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domingo, 16 de janeiro de 2022

Com Taleban, Afeganistão foi da crise humanitária à catástrofe, aponta relatório

“A vitória do Taleban catapultou o Afeganistão da crise humanitária para a catástrofe”. A constatação figura no Relatório Mundial 2022, um documento anual da ONG Human Rights Watch (HRW), cuja edição mais recente foi publicada na quinta-feira (13). O material faz um balanço do ano de 2021 no país do Oriente Médio, desde ascensão do Taleban, facilitada pela retirada das tropas dos Estados Unidos e da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), até os primeiros quatro meses dos radicais no governo.

Inicialmente, o documento relembra a violência que antecedeu a tomada de Cabul pelos talibãs. “As Nações Unidas informaram que as forças do Taleban foram responsáveis ​​por quase 40% das mortes e ferimentos de civis nos primeiros seis meses de 2021, embora muitos incidentes não tenham sido reportados”, diz o texto, sugerindo que os números reais tendem a ser maiores.

Os radicais foram ganhando terreno até entrarem em Cabul, no dia 15 de agosto, quando assumiram de fato o governo central. “Milhares de pessoas tentaram fugir do país, mas o caos e a violência no aeroporto impediram a evacuação de muitos afegãos em risco”.

Entre as pessoas desesperadas para deixar o país, destacavam-se afegãos que haviam servido ao governo anterior ou mesmo às tropas de ocupação. “Em muitas cidades, o Taleban procurou, ameaçou e às vezes deteve ou executou ex-membros da Força de Segurança Nacional Afegã (ANSF), funcionários do antigo governo ou seus familiares”.

Com Taleban, Afeganistão foi da crise humanitária à catástrofe, aponta relatório
Reunião de líderes talibãs no Afeganistão: somente homens no governo (Foto: twitter.com/IeaOffice)

Nesse caso, na visão da HRW, a culpa também recai sobre os Estados Unidos, que não agiram para evitar uma perseguição tão previsível quanto violenta. “A retirada acelerada não incluiu planos para evacuar muitos afegãos que trabalharam para as forças dos EUA e da Otan ou para programas patrocinados por países doadores”, diz o relatório.

Repressão de gênero

Com os talibãs efetivados no poder, a situação econômica do país se agravou, com “milhões de afegãos enfrentando grave insegurança alimentar devido à perda de renda, escassez de dinheiro e aumento dos custos dos alimentos”. Já a repressão atingiu especialmente mulheres e meninas, com “um fluxo constante de políticas e regulamentações que restringiam os direitos” delas.

Entre as políticas de gênero impostas pelos talibãs estão “medidas que restringiam severamente o acesso ao emprego e à educação e restringiam o direito à reunião pacífica. O Taleban também procurou mulheres de alto perfil e negou-lhes a liberdade de movimento fora de suas casas”. Como muitas mulheres eram responsáveis pelo sustento de suas casas, as restrições ao trabalho feminino contribuíram para aumentar a pobreza no país.

“Mulheres que ensinaram meninos em classes acima da sexta série ou homens em classes mistas na universidade foram demitidas em algumas áreas porque ensinar homens não é mais permitido”, diz o documento, citando ainda que o “Taleban também demitiu quase todas as funcionárias do governo”.

Um ponto crucial da repressão de gênero no Afeganistão foi o fim do Ministério de Assuntos da Mulher, cujas instalações passaram a ser usadas pelo Ministério para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, “uma instituição encarregada de impor regras sobre o comportamento dos cidadãos, incluindo como as mulheres se vestem e quando ou se as mulheres podem sair de casa desacompanhadas de um parente do sexo masculino”.

Com Taleban, Afeganistão foi da crise humanitária à catástrofe, aponta relatório
Meninas do ensino fundamental: educação não é um direito de todas no Afeganistão (Foto: Sayed Bidel/Unicef)

Imprensa silenciada

A repressão à imprensa também é destaque no documento, que cita tanto o Taleban quanto o Estado Islâmico-Khorasan (EI-K), grupo extremista que combate os talibãs e tem realizado violentos ataques terroristas no país. “A mídia afegã está sob crescente ameaça desde o início do ano, principalmente do Taleban. O EI-K também realizou vários ataques mortais contra jornalistas”.

Entre os jornalistas mortos, o relatório cita Rahmatullah Nekzad, chefe do sindicato dos jornalistas de Ghazni, morto a tiros em dezembro de 2020. “Embora o Taleban tenha negado a responsabilidade, Nekzad já havia recebido ameaças de comandantes locais talibãs”. Já o EI-K assumiu a responsabilidade pela morte Malala Maiwand, apresentadora de TV assassinada também no último mês de 2020. Já em março de 2021, em dois ataques distintos, homens armados mataram três mulheres que dublavam reportagens em língua estrangeira em uma emissora local.

“Após a tomada do poder pelo Taleban, quase 70% de todos os meios de comunicação afegãos fecharam, e outros estavam operando sob ameaça e autocensura”, diz a HRW, que cita ainda uma série de regras impostas à mídia. Entre elas, a proibição de “insultar figuras nacionais”, o veto a relatórios que tenham “impacto negativo na atitude do público” e a censura de notícias “contra o interesse nacional”.

Por que isso importa?

A economia do Afeganistão está em queda livre, com 23 milhões de pessoas passando fome no país, de acordo com dados divulgados pela ONU (Organização das Nações Unidas) em dezembro de 2021. As crianças são as maiores vítimas e lotam os centros de saúde, afetadas sobretudo por problemas decorrentes da má alimentação.  

A crise ocorre em meio à desvalorização acentuada do afegane, a moeda do país, e à falta de confiança do setor financeiro, que destrói o comércio e bloqueia empréstimos e investimentos estrangeiros. A fim de se integrar à comunidade internacional e assim tentar amenizar o problema, o Taleban, que assumiu o poder no dia 15 de agosto, busca reconhecimento internacional como governo de direito do que chama de “Emirado Islâmico“.

Mais do que legitimar os talibãs internacionalmente, o reconhecimento é crucial para fortalecer financeiramente um país pobre e sem perspectivas imediatas de gerar riqueza. O grupo chegou a se reunir com autoridades internacionais a fim de garantir que a assistência humanitária seja mantida no país, mas ficou nisso.

Em dezembro de 2021, uma Assembleia Geral da ONU adiou indeterminadamente o processo de oficialização do governo talibã. O anúncio da resolução significa que a organização islâmica não será autorizada a entrar no organismo intergovernamental.

As acusações de abusos dos direitos humanos e de repressão, sobretudo contra as mulheres, afastam cada vez mais o governo talibã da comunidade internacional. Tanto que, até agora, nenhuma nação reconheceu formalmente o Taleban como poder legítimo no país, apesar da aproximação com países como China e Paquistão.

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