Este conteúdo foi publicado originalmente no NEAI (Núcleo de Estudos e Análises Internacionais) da Unesp (Universidade Estadual Paulista)
por Solange Reis, doutora em Ciência Política e pesquisadora do INCT-Ineu (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos)
Realizada anualmente há quase seis décadas, a Conferência de Segurança de Munique teve uma “Edição Especial” em 2021. Além do formato virtual, o maior encontro mundial sobre segurança e defesa indicou quais e como serão tratadas as principais questões de segurança internacional no primeiro ano pós-Trump.
A conferência tem uma história curiosa. Também conhecida como MSC (na sigla em inglês), foi inaugurada por um editor alemão, em 1962. Ewald-Heinrich von Kleist, o aristocrata e membro da Wermacht que participou do plano de 1944 para assassinar Adolf Hitler, criou o evento para reunir delegados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Com o tempo, a MSC passou a incluir países e pessoas sem ligação direta com a aliança atlântica. A Rússia, que sempre foi uma espécie de espelho invertido da Otan, participa do encontro desde o fim dos anos 1990. Em 2020, a conferência reuniu mais de 800 pessoas entre políticos, empresários e ativistas.
Devido à pandemia de covid-19, o encontro foi diferente neste ano. Além de bem reduzida — sem a presença de grandes atores como China e Rússia — a conferência contou com a participação inédita de um presidente americano. A aparição de Joe Biden teve um forte simbolismo, que pode ser resumido em dois pontos. O primeiro foi o propósito de resgatar a confiança dos parceiros europeus, revertendo a antidiplomacia adotada por seu antecessor. O segundo objetivo foi dizer, literalmente, que sua política externa não terá qualquer traço de isolacionismo.
Aliança militar
Em seu primeiro discurso para uma audiência internacional, Biden mandou um recado claro sobre como pretende tratar as questões mundiais. “A América está de volta, a aliança transatlântica está de volta, e nós não vamos olhar para trás”. De fato, sequer mencionou Donald Trump ao reconhecer que os últimos anos foram difíceis na relação dos Estados Unidos com a União Europeia e alguns países europeus.
Agora, o novo presidente pretende recuperar a confiança dos aliados e a liderança de seu país. Trata-se de uma abordagem oposta à de Trump. O republicano não só apoiou o Brexit, movimento que levou à saída do Reino Unido da União Europeia, como disse que a desintegração do bloco todo era questão de tempo.
Com a chegada de Biden, houve momentos de afagos mútuos na conferência. Enquanto o democrata confirmou que não retirará soldados das bases americanas na Alemanha, Emmanuel Macron e Angela Merkel se comprometeram a destinar mais verbas para a área de defesa europeia. Desde 2014, existe um acordo tácito entre os membros da Otan para que os gastos individuais com defesa sejam de, no mínimo, 2% sobre o PIB. Com uma opinião pública majoritariamente contrária a esse nível de dotação, a maioria dos países europeus sempre fica abaixo da meta.
Nos bastidores, diversos presidentes americanos sempre insistiram para que os aliados gastassem mais. Trump foi mais longe, criticando abertamente os europeus e colocando a utilidade da aliança em dúvida. Disse que a Otan era obsoleta e que não se sentia obrigado a cumprir o artigo 5, trecho do tratado que determina o princípio da segurança coletiva. De acordo com esse fundamento, o ataque a um integrante da Otan significa uma agressão aos demais e deve ser respondido coletivamente.
Ao cruzar essa fronteira retórica, Trump despertou nos europeus a necessidade de autonomia estratégica, uma proposta que foi defendida historicamente pela França. Sempre faltou, porém, o chamado “triângulo do crime”: motivo, oportunidade e meios. A sinceridade de Trump deu à França o motivo e a oportunidade para convencer seus pares de que agora faltam apenas os meios.
Usando um tom conciliatório, Macron reforçou a ideia de que os europeus precisam investir mais em defesa. Não apenas para ganharem credibilidade na Otan – europeus sempre reclamaram da hierarquia velada na aliança militar — mas para se ajustarem à ênfase dos Estados Unidos como potência do Pacífico. “É uma forma de reequilibrar as relações transatlânticas”, disse o presidente francês. Macron, que diagnosticou a morte cerebral da Otan em 2019, considera importante pensar em uma nova arquitetura de segurança para o século XXI. Um sistema de defesa europeu independente de qualquer ator extrarregional.
Pêndulo alemão
Angela Merkel manteve o tradicional posicionamento alemão em defesa do multilateralismo. Destacou a volta dos Estados Unidos para a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a disposição em combater a covid-19, bem como a decisão do presidente de aderir novamente ao Acordo de Paris sobre mudança climática.
A chanceler alemã tem outro bom motivo para comemorar a chegada de Biden. Embora o assunto não tenha sido levantado na conferência, o recém-eleito presidente se mantém calado sobre os avanços na construção do gasoduto Nordstream-2 entre Alemanha e Rússia. Os Estados Unidos e o próprio Biden sempre se opuseram ao projeto de energia russo-alemão. Sobretudo Biden, que tem laços fortes com a Ucrânia, país diretamente prejudicado pelo gasoduto.
Trump impôs sanções contra empresas envolvidas no Nordstream-2, o que levou à interrupção da construção no ano passado e ao desgaste com Berlim. Mas a obra foi retomada no início do ano sem qualquer represália americana. Contrariando os falcões republicanos e democratas da política externa, Biden finge que não vê e deixa o gasoduto passar. A razão é uma mistura de pragmatismo e diplomacia. Como 94% da obra estão concluídos, o que resta a salvar é a relação com a Alemanha.
Bens comuns, outros nem tanto
Um tema urgente para o democrata é vencer a pandemia de coronavírus a fim de normalizar a economia americana. Embora tendo se comprometido a doar US$ 4 bilhões de dólares para o COVAX, fundo global de vacinas organizado pela OMS para distribuição em países em desenvolvimento, Biden teve um posicionamento bem realista quanto a socializar as vacinas. Desafiado por Macron a ceder 5% do estoque adquirido à África, o americano não hesitou. “Não enviarei vacinas para países em desenvolvimento enquanto o fornecimento não melhorar”. Diz o ditado que, farinha pouca, meu pirão primeiro.
Quanto ao clima, o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris não foi novidade. Era uma promessa de campanha do democrata, que foi facilmente cumprida com uma ordem executiva no primeiro dia de governo. Além disso, o presidente tem se comprometido a zerar as emissões líquidas até 2050. Tudo faz parte do Green New Deal, um antigo plano dos progressistas rumo a uma economia baseada em energia limpa, que agora é incorporado pelos centristas na Casa Branca. A questão climática é um ponto de fácil contato com os europeus, mas o democrata precisa vencer a pressão dos lobbies de energia fóssil e a resistência dos núcleos mais conservadores da classe política bipartidária.
Irã
Outro assunto relevante é o engajamento em novas negociações com o Irã e os demais integrantes do P5+1, grupo formado pelos cinco membros do Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha. Trump retirou os Estados Unidos unilateralmente do acordo negociado por essas partes em 2015. Alegou que o Irã violou o compromisso, embora nem a Agência Internacional de Energia Atômica, nem os demais signatários comprovaram a acusação. Apesar disso, Trump retomou antigas sanções econômicas, o que gerou atritos com a União Europeia e levou o Irã a retomar uma parte suspensa do programa nuclear.
Biden não pretende voltar para o JCPOA, sigla do acordo em inglês, sem barganhar novas condições. Tal pretensão ficou implícita na conferência, ao dizer que é preciso tratar das ações desestabilizadoras por parte do Irã no Oriente Médio. É esperado que, em um eventual acordo futuro, seu governo exija a inclusão de pontos que não se relacionam com o programa nuclear iraniano, mas com questões geopolíticas e o interesse de aliados como Israel e Arábia Saudita.
Os países europeus, que ficaram ao lado do Irã durante o período Trump, têm-se mostrado inclinados a cooperar com Biden para obter mais vantagens e concessões junto a Teerã. Em janeiro, Reino Unido, França e Alemanha criticaram a decisão iraniana de voltar a enriquecer urânio até 20%, acima do limite permitido pelo JCPOA.
Javad Zarif, ministro das Relações Exteriores iraniano, diz que seu país voltará a cumprir o acordo tão logo os Estados Unidos suspendam as sanções. Mas o aiatolá Ali Khamenei anunciou que, se necessário, seu país poderá enriquecer urânio até 60%. A declaração é como lenha na fogueira desse imbróglio que se arrasta há anos.
Novo mundo
O mais difícil para Biden será convencer os europeus a jogarem duramente contra a Rússia e, principalmente, a China. Duas semanas depois da eleição americana, Macron disse que a Rússia é parte da Europa e não deve ser rejeitada. A União Europeia acaba de fazer um grande acordo de investimentos com a China, sem sequer dar uma notificação prévia à Casa Branca. O acordo fortalece a credibilidade da China como parceiro comercial e financeiro, bem como sinaliza para os Estados Unidos que a União Europeia pretende renunciar à função de parceiro menor da coalizão liberal ocidental.
Após 16 anos na liderança da Alemanha, Merkel deixará o cargo em setembro próximo. Seu provável sucessor, o democrata-cristão Armin Laschet, é simpático à Rússia, país que considera vítima de “populismo do marketing anti-Putin”. Quanto à China, Laschet é a favor das exportações alemães, e é para lá que muitas delas vão.
Se a América voltou, não foi para o mundo que Biden conheceu ao longo de sua carreira decana, ou como vice-presidente de Barack Obama.
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