Na China, denunciar assédio praticado por um homem tem se tornado cada vez mais perigoso para as mulheres. Não bastasse a repressão do governo no caso da tenista Peng Shuai, que passou dias sumida após acusar um importante membro do Partido Comunista Chinês (PCC), têm se tornado cada vez mais comuns os casos de mulheres que sofreram abusos, foram processadas e tiveram que indenizar seus agressores. As informações são do jornal South China Morning Post.
É o caso de He Qian, nascida na China e hoje professora da Universidade Oklahoma State, nos Estados Unidos. Em janeiro de 2021, um tribunal da China considerou que as alegações dela contra o famoso jornalista chinês Deng Fei careciam de “evidência factual e base legal”. Ela e uma amiga que a ajudou a divulgar os abusos na internet foram condenadas a pagar 11.712 yuan (R$ 9,7 mil, no câmbio atual) em custas legais e indenização.
Ainda em 2021, um caso semelhante e de grande repercussão teve desfecho idêntico. A jornalista Zhou Xiaoxuan, da emissora estatal CCTV, acusou um âncora do canal, Zhu Jun, de cometer abusos contra ela. A Justiça igualmente rejeitou as alegações da vítima, e o agressor ingressou com uma ação judicial contra ela. O caso ainda está em análise.
Os casos das duas chinesas vieram à tona no auge do movimento #MeToo, surgido nos Estados Unidos para denunciar abusos cometidos por homens em cargos de poder, muitos deles celebridades. No caso de He, a primeira denúncia foi anônima, no aplicativo de mensagens WeChat. Ela acusou Deng de beijá-la à força e de apalpá-la após convidá-la para tratar de questões profissionais no quarto de hotel em que ele estava hospedado. “Eu nunca fiz uma coisa tão ruim e estúpida”, alegou o homem.
Zhou, por sua vez, era apenas uma estagiária quando agendou uma entrevista com Zhu, em 2014. No seu camarim o jornalista teria beijado e apalpado a jovem seguidas vezes, contra a vontade dela. Na delegacia, quando tentava fazer a denúncia, Zhou foi desencorajada por um policial, que classificou o agressor como uma “energia positiva” para a sociedade, enquanto a acusação “machucaria os sentimentos de muita gente”.
A história da jovem foi mantida em segredo por quatro anos. Em 2018, ela decidiu revelar a agressão para motivar outras mulheres que tivessem passado pelo mesmo problema. Em particular uma amiga que havia sido estuprada. “Eu queria que minha amiga sentisse que havia pessoas nisso com ela, para que ela não ficasse tão triste”, disse Zhou. O caso só recebeu um veredito em 2021, e o agressor foi agraciado com a indenização. Atualmente, Zhou e He trabalham em recursos judiciais para tentar reverter as decisões.
Os números da injustiça
Segundo a ONG Centro de Desenvolvimento de Gênero Beijing Yuanzhong, um dos principais grupos de direitos das mulheres da China, a Justiça chinesa tem documentados 24 casos de supostas vítimas de assédio sexual que processaram seus agressores, entre 2019 e 2021. Seis ações foram retiradas, e o assédio foi constatado parcialmente em apenas quatro, ou 16,6%.
No mesmo período, a ONG relata que 33 pessoas acusadas de assédio sexual processaram suas acusadoras por difamação. E 23 desses casos terminaram com vitória do autor, o que equivale a cerca de 70% dos casos.
“Isso significa que apenas quatro mulheres foram assediadas sexualmente na China nos últimos três anos?”, questiona Zhou. “Não, não pode ser. Isso só prova que as leis existentes não apoiam as mulheres que se apresentam para ganhar o caso. Elas não as apoiam para falar”.
Para as vítimas do abuso, os problemas não terminam com o veredito desfavorável. “Zhou foi vista como mentirosa, perdeu sua reputação pública, perdeu sua carreira. Isso é muito sério”, disse Lu Pin, ativista social veterana e fundadora do grupo de direitos das mulheres Feminist Voices.
Zhou teve que conviver com acusações de que seria uma agente a serviço de nações estrangeiras, pelo simples fato de ter concedido entrevistas a jornais de outros países. O perfil dela no Weibo, uma rede social chinesa semelhante ao Twitter, foi apagado, bem como outros diversos perfis em apoio a ela.
Na visão de Lu, os dois casos em questão deixam clara a posição das autoridades chinesas de ignorar o abuso sexual. Soma-se a isso a repressão estatal, que impede mobilizações populares em massa do tipo #MeToo.
Ainda assim, existe a esperança de que um caso em particular torne-se emblemático e permita um debate amplo sobre o tema. “Nunca sabemos quem será a próxima. Por exemplo, ninguém esperava que Peng Shuai falasse sobre sua experiência”, diz a ativista.
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