários não podem compartilhar postagens ou artigos. O esforço de Xi para infundir valores mais “socialistas” na sociedade chinesa reduziu as influências estrangeiras. Em meio a uma repressão à cultura das celebridades – considerada inadequada para os líderes do partido – uma plataforma de mídia social suspendeu os sites de fãs de muitos artistas populares de K-pop no ano passado. As escolas particulares não podem mais oferecer aulas virtuais de professores estrangeiros. Harvard decidiu no ano passado transferir um programa de estudos chineses de Beijing para Taipé por causa do tratamento hostil dos estudantes visitantes. As autoridades da universidade anfitriã de Beijing os proibiram de realizar uma celebração de 4 de julho.
A recente política externa da China reflete um esforço para usar a força econômica do país para conter as críticas mesmo fora de suas fronteiras. Embora os líderes da China tenham se irritado por muito tempo quando governos estrangeiros se intrometeram no que consideravam assuntos internos – como Taiwan ou Tibete – eles geralmente adotavam uma visão pragmática, apresentando suas queixas e depois negociando com entusiasmo até mesmo com seus críticos mais ferrenhos. Não mais. Aqueles que desafiam os desejos da China podem se ver excluídos. Quando a Lituânia fortaleceu os laços com Taiwan no ano passado devido aos furiosos protestos chineses, o pequeno Estado báltico viu suas exportações para a China bloqueadas. Mais convencidos do que nunca da superioridade de seu sistema político autoritário, os funcionários da China também não são mais tão tolerantes com as críticas estrangeiras às suas práticas iliberais. Como Xi disse em um discurso em julho: “Nós não aceitaremos pregações hipócritas daqueles que sentem que têm o direito de nos repreender”.
A pandemia de coronavírus, durante a qual a China tomou medidas rigorosas para evitar ondas de infecção do exterior, isolou ainda mais o país. Ninguém pode culpar os líderes da China por sua cautela, mas o resultado ainda é notável: o maior exportador do mundo permitiu um mero fluxo de viajantes estrangeiros no país nos últimos dois anos, e as autoridades chinesas parecem sentir pouca pressão para afrouxar seus protocolos. Turistas chineses gastadores já viajaram de jato ao redor do mundo; agora, com as quarentenas da Covid-19 tão rigorosas e o transporte limitado, muitos foram engarrafados em casa.
A liderança da China está usando os Jogos Olímpicos de Inverno para sinalizar que a porta do país está mais aberta do que nunca. “Deixe o mundo inteiro ver nosso show”, proclama uma canção dos Jogos Olímpicos de Inverno de Beijing. É verdade que o governo flexibilizou um pouco suas rígidas regras da Covid-19 por causa dos Jogos. Os visitantes vacinados que chegam a Beijing para o evento foram autorizados a renunciar à habitual quarentena de três semanas. Mas as restrições extremas dificilmente podem fazer com que os participantes se sintam especialmente bem-vindos. As autoridades alertaram os moradores para ficarem longe dos veículos designados para conduzir os atletas e outros participantes entre os locais – mesmo que esses veículos batam e seus ocupantes pareçam precisar de ajuda. Melhor deixar alguns estrangeiros sofrerem do que ter um local potencialmente contrair Covid-19.
Essa é uma indicação clara de que, mesmo ao sediar os Jogos Olímpicos deste ano, a prioridade da China é a China. Os líderes chineses parecem irritados com as críticas em torno dos Jogos de Inverno – um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores disse que o boicote dos EUA “contraria o lema olímpico de união” – mas não o suficiente para abordar as preocupações dos descontentes. Em uma conversa telefônica em janeiro, o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, disse categoricamente ao secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, para parar de interferir nos Jogos, de acordo com o resumo oficial chinês. Da mesma forma, Beijing ignorou preocupações generalizadas sobre a estrela do tênis chinesa e ex-atleta olímpica Peng Shuai, que desapareceu em novembro depois de acusar um político comunista de abuso sexual, embora seu destino tenha azedado ainda mais o sentimento em relação aos Jogos.
Em vez disso, a mentalidade coercitiva agora tão prevalente na política externa da China também se aplica aos Jogos. Um funcionário do comitê organizador de Beijing alertou que “qualquer comportamento ou discurso que seja contra o espírito olímpico, especialmente contra as leis e regulamentos chineses” – em outras palavras, comentários ou protestos sobre questões políticas delicadas – estão “sujeitos a certas punições”.
Tudo isso mostra o realinhamento do lugar da China no mundo desde 2008. Xi nunca convidou o presidente Joe Biden para o evento, mesmo antes do boicote diplomático; talvez ele tenha presumido que Biden recusaria e assim se salvou do constrangimento da rejeição. Mas Xi estendeu um convite a seu parceiro na opressão Vladimir Putin, mesmo enquanto o presidente russo faz preparativos para invadir a Ucrânia. Isso significa que Putin terá os holofotes olímpicos que outrora brilharam sobre os americanos. Em 2008, Bush participou de um jogo de basquete EUA-China com o então ministro das Relações Exteriores chinês Yang Jiechi. Yang, agora um membro do todo-poderoso Politburo do Partido Comunista Chinês (PCC), é o oficial que se tornou um herói nacional por criticar Blinken em uma reunião no Alasca no ano passado sobre as falhas da democracia americana e a impropriedade da política chinesa de Washington. “Os Estados Unidos não têm qualificação para dizer que querem falar com a China de uma posição de força”, disse ele.
Ainda assim, o sentimento gelado que sopra nesses Jogos Olímpicos não é bem uma Guerra Fria. Os EUA estão dispostos a constranger o país anfitrião apenas até certo ponto. Ao contrário do boicote do presidente Jimmy Carter aos Jogos Olímpicos Moscou 1980, devido à invasão soviética do Afeganistão, o desprezo de Biden pelos eventos deste ano não proibirá os atletas norte-americanos de participarem. Talvez olhemos para trás nestes Jogos não como um prenúncio de uma China isolada em desacordo com o mundo, mas como nada mais do que uma marca de tempos temporariamente tensos.
No entanto, do jeito que as coisas estão, os Jogos de Inverno podem ser um ponto de pivô infeliz. Em 2008, os Jogos Olímpicos prenunciavam a ascensão da China como líder global e as grandes possibilidades que isso poderia trazer; 2022 sugere que uma China mais poderosa terá um relacionamento mais conflituoso com o mundo. Com os eventos fechados para os espectadores visitantes, os chineses ficarão sozinhos, deleitando-se com sua própria grandeza percebida; o mundo exterior participará inteiramente em termos chineses. Do jeito que Beijing gosta.
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