A proximidade entre os governos da Sérvia e da China pode transformar o Kosovo em um grande laboratório para testar as tecnologias chinesas de vigilância invasiva. O primeiro passo nesse sentido foi dado em dezembro de 2021, com a assinatura de um acordo de fornecimento de câmeras, gravadores digitais e outros aparatos tecnológicos a serem usados em escolas kosovares. As informações são da rede Radio Free Europe (RFE).
O contrato foi firmado entre Beijing e autoridades de Gjilan, no sudeste do Kosovo, região controlada por sérvios, embora com maioria albanesa. A empresa fornecedora do equipamento é a Zhejiang Dahua Technologies, sancionada pelo governo dos Estados Unidos sob acusação de contribuir com a repressão imposta pelo governo chinês à minoria étnica dos uigures na região chinesa de Xinjiang. O dinheiro para pagar pelo equipamento teria sido fornecido por um escritório do governo sérvio, que não reconhece a independência kosovar.
Se colocado em prática, o sistema contribuiria para o testes da China nos campos de reconhecimento facial e de inteligência artificial. Também derrubaria uma importante barreira imposta pelo Kosovo, aliado de Washington e um dos principais opositores balcânicos a empresas da China como a Huawei e a própria Dahua, acusadas de atuar a serviço do Partido Comunista Chinês (PCC).
Para Stefan Vladisavljev, do Fórum de Segurança de Belgrado, o acordo pode levar à deterioração das relações entre a Sérvia e seus maiores parceiros ocidentais, EUA e União Europeia (UE). “Se a China ganhar terreno no desenvolvimento atual e futuro da infraestrutura digital na região, isso pode representar um desafio de segurança não apenas para a região, mas também para os Estados Unidos”.
A questão, segundo ele, também serve para expor a fragilidade do governo do Kosovo, que continua sujeito à autoridade sérvia. Belgrado apoia e financia abertamente partidos políticos sérvios e outras organizações no Kosovo, em parte para reforçar sua influência regional entre comunidades étnicas da ex-Iugoslávia. Beijing aproveita bem a situação e igualmente não reconhece a independência kosovar, com quem não tem relações diplomáticas.
Questionado sobre o acordo entre o Kosovo e a Dahua, o Departamento de Estado norte-americano afirmou que “os Estados Unidos estão trabalhando com aliados e parceiros em uma iniciativa para elaborar princípios para o uso governamental de tecnologia de vigilância de acordo com nossos valores democráticos compartilhados e respeito pelos direitos humanos”.
Vigilância em Belgrado
O presidente sérvio Aleksandar Vucic é forte aliado da China e tem negociado com Beijing acordos no setor de alta tecnologia. Há cinco anos, o Ministério do Interior e a Huawei assinaram um contrato de fornecimento de aparato de vigilância semelhante ao que será usada no Kosovo. O objetivo, segundo o governo, é aumentar a segurança nas ruas de Belgrado.
O custo total do acordo é oficialmente um mistério, mas os críticos afirmam que chega a dezenas de milhões de euros. Acredita-se que cerca de mil câmeras tenham sido espalhadas por todas as partes de Belgrado durante o lockdown da pandemia, em 2019. E há planos de instalar em todo o país, em 2022, outras 8,1 mil câmeras, todas com capacidade de reconhecimento facial.
No final de dezembro de 2021, Milan Marinovic, que gerencia um órgão independente de proteção de dados pessoais na Sérvia, afirmou que tal tecnologia de vigilância é “perigosa”, devido à capacidade de o aparato ser usado pelo Estado para fiscalizar a oposição e mesmo a própria população.
Segundo o comissário, no que tange à Sérvia, há a garantia do governo de que nenhum software de reconhecimento facial está ativo, vez que a legislação não permite o processamento de dados biométricos. Isso, porém, não significa que o mesmo princípio será adotado no Kosovo.
Por que isso importa?
A desconfiança global que recai sobre a China no que tange à vigilância tecnológica tem como protagonista a Huawei, empresa de telecomunicações suspeita de atuar a serviço de Beijing. A desconfiança aumentou nos últimos meses devido à construção das redes 5G em todo o mundo, sendo a companhia chinesa a principal fornecedora global de infraestrutura do gênero.
A Huawei foi proibida de fornecer infraestrutura nas redes 5G de diversos países, justamente pelo temor de que seja usada para espionar os governos locais a favor da China. Austrália, Nova Zelândia, Portugal, Índia, Estados Unidos e Reino Unido já baniram a fabricante em suas futuras redes
Informações obtidas pelo jornal The Washington Post sugerem que a ligação da Huawei com o aparato de vigilância governamental chinês é maior do que se imaginava. Os dados aparecem em uma apresentação de Power Point que estava disponível no site da empresa e foi removida.
Repleto de itens “confidenciais”, o arquivo obtido pelo periódico mostra como a tecnologia da empresa pode ajudar Beijing a identificar indivíduos por voz, monitorar pessoas de interesse, gerenciar reeducação ideológica, organizar cronogramas de trabalho para prisioneiros e rastrear compradores através do reconhecimento facial.
De um lado, a Huawei nega atuar a serviço do Estado, mas admite que não tem como controlar a forma como sua tecnologia é usada pelos clientes. Do outro, as autoridades enxergam uma aproximação cada vez maior entre a Huawei e Beijing e citam a Lei de Inteligência Nacional da China, de 2017, segundo a qual as empresas nacionais devem “apoiar, cooperar e colaborar no trabalho de inteligência nacional”, o que poderia forçar a gigante da tecnologia a trabalhar a serviço do PCC.
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