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domingo, 14 de maio de 2023

Memória de uma Crimeia Roubada

Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do think tank Center for European Policy Analysis (CEPA)

Por Mark Temnycky

A Crimeia tinha acabado de ser libertada das forças nazistas e do Eixo quando, nas primeiras horas de 18 de maio de 1944, cerca de cinco mil membros da polícia secreta de Stalin, a NKVD, apoiados por 20 mil soldados do Ministério do Interior e incontáveis ​​milhares de militares adicionais, cercaram as casas da população indígena tártara e iniciaram um dos grandes crimes da União Soviética.

Muitos morreram enquanto eram embarcados para o leste, longe de sua terra natal, para a Ásia Central, em vagões de gado e sem nenhum tipo de ajuda humanitária. Acusado de colaboração, o Kremlin simplesmente os espalhou por regiões remotas. Dos 180 mil capturados no início, cerca de 45 mil morreram em poucos meses. Muitos outros pereceram mais tarde, talvez cerca de cem mil, ou metade dos que foram deportados.

Mera história, assassinato em massa stalinista padrão? É muito mais do que isso, tanto pelos efeitos devastadores sobre o povo tártaro, mas também porque sua tragédia continua enquanto o regime de Vladimir Putin reabre feridas terríveis com novas perseguições. No ano passado, algumas centenas de tártaros conseguiram se reunir na Crimeia (Sürgün em tártaro da Crimeia) para marcar o aniversário de 18 de maio, mas não se sabe se eles conseguirão repetir isso neste ano, conforme a Rússia reprime as lembranças de seus crimes passados.

Muitos milhares de tártaros conseguiram retornar de seu exílio à Crimeia após o colapso do comunismo. Mas essa esperança há muito acalentada foi rapidamente seguida por um novo crepúsculo quando Putin anexou a península e retomou os maus-tratos aos tártaros.

Vista de Sebastopol, principal cidade da Crimeia, região na Ucrânia anexada pelos russos em 2014 (Foto: Elen Wolf/Pixabay)

Isso foi amplamente detalhado. Em abril, o Comitê para Eliminação da Discriminação Racial (CERD) das Nações Unidas declarou que a Rússia era responsável por uma série de violações dos direitos humanos contra os tártaros e outros grupos étnicos na Crimeia e nos territórios ocupados da Ucrânia. Essas violações incluíam sequestros e deportações forçadas. Além disso, o CERD recebeu relatórios afirmando que violações adicionais incluíam a “destruição e danos ao patrimônio cultural tártaro da Crimeia, incluindo lápides, monumentos e santuários.” Durante a sessão, os especialistas pediram que “Moscou faça mais para proteger os direitos dos tártaros” e outros grupos minoritários. Também pediu o restabelecimento do Mejlis, “um corpo representativo dos tártaros da Criméia que foi dissolvido [pela Rússia] em 2016”.

A ONU não reconhece a anexação russa da Crimeia em 2014, e várias resoluções de vários órgãos da ONU foram apresentadas na Assembleia Geral pedindo a retirada completa da Rússia da Crimeia, não apenas como um objetivo final, mas como uma pré-condição para a restituição dos tártaros da Crimeia.

A península da Criméia tem sido palco de perseguição tártara e remoção populacional desde a primeira anexação da Rússia em 1783. Em seu livro Claiming Crimea (Reivindicando a Crimeia em tradução literal, sem tradução para o português), a historiadora da Universidade de Harvard Kelly O’Neill observa que a península da Crimeia já foi um exemplo florescente da sociedade étnica tártara. Durante o início e meados do século XIX, mais de 80% da população da península era composta por tártaros étnicos.

O censo russo em 1835 informou que os tártaros da Criméia, principalmente muçulmanos, compreendiam 83,5% da população da península. Em contraste, apenas 4,4% da população da península era de etnia russa. Em 1897, foi relatado que apenas 36% da população da península era de etnia tártara. Em comparação, 33% da população da península era de etnia russa, um aumento de sete vezes em relação a 60 anos antes. Na década de 1920, os russos se tornaram o maior grupo étnico.

A história é crítica para os tártaros, mas também representa um alerta bem compreendido pela Ucrânia, que agora marca o dia 18 de maio como o Dia da Comemoração das Vítimas do Genocídio dos Tártaros da Crimeia. Seja quem for que dirija o Kremlin – Rússia Imperial, União Soviética ou Federação Russa -, as mesmas táticas de limpeza de populações antigas, substituindo-as por russos, são empregadas independentemente. A Ucrânia sabe disso simplesmente observando o tratamento de seu próprio povo na Crimeia e no leste da Ucrânia.

Como disse a ONG Human Rights Watch: “Oficiais russos e afiliados à Rússia transportaram [ucranianos] para a Rússia ou áreas ocupadas pela Rússia em transferências em massa organizadas, muitas vezes contra sua vontade ou em um contexto em que não tinham escolha significativa, o que constitui um crime de guerra.” Os que permanecem são submetidos a tratamento cruel e brutal, incluindo execução sumária. Os ucranianos estão, mesmo agora, sendo instruídos a deixar as regiões ocupadas pela Rússia no sul da Ucrânia, embora muitos resistam.

Eles sabem o que vem a seguir. Depois que a população local é eliminada, os russos se mudam. Um grande número de russos étnicos foi realocado para a Crimeia por mais de 200 anos, resultando em uma mudança dramática na demografia da península. Hoje, existem mais de dois milhões de residentes na Crimeia, a maioria dos quais são de etnia russa.

“Putin está roubando duas vezes”, disse Ayla Bakkalli, representante tártara da Crimeia no Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas. “Primeiro, o roubo total de territórios ucranianos que incluem povos originários. Em segundo lugar, ele está roubando a identidade dos ucranianos e dos povos originários por meio da russificação da Crimeia,”

Após o voto pela independência da Ucrânia em 1991 (apoiado por uma estreita maioria na Crimeia), milhares de tártaros da Crimeia começaram a retornar à sua pátria étnica, seguindo-se ao colapso da União Soviética. Mas eles foram superados em número e abafados pela falsa afirmação de que “a Crimeia sempre foi russa”. Os russos agora representam quase 60% da população da península, enquanto os tártaros representam apenas 12%. (Tem sido difícil obter dados precisos do censo após a anexação ilegal da Crimeia pela Rússia em 2014.)

Os tártaros marcarão seu dia de perseguição em 18 de maio, onde quer que vivam; na Crimeia, na Ucrânia, no Uzbequistão, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar onde uma pessoa deslocada encontra refúgio. Porque é importante lembrar de onde você veio e quem te colocou lá.

“A Rússia precisa fazer terapia”, disse Bakkalli. “A Rússia continua tentando nos arrastar para o passado. Em vez disso, a Rússia deveria buscar se redefinir no século 21.”

*jornalista freelancer credenciado que cobre a Europa Oriental e  membro não residente  do Eurasia Center do Atlantic Council

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